O Adeste Fideles não tem passaporte português

Nesta quadra de Natal a Brotéria oferece-nos uma leitura histórica sobre a origem de "Adeste Fideles", desfazendo o mito da atribuição da sua composição a D. João IV.

Nesta quadra de Natal a Brotéria oferece-nos uma leitura histórica sobre a origem de "Adeste Fideles", desfazendo o mito da atribuição da sua composição a D. João IV.

Em 1970, escrevia Georges Dumézil (1898–1986) no livro The Destiny of the Warrior, «uma terra que não tem mais lendas está condenada a morrer de frio», adiante rematando «uma nação sem mitos está morta». A História de Portugal transborda de ambos, a tal ponto que, por vezes, é tarefa hercúlea fazer a destrinça entre a beleza da narrativa (inventada) e a factualidade desprovida de enlevo. Um dos exemplos mais gritantes de «fantasia romântica sem qualquer fundamento», nas palavras de Rui Vieira Nery, é a atribuição do Adeste Fideles à pena do rei D. João IV (1604–1656), patranha que, inclusive, afiança estar o manuscrito original na biblioteca do Paço de Vila Viçosa!

A origem deste mito é difícil de precisar. Subsistindo fontes contemporâneas que fazem alusão às composições de D. João IV, havendo um corpo de obras anónimas que lhe foram sendo atribuídas ao longo dos séc. XVIII e XIX, (os motetes Crux Fidelis e Adjuava nos), porque será que o Adeste Fideles nunca foi incluído nesse rol? Sendo da lavra de tão ilustre pessoa porque não consta de nenhum códice, livro, ou sequer cancioneiro português? Se tivermos em conta que em plena mitologia historiográfica propalada pelo Estado Novo tal atribuição foi apenas aflorada, este «nacionalismo desinformado», como adjetiva Nery, tem poucas décadas de existência e resulta de uma leitura acrítica e profundamente ignara, como adiante se constata. É provável que o facto de o Adeste Fideles ser conhecido no mundo anglo-saxónico por The Portuguese Hymn tenha contribuído para o despertar desta atoarda. Contudo, a designação foi inventada por Francis Osborne, 5º duque de Leeds (1751–1799), quando, em 1785, promoveu a interpretação de um hino que escutara na Capela Portuguesa, em Londres, num dos Concerts of Antient [sic] Music, dos quais era patrono. O sucesso da obra foi enorme, tendo sido assimilado pelo repertório sacro anglicano como o Hino Português. No passado recente, alguém terá confundido a Capela Portuguesa (da Embaixada de Portugal) com a Capela da Rainha (no Palácio de St. James), assim chegando a D. Catarina de Bragança, Rainha de Inglaterra, e a seu pai, D. João IV. Daí a entregar a autoria do Adeste Fideles ao soberano foi, como se diz na gíria, “um pulinho”.

A música, contudo, não deixa espaço para equívocos: do ponto de vista da estrutura e estilo, o Adeste Fideles é absolutamente incompatível com o gosto e a prática musical em tempo de D. João IV.

A música, contudo, não deixa espaço para equívocos: do ponto de vista da estrutura e estilo, o Adeste Fideles é absolutamente incompatível com o gosto e a prática musical em tempo de D. João IV. Acresce que tendo o rei escrito um tratado, Defensa de la musica moderna (1649), bem  como as duas únicas composições inegavelmente saídas da sua pena, os motetes Anima mea e Vivo Ego, publicados em Roma em 1657 e de que hoje apenas restam fragmentos, a falta de consonância musical com o Adeste Fideles é avassaladora. Perante as evidências do desajuste estilístico, há quem invoque a ciraia, dança de roda portuguesa, como estando na origem do Adeste Fideles. Também aqui falha o conhecimento das noções básicas teórico-musicais, pois ao contrário da ciraia, em ritmo quaternário, com acentuação do 1º tempo, o hino apresenta duas características precisas, a entrada em anacrusa e a acentuação do 1º e do 4º tempo, típicas da bourrée, dança de origem francesa. Acontece que o ritmo original do Adeste Fideles não é o que hoje conhecemos.

Mas, será realmente importante a sua origem (ou sequer nacionalidade), perante o convite universal de colocarmos as diferenças de lado e, com júbilo fraterno, irmos adorar o rei dos anjos, o Menino Jesus?

Impõe-se a derradeira pergunta: quem foi o compositor do Adeste Fideles? O manuscrito mais antigo data de c.1740 e é da autoria de John Wade (1711–1786), professor do English College, seminário católico em Douai, França. Este códice apresenta a melodia no seu estado puro, sem o ritmo compassado, introduzido em 1782 por Samuel Webbe (1740– 1816), e ligeiríssimas diferenças de contorno melódico. Fundamental é o facto de o hino surgir imediatamente após a oração pelo soberano “Deus Salvai o nosso Rei Jaime”, o que veio documentar a tradição oral entre as freiras dominicanas de Dublin, que sempre afirmaram tratar-se de um hino de louvor ao príncipe Carlos Eduardo Stuart (1720–1788), que esteve na origem da Rebelião Jacobita de 1745– a última tentativa de restaurar o catolicismo em Inglaterra. Assim, a pretexto de celebrar o nascimento de Cristo, Rei dos Céus, celebrava-se, por via das metáforas omnipresentes na sociedade barroca, a ansiada entronização de um novo rei.

Curiosamente, o segundo manuscrito mais antigo do Adeste Fideles, à guarda do Stonyhurst College, Lancashire, data de 1750 e foi concebido para o Convento dos Inglesinhos, em Lisboa. Neste caso, a oração pelo soberano volta a preceder o hino, mas em vez de Jaime surge José, Dom José I (1714–1777), alçado ao Trono de Portugal nesse mesmo ano. No fim de contas, o Adeste Fideles não tem passaporte português. Mas, será realmente importante a sua origem (ou sequer nacionalidade), perante o convite universal de colocarmos as diferenças de lado e, com júbilo fraterno, irmos adorar o rei dos anjos, o Menino Jesus? Presentemente fustigados por uma pandemia trágica, vivemos um Natal atípico, talvez sem o brilho exterior de outros anos mas, certamente, pleno de esperança em dias melhores!

Fotografia: Jametlene Reskp – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.