O MRAR (Movimento de Renovação da Arte Religiosa) faz 70 anos da sua fundação.
Para assinalar esta data, o Centro Nacional de Cultura (CNC) organiza hoje, dia 24, uma sessão de entrada livre que terá lugar na Fundação Calouste Gulbenkian (Sala 1) às 16h. Nela será lembrado este importante movimento que corresponde à concretização da vontade de um grupo de artistas católicos empenhados em elevar a arquitetura religiosa e a arte sacra em Portugal a uma maior dignidade e qualidade plástica, numa oposição formal à manutenção dos modelos arquitetónicos de cariz tradicionalista nas novas construções religiosas dos centros urbanos de Lisboa e Porto.
Nesta ocasião, será também lançado um ebook com uma seleção de 50 textos e artigos escritos entre 1947 e 1970 por 15 sócios efetivos do MRAR.
O Ponto SJ publica hoje a introdução deste ebook, assinada pelo P. João Norton de Matos, jesuíta. O livro está disponível no site do CNC e da Brotéria.
INTRODUÇÃO
INTERESSE E IMPORTÂNCIA DO LIVRO
Depois do estudo sobre a história e o pensamento do MRAR*, João Alves da Cunha oferece-nos neste volume o acesso a algumas fontes literárias, cinquenta textos de membros deste movimento, datados de 1947 a 1970. O livro é de grande valor e importância: primeiro, porque são textos dispersos por revistas especializadas que agora podem ser lidos em conjunto; depois, porque documentam o período de maior frescura e profundidade da reflexão sobre a arquitetura religiosa moderna em Portugal, antecipando e prolongando as orientações do Concílio Vaticano II; finalmente, porque, passados mais de 50 anos sobre o último dos textos, conservam grande atualidade e urgência. Este último aspeto deve interpelar-nos. Do ponto de vista da arquitetura religiosa moderna, a reflexão deslocou-se tendencialmente para a universidade e mantém-se em geral mais afastada da prática da arquitetura e da vida cultural e diocesana, pelo que as obras de grande qualidade se tornam muito raras. Também do ponto de vista religioso, os ventos são outros, o desejo de novos e melhores tempos para a vida da Igreja e a sua expressão artística nas comunidades cristãs e na cidade deu tendencialmente lugar à nostalgia do passado e ao medo da abertura e da mudança. É por isso refrescante ler numa entrevista com Nuno Teotónio Pereira, de 1959: “embora se tenha de vencer a resistência da rotina e do comodismo, nós [Movimento de Renovação da Arte Religiosa] caminhamos no mesmo sentido em que se opera a própria renovação da vida cristã”. Afirmação aparentemente intuitiva, proveniente de um arquiteto, mas de grande profundidade teológica.
O CONJUNTO DOS TEXTOS
A perspetiva comum destes textos aponta para a necessidade que a Igreja tem das artes do seu tempo. Que a Igreja tenha necessidade das linguagens artísticas, é quase indiscutível, estas possibilitam a perceção imediata de dimensões profundas da religião e da cultura. Por outro lado, é igualmente evidente que a vitalidade atual de uma comunidade cristã inclua as artes do seu tempo, ainda que estas ponham à prova essa mesma vitalidade cultural e religiosa. Foi esta correlação entre a vida da Igreja, as artes e a arquitetura que o MRAR pretendeu estimular.
