O Corão, Beckham e a cruz

Uma leitura comparada da crucificação no Corão e na Bíblia, e ainda David Beckham, Charles Péguy e algumas obras-primas da pintura.

Uma leitura comparada da crucificação no Corão e na Bíblia, e ainda David Beckham, Charles Péguy e algumas obras-primas da pintura.

1. Como mel para a boca

A cruz de Jesus Cristo tornou-se um símbolo central no mundo inteiro e muitos desportistas decidiram imprimi-la na sua carne:

  • uma grande cruz nas costas, no caso do piloto de Fórmula 1 Lewis Hamilton.
  • uma imagem de Cristo sentado sobre a cruz antes da crucifixão no costado esquerdo, no caso de David Beckham.

 


2. Um texto bíblico

Nestes quatro domingos antes da festa da Páscoa, propomos-vos um pequeno itinerário através de quatro dos passos da Paixão. Esta semana contemplamos a cena da crucifixão. 

Levaram-no, então, para o crucificar. Para lhe levar a cruz, requisitaram um homem que passava por ali ao regressar dos campos, um tal Simão de Cirene, pai de Alexandre e de Rufo. E conduziram-no ao lugar do Gólgota, que quer dizer “lugar do Crânio”. Queriam dar-lhe vinho misturado com mirra, mas Ele não quis beber. Depois, crucificaram-no e repartiram entre si as suas vestes, tirando-as à sorte, para ver o que cabia a cada um. Eram umas nove horas da manhã, quando o crucificaram. Na inscrição com a condenação, lia-se: “O rei dos judeus”. Com Ele crucificaram dois ladrões, um à sua direita e o outro à sua esquerda. Deste modo, cumpriu-se a passagem da Escritura que diz: Foi contado entre os malfeitores.

Os que passavam injuriavam-no e, abanando a cabeça, diziam:

– “Olha o que destrói o templo e o reconstrói em três dias! Salva-te a ti mesmo, descendo da cruz!”

Da mesma forma, os sumos sacerdotes e os doutores da Lei troçavam dele entre si:

– “Salvou os outros, mas não pode salvar-se a si mesmo! O Messias, o Rei de Israel! Desça agora da cruz para nós vermos e acreditarmos!”

Até os que estavam crucificados com Ele o injuriavam.

Ao chegar o meio-dia, fez-se trevas por toda a terra, até às três da tarde. E às três da tarde, Jesus exclamou em alta voz:

– “Eloí, Eloí, lemá sabachtáni?”, que quer dizer: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?”

Ao ouvi-lo, alguns que estavam ali disseram:

– “Está a chamar por Elias!”

Um deles correu a embeber uma esponja em vinagre, pô-la numa cana e deu-lhe de beber, dizendo:

– “Esperemos, a ver se Elias vem tirá-lo dali.”

Mas Jesus, com um grito forte, expirou.

Evangelho segundo São Marcos, 15,20b-37


3. O esclarecimento

 

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Francisco de Zurbaran, Cristo na cruz (óleo sobre tela, 1627), Instituto de Arte de Chicago, EUA

 

Para compreender a especificidade da leitura cristã, a comparação entre o Corão e o Novo Testamento é bastante útil. Na sura IV, o Corão relata a crucificação de Jesus de uma forma significativamente diferente daquela a que a tradição cristã nos habituou. Aí, Jesus é crucificado apenas “em aparência”.

O Corão distancia-se assim do texto do Novo Testamento em pelo menos dois aspetos:

  • Jesus não é Deus, mas (apenas) um profeta (um “simples” homem de Deus)
  • Jesus não foi (realmente) crucificado, porque um (verdadeiro) homem de Deus nunca sofreria uma tal degradação, de acordo com o pensamento islâmico.

 

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El Greco (Doménikos Theotokópoulos), A Santíssima Trindade (óleo sobre tela, 1577-79), Museu do Prado, Madrid, Espanha

 

O Novo Testamento, pelo contrário, mostra que a verdadeira omnipotência de Deus se manifesta no seu “abaixamento” voluntário na cruz. Para que o homem possa aceder à comunhão perfeita com Ele, Deus aceita experimentar a angústia da morte. Uma tal leitura da Paixão é específica do cristianismo. Nenhuma outra religião concebe semelhante “abaixamento” voluntário de Deus. Um “abaixamento” que ressoa como um grito de amor.

 

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Veronese, Cristo morto nos braços dos anjos (óleo sobre tela, 1580), Gemäldegalerie, Berlim, Alemanha

4. E ainda uma palavra final…

Foi precisamente este “abaixamento” de Deus que Charles Péguy quis exaltar num célebre poema:

As armas de Jesus são essa penúria,
E essa carne expostas à intempérie,
E os cães devoradores e a matilha boquiaberta;

As armas de Jesus são a cruz de Deus,
Ser um vagabundo que se deita sem fogo e sem lugar,
E as três cruzes levantadas e a sua ao meio.

As armas de Jesus são essa pilhagem
Do seu pobre rebanho, essa lotaria
Do seu pobre enxoval às mãos dum soldado;

As armas de Jesus são essa frágil cana,
E o sangue que corre do seu lado como um rio,
E o antigo lictor e o antigo feixe;

As armas de Jesus são esse escárnio
Aos pés da cruz, são esse zombar
Aos pés da cruz e a brusquidão

Do algoz, da tropa e do governo,
São o frio do sepulcro e o enterro,
As armas de Jesus são o desarmamento,
A injúria e a afronta, eis o seu engenho,

A cinza e as pedras, eis o seu minifúndio
E os seus aposentos e o seu ducado;
As armas de Jesus são o tenro arbusto
Entrançado sobre a sua bela fronte como uma frágil rede,

Selando a sua realeza com um selo de paródia;
Os discípulos covardes, eis a sua confraria,
Pedro e o canto do galo, eis a sua senhoria,
Eis a sua tenência e capitania.

Charles Péguy, Oitavo dia de La Tapisserie de sainte Geneviève et de Jeanne d’Arc, 20 de novembro de 1912

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


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