O 25 das FP’s nada tem de abril

"Presos por um fio" é um livro de Nuno Gonçalo Poças que investiga e analisa a ação das FP-25. Se é verdade que a cegueira ideológica morre com o passar do tempo, também é ela que mata no presente em que vive.

"Presos por um fio" é um livro de Nuno Gonçalo Poças que investiga e analisa a ação das FP-25. Se é verdade que a cegueira ideológica morre com o passar do tempo, também é ela que mata no presente em que vive.

O perigo dos purismos – chamemos-lhe antes extremismos – ideológicos é o de interpretar a história, em geral, e as opções de vida de cada pessoa, em particular, segundo uma perspetiva unilateral. Numa lógica maniqueísta não há lugar para o cinzento. O mundo reduz-se ao preto e branco e das duas uma: ou estamos do lado certo ou errado da história. Passamos a habitar um lugar onde uns são bons e vítimas enquanto os outros se tornam os maus a abater. Nem mesmo a vontade democrática de um povo pode contradizer essa visão maniqueísta. Caso as eleições democráticas não corroborem o purismo ideológico, a pequena tribo de (pseudo-) heróis continuará a representar o seu verdadeiro destino, não estivessem eles a lutar pelo lado certo da história e do Bem.

Não obstante o facto da história não se repetir, volta hoje a emergir uma crescente polarização ideológica, quer em novos purismos de uma esquerda aparentemente moderna, quer nos nacionalismos que nos fazem temer fantasmas do passado.

Nuno Gonçalo Poças presta um bom serviço, não só à nossa memória coletiva, mas também à forma como aderimos a uma ideologia. No seu primeiro livro, Presos por um fio. Portugal e as FP-25 de Abril, recorda-nos o que aquela organização de extrema esquerda fez num Portugal já democrático durante a década de oitenta do século passado.

É neste contexto que Nuno Gonçalo Poças presta um bom serviço, não só à nossa memória coletiva, mas também à forma como aderimos a uma ideologia. No seu primeiro livro, Presos por um fio. Portugal e as FP-25 de Abril, recorda-nos o que aquela organização de extrema esquerda fez num Portugal já democrático durante a década de oitenta do século passado. A sua perspetiva não é assumidamente neutra. Condenando as FP-25 de Abril, Nuno Gonçalo Poças coloca-se do lado das vítimas e das suas famílias. Segundo a narrativa do livro, houve um enorme défice moral de grande parte dos protagonistas políticos que acabaram por conceder, sem sinal de arrependimento, uma amnistia aos terroristas, desresponsabilizando assim os seus atos. Mas Nuno Gonçalo Poças não se fica apenas por aí. O livro é fruto de uma investigação cuidada e tudo o que nele se diz está muito bem documentado e fundamentado. Temos os nomes, os depoimentos, o conteúdo dos panfletos das FP-25 e a descrição das suas ações. Sem contar com a avó que sofreu um ataque cardíaco mortal após o seu neto ter falecido num dos atentados, contam-se 18 vítimas mortais. Ao todo são mais de 200 ações violentas perpetradas pela organização.

Temos os nomes, os depoimentos, o conteúdo dos panfletos das FP-25 e a descrição das suas ações. Sem contar com a avó que sofreu um ataque cardíaco mortal após o seu neto ter falecido num dos atentados, contam-se 18 vítimas mortais. Ao todo são mais de 200 ações violentas perpetradas pela organização.

