A expressão “Nova Evangelização” é, bem o sabemos, uma redundância em si mesma. O Evangelho é Boa Nova e, como tal, seria próprio de quem se importa e tenta viver segundo os critérios de tais inspirações, fazer novas todas as coisas. A redundância é uma figura de estilo bem coerente para este caso: trata-se de sublinhar o essencial do essencial (abrir-se à dádiva do insistente novo), secundarizando alguns apêndices, mais ou menos disciplinares, moralistas, exterioristas, formais, rígidos, fechados, velhos…
Escolho o verbo permanecer para harmonizar uma certa visão de nova evangelização, que fará por gerir um difícil e dinâmico equilíbrio tensional: guardar o que certo passado e tradição nos oferecem, abrindo tal legado à novidade do que o tempo de hoje nos oferece e do que o futuro de novo nos trará, na convicção profunda de que estes, como todos os tempos da história da fé, são “tempos favoráveis” (2 Cor 6: 2). Não há lugar, portanto, por mandato bíblico, para pessimismos no olhar, como se o mundo concorresse em sentido oposto ao da esperança. É lá, na realidade do palco da vida, que se radica o sentido. Permanecer em Deus é permanecer na vida real e permanecer no mundo, no sabor encontrado da crença, é permanecer em Deus.
1- Permanecer em Cristo
Permanecer significa dar-se conta da importância da paciência, da fidelidade e de certa passividade que assume o compromisso de estar, esperando a espera da esperança, acreditando no amor. Este permanecer é algo contracorrente face a certo imediatismo contemporâneo onde, precisamente, pelo contrário, se saltita à distância de um clique ou de uma sensação. A imagem de Cristo como videira, em Jo 15, como fonte de seiva e garantia de vida e de unidade, é bastante inspiradora. Permanecer como ramo de videira é teimar nos critérios de Cristo, porque tal vale a pena, porque a vida assim vivida confirma o jugo leve e suave prometido. Porque permanecer é também dar um sentido outro às feridas e às fraturas da existência, vislumbrando a luz que teima em perpassar cada pequena ou grande contrariedade. Para alguns, permanecer na fé ganha tónus com permanecer em Igreja, um gesto continuado que, como tudo na vida, tem também o seu custo. Para quem escreve estas linhas, esta permanência eclesial, muitas vezes suada, é fonte de grande alegria e descentramento, sublinhando-se um caminho e uma salvação da ordem do “nós”. Uma procura de unidade na diversidade que tem as suas identidades e os seus frutos. Um dos aspetos que mais resiste aos ventos do Concílio Vaticano II é certo clericalismo que manifesta os seus resquícios. A iniciativa laical vai dando os seus sinais, mas não está consumada. Da parte de muitos leigos, porventura distantes da circularidade e da horizontalidade que nos fazem povo em caminho, há ainda resistências que se manifestam, por exemplo, na quase ingénua ideia de que o selo de Igreja se confunde com a presença e com a atividade dos clérigos. Sem escamotear a importância e singularidade do dinamismo dos ordenados na Igreja, ontem, hoje e amanhã, há ainda um salto de qualidade laical por emancipar…
O cristão (sim, missionário e evangelizador por inerência) terá neste tempo uma permanência baseada na pergunta, fazendo e porventura dizendo o que os outros fazem e dizem, mas com um tónus diferente.
2- Permanecer no mundo e no tempo
A lucidez crítica de alguma tendência superficial dos nossos tempos não pode ser entendida como qualquer combate contra o mundo, mais ou menos dualista, como se o mundo precisasse essencialmente de luta. O nosso primado é um outro, o da aceitação ativa e o da procura da justiça fraterna. Inspira-nos Jesus de Nazaré que sempre recusou ruturas com o mundo, preferindo revelar e revelar-Se nas más companhias mundanas, a partir da realidade como ela é. O Espírito Santo, enquanto gerúndio de Deus que em tudo sopra, ganha, no seu entendimento para a vida, em quasi confundir-se com o tempo e com o espaço que correm. Permanecer no Espírito Santo, portanto, é permanecer no mundo. As teses defensivas e identitárias da Igreja esmorecem no próprio Evangelho, que nada tem a ver com trincheiras, antes rasgando-se numa misericórdia em saída, como Francisco não se cansa de apontar. Não haverá nova evangelização sem atenção e permanência nos sinais dos tempos. De aí para o alto se caminhará porque não há caminho, antes prisão, no movimento contrário, bandeirando o cristianismo como mera ideologia.
3- Permanecer na pergunta
Este caminho da realidade para um ideal (e não o seu inverso), é radicalmente pedagógico e um filão fundamental da nova evangelização. As correntes pedagógicas atuais, embaladas pelo iluminismo, pela racionalidade das próprias ciências, incluindo as sociais, e por valores como a democracia e a pluralidade (na minha ótica, sopros com forte raiz judaico-cristã, agora no lastro de uma sociedade positivamente laica) são de ter em conta. As aprendizagens, seja do que for, são colocações baseadas na pergunta. Será o aprendente, mediante informação e propostas, que realizará o seu caminho, processando, acolhendo, ancorando e resignificando o que lhe é proposto, não imposto (ao estilo de Jesus, diria eu). O cristão (sim, missionário e evangelizador por inerência) terá neste tempo uma permanência baseada na pergunta, fazendo e porventura dizendo o que os outros fazem e dizem, mas com um tónus diferente. Principalmente pelos seus gestos e pelo seu ser, mais até do que pelo que diz, gerará a pergunta no outro. Só assim se poderá propor. Se houvesse eles e nós, em matéria de conversão (mas não há…), ambos, nós e eles que somos só nós, seríamos pergunta. Deus teima em ser a última pergunta diante de cada resposta provisória. E Jesus, Ele mesmo, transitou em formato pergunta. A bem dizer, morreu por amor e estava já a permanecer ressuscitando, como uma pergunta. A Igreja que somos, se quiser ser nova evangelização, terá de permanecer como pergunta aprendente diante da novidade que é a própria graça da vida!
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.