Esta problemática é abordada a partir do ponto de vista concreto de arquitetos, padres, escritores e jornalistas, teólogos, críticos, artistas e artesãos, homens e mulheres, apoiados em análises de tipo antropológico, sociológico, histórico-cultural, litúrgico-pastoral e teórico-prático. A grande riqueza desta coletânea sugere-nos pelo menos três percursos de leitura possíveis: uma leitura cronológica, pela qual estão ordenados os textos, que nos leva desde as inquietações cívicas e cristãs na origem do movimento até aos balanços e sistematizações mais extensos e tardios; ou uma leitura por autores, na sua diversidade de estilos e especialidades,
isto é, ler de seguida, por exemplo, as inesperadas contribuições de Vitorino Nemésio, adentrar-se na densidade teórica de Nuno Portas, na profundidade religiosa e artística de João de Almeida ou na arte da tradução plástica do espaço sagrado com José Maya Santos; ou, ainda, uma leitura temática, mais transversal e mais difícil de organizar, dado que um mesmo texto trata com frequência temas diversos, e autores diversos abordam temas comuns. Esta leitura levar-nos-ia, como que de A a Z, desde a inserção das novas igrejas no tecido urbano e os critérios sociológicos e pastorais do seu dimensionamento com Diogo Lino Pimentel (38) até às alfaias litúrgicas e paramentaria, respetivamente com Maria José Mendonça (44) e Madalena Cabral (49). Entre estes extremos da cidade e do artesanal, surgem muitas outras questões nucleares à problemática das igrejas modernas, como sejam: o ambiente político-cultural português nas décadas de 50 e 60, a história das formas da arquitetura religiosa cristã, a receção em Portugal do movimento moderno da arquitetura, os esforços de aggiornamento e refontalização do movimento litúrgico e, ainda, a tradução
arquitetónica de uma funcionalidade litúrgica em evolução e de uma expressão estilística sintonizada com os valores espirituais do homem contemporâneo. A expressão “decoração das igrejas”, bastante repetida nestes textos, talvez não seja hoje a mais adequada para traduzir a preocupação que lhe está subjacente, a saber, a finalização das superfícies que definem o espaço arquitetónico e a harmonização dos equipamentos e elementos complementares – inclui a iconografia mas não se reduz a ela
–, de modo a obter uma qualidade ambiental final adequada à natureza do edifício, e um clima de acolhimento humano estimulante, tanto para o recolhimento orante como para o encontro festivo da comunidade.
Neste sentido, sublinhamos a pertinente observação do arquiteto José Maya Santos, definindo o desenho das igrejas como a “arte do espaço sagrado”, uma arte em si mesma, mas indissociável das artes sacras, assim como da arte da liturgia que lhes oferece o programa funcional e o conteúdo espiritual. A máxima recorrente “as artes ao serviço da liturgia”, sendo verdadeira, é frequentemente mal compreendida, dando lugar a atitudes pouco respeitadoras do trabalho dos artistas. Nestes temas, que
constituem verdadeiros desafios para os arquitetos e os artistas, assim como para as comunidades cristãs, as sobreposições que vão surgindo nos diversos textos não são redundâncias, mas consensos que se vão consolidando, abrindo caminhos ao futuro das nossas igrejas. Na impossibilidade de um prefácio conter um guia para a leitura temática destes textos, chamo apenas a atenção do leitor para algumas linhas de força e afirmações, ainda hoje, da máxima pertinência e atualidade.