Lançado no meio de petardos no fatídico dia 20 de abril de 1980, o “manifesto ao povo trabalhador” das FP’s afirmava uma narrativa maniqueísta da história, segundo a qual a escolha seria apenas entre fascismo e comunismo: o capitalismo e a democracia parlamentar seriam formas de fascismo ou, no melhor dos casos, acabariam inevitavelmente por sucumbir à ideologia de extrema-direita. Não havia outra alternativa: sem (alguma forma de) comunismo, não haveria espaço para a classe média progredir e subsistir. É claro que o povo nunca liga muito a delírios ideológicos. Vimo-lo claramente com muitas das ações das FP’s que não foram bem aceites pelos trabalhadores supostamente protegidos pela sua ideologia. Até porque, com o simplismo primário que as caracteriza, as narrativas maniqueístas tendem a proferir falsas profecias. Já o sabemos. Mas isso dizemos agora, quando as FP-25 estão no passado e já reduzidas a uma mera “nota de rodapé” da história do nosso país. Contudo, se é verdade que a cegueira ideológica morre com o passar do tempo, também é ela que mata no presente em que vive. E, se regressarmos aos anos oitenta onde esse grupo terrorista ainda fazia parte do presente, teremos nós a coragem de olhar para as vítimas que faleceram e para os seus entes queridos?

O símbolo com uma G-3 numa estrela em tons meio toscos não esconde a violência como meio para atingir os fins ideologicamente pretendidos. E, hoje, quando lemos os depoimentos de quem participou neste grupo, na compra e distribuição de armas, dizendo que se poderia ter feito “violência sem causar mortes” (p. 260), ou lamentando a “emoção” e o “descontrolo” de alguns dos membros cuja ação originou mortes injustificáveis, não sabemos se foi apenas falta de profissionalismo, cinismo ou ingenuidade… Provavelmente uma mistura dos três. Também não devemos esquecer que os terroristas são sempre mais que terroristas: são pessoas com família e com história. Mas é aí que devemos pensar na banalização do mal, não só como uma máquina burocrática em que estamos inseridos, mas também como a alienação de quem se deixa cegar por uma ideologia.

Além da cegueira ideológica, a investigação também mostra um certo oportunismo na gestão do dinheiro roubado, por vezes investido em empresas que alimentavam o grupo e que, talvez, tenha ajudado alguns dos seus membros a subir (materialmente) na vida. De facto, nada como uma boa dose de capital para enriquecer. E para além daqueles que fizeram o trabalho sujo, ainda temos os que desapareceram de cena quando a coisa deu para o torto.

Quando lemos os depoimentos de quem participou neste grupo, na compra e distribuição de armas, dizendo que se poderia ter feito “violência sem causar mortes” (p. 260), ou lamentando a “emoção” e o “descontrolo” de alguns dos membros cuja ação originou mortes injustificáveis, não sabemos se foi apenas falta de profissionalismo, cinismo ou ingenuidade.

Quanto às vítimas, podemos dizer que muitas delas são mártires da liberdade, sobretudo aquelas que nunca se deixaram intimar por terroristas. São pessoas assim que vivem e representam a liberdade de abril. Que o 25 das FP’s nada tenha de abril, foi aliás o que disse Vasco Lourenço a Otelo: “Na reportagem da RTP, Vasco Lourenço ouve o seu depoimento em tribunal e comenta: «(…) a certa altura recebi informações de que o Otelo estaria envolvido com as FP-25 de Abril. Procurei o Otelo, tivemos uma conversa no meu gabinete no Restelo, em que eu lhe disse que tinha as informações. [Disse-lhe:] Penso que, se isso for verdade, estás a meter-te por um caminho absolutamente condenável, com o qual não concordo de maneira nenhuma»”. (p. 253) Pois é: se o 25 de abril é hoje sinónimo de liberdade de expressão e democracia, então as FP’s foram uma força contra abril. Foi, aliás, por isso que o povo nunca lhes ligou muito, porque o sectarismo ideológico facilmente nos fecha num grupo de pequenos (pseudo-)iluminados que se alheiam da realidade e das pessoas que vivem concretamente este mundo. De resto, a breve história das FP’s também nos mostra como as ideologias desvanecem rapidamente com o paciente passar do tempo, não obstante os danos e as vítimas que nos vão deixando por lamentar e cuidar.

PRESOS POR UM FIO 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.