AS GRANDES TEMÁTICAS, UM GUIA DE LEITURA
O tema original e originante é o das exposições, na medida em que é dos organizadores da primeira exposição, Arquitetura religiosa contemporânea, que em 1953 surge o MRAR. Segue-se-lhe outra em 1956, um curso de arquitetura sacra em 1958 e novas exposições em 1959 e 1964. A sua missão foi desde logo crítica e pedagógica: crítica, porque depois da igreja de Fátima, em Lisboa (Pardal Monteiro, 1938), as igrejas mais representativas dos anos 50, Santo Condestável (1951), São João de Deus (1953) e São João
de Brito (1955), obedecem ao programa nostálgico e provinciano do Estado Novo, que se impôs às correntes da arquitetura moderna internacional e de renovação litúrgica; pedagógica, tanto por estimular o conhecimento e a reflexão aprofundada acerca da natureza do edifício-igreja, como por divulgar as igrejas modernas centro-europeias de maior qualidade e, logo que possível, também as nacionais, como as igrejas de Moscavide (João de Almeida, Freitas Leal, 1956) e de Águas, em Penamacor (Teotónio
Pereira, 1957), ou a capela do Picote (Nunes de Almeida, 1958), interpretar os seus princípios e divulgá-los entre o clero e os cristãos, assim como junto dos arquitetos e do público em geral. Um certo mal-estar ressentido face a estas igrejas mais depuradas de convenções e excessos decorativos, e mais ao serviço da funcionalidade prática e simbólica de uma liturgia que redescobre os seus princípios fundamentais, revela uma certa estagnação, inquestionada, do público em geral num romantismo artístico e religioso. Revela ainda, mais radicalmente, os efeitos da separação entre a Igreja e o mundo contemporâneo refletida na maioria das igrejas projetadas na primeira metade do século XX, de modo que nem os movimentos eclesiais de reforma, nem o talento dos arquitetos e artistas foram capazes de inverter essa dinâmica. Foi preciso um Concílio para renovar a visão teológica e pastoral do
magistério. Entretanto, o contexto cultural não parou de evoluir, levantando mais radicalmente a questão de saber se a Igreja em Portugal está verdadeiramente interessada em dialogar com a sociedade plural e secularizada em que se insere, entendendo esse diálogo não em termos de cedências na sua identidade evangélica, mas da sua empatia com as inquietações espirituais dos seus contemporâneos. Neste sentido, e no que respeita às artes, o teólogo Noronha Galvão refere-se a uma “arte sacra viril”, isto é, à altura dos desafios do nosso tempo, não apenas enquanto ideal de beleza e muito menos como refúgio afetivo e amaneirado.
A HISTÓRIA DAS IGREJAS E A REFONTALIZAÇÃO MODERNA
Um outro tema trata a forma da igreja-edifício, as suas origens e a história das suas transformações marcadas pela situação espiritual e cultural de cada época, e em consonância com a conceção de si da Igreja-comunidade-instituição e a evolução dos ritos litúrgicos. Encontramos interpretações desta evolução tipológica e espacial das igrejas particularmente em artigos de Luiz Cunha (9) e de José Maya Santos (47 e 48). Estes apontam temas cruciais, e pouco lembrados, como o primado da relação pessoal e da comunidade dos crentes nas primeiras gerações cristãs; a centralidade do altar a meio da nave nas basílicas protocristãs (imagine-se hoje! Por exemplo, na basílica da Estrela); a passagem posterior à centralidade da presidência enfatizada pela abside, à imagem do Imperador; o recuo do altar para a abside, destronando a presidência, afastando-se do povo, alongando o eixo longitudinal das igrejas ao longo da Idade Média; o pleno domínio da forma do espaço e a busca da perfeição pela harmonia e a proporção no Renascimento; a importância do espetáculo interior e da aparência exterior no barroco da Contrarreforma; a tensão
no século XIX entre as novas possibilidades técnicas e os revivalismos estilísticos, reservando o carisma da expressão religiosa aos estilos “neo” bizantino, românico, gótico, e o neoclássico com o retorno da ideia, um pouco pagã, de Templo. Estas leituras do significado da forma da igreja ao longo da história são feitas a partir da problemática contemporânea, que se quer enraizada na tradição e, simultaneamente, crítica e criativa. Esta perspetiva tem a sua continuidade natural no estudo e na interpretação dos princípios poéticos e teóricos que presidem a certas igrejas modernas, reconhecidas pelas suas qualidades como casos de estudo incontornáveis. As referências, relativamente numerosas, revelam o interesse do MRAR pelo melhor da arquitetura religiosa internacional. Entre outros, os textos de Luiz Cunha (14; 15), Nuno Portas (17; 22; 46) e Avelino Rodrigues (27; 29) apontam as igrejas de A. Perret, em Le Raincy, e de Hermann Baur, em Basileia, como pioneiras no uso nobre do betão aparente, tingido em ambas pela coloração dos vitrais; as igrejas do parque Güell, de Gaudí, e do santuário de Ronchamp, de Le Corbusier, pela poética da singularidade e da atmosfera sagrada; as igrejas suíças dos arquitetos Karl Moser, Hermann Baur e Fritz Metzger, pela sua hospitalidade e funcionalidade litúrgica; as alemãs, pela simplicidade essencial de Emil Steffann e pela competente experimentação de Rudolf Schwarz; referem-se ainda obras de arquitetos italianos Figini e Pollini, Giuseppe Vaccaro, nórdicos, Alvar Aalto e Gunnar Asplund, na América do Norte, F. L. Wright, Mies van der Rohe, Marcel Breuer e Oscar Niemeyer no Brasil. Sublinha-se, entre
alguns arquitetos já citados, uma corrente designada como “comunitária” que conjuga a funcionalidade litúrgica e o humanismo das igrejas domésticas e, neste contexto, a teologia da liturgia de Romano Guardini e as igrejas do arquiteto belga-flamengo Marc Dessauvage.
A FUNCIONALIDADE LITÚRGICA
Estas igrejas tornaram-se exemplares em diversos aspetos, pelas suas particularidades notáveis, ainda que dificilmente os encontremos todos reunidos numa só. O presente conjunto de artigos aponta-nos ainda o essencial dessas qualidades. De modo geral, estas correspondem a um entendimento da função litúrgica e do sentido do sagrado cristão, às qualidades plásticas específicas da linguagem da arquitetura na sua autonomia, que qualificam a perceção e a vivência do espaço e ainda a uma
contextualização sociocultural adequada. No que respeita à função litúrgica, encontramos nos textos de Avelino Rodrigues (19; 27; 30) uma análise muito justa dos elementos do espaço litúrgico e dos seus princípios ordenadores. No essencial, o primado da assembleia numa relação viva com o espaço do santuário definido pela triangulação altar-ambão-cadeira da presidência, inserido e não separado da assembleia: “o espaço do santuário não se pode dissociar ou separar do espaço da assembleia; aliás ele faz parte da própria assembleia” (48). Pretende-se, assim, tornar claramente visível uma teologia da participação. Aponta-se depois o “pré-santuário” como a zona mais dinâmica do rito, num vaivém mediador entre o celebrante e os atores litúrgicos, sem a rigidez de um
“face à assembleia”, mas numa coreografia eclesial que a inclui num único corpo participado e ativo, perdendo legitimidade a separação da capela-mor ou outras antigas formas de separação, como balaustradas e cancelli, tal como nos chegaram dos últimos séculos.
A EXPRESSÃO NA ARQUITETURA DAS IGREJAS
No entanto, uma compreensão da funcionalidade litúrgica, como vimos, variável ao longo da história, não irradia apenas uma certa organização do espaço, como também confere caráter ao edifício como um todo. Uma expressão e caráter que espelha as acentuações dogmáticas próprias de cada tempo, que hoje seriam a conceção orgânica e relacional da Igreja como Corpo de Cristo, ou Igreja de Comunhão dos fiéis com Cristo, resultando em lugares de reunião da comunidade e de encontro com Deus em
Cristo. E que espelha também a encarnação da Igreja no seu tempo, como unidade fundamental entre o sagrado e o profano, rompimento do véu do Templo na unidade em Cristo do divino e do humano, que noutros termos aponta para o denominador comum da arte sacra com a arte do seu tempo. Nuno Portas mostra como a qualidade da arquitetura religiosa não pode acontecer separadamente do espírito e dos movimentos da arquitetura de qualidade do seu tempo. O autor nota como “Luigi Quaroni [arquiteto italiano] exprimia a sua convicção de que será efetivamente difícil obter, como querem alguns, uma arquitetura de igrejas que exprima «qualquer coisa» se esta «qualquer coisa» não for contemporaneamente expressa, (mesmo que de modo diferente e noutra medida) também na arquitetura não religiosa” (22). Não há uma fórmula para a transformação dos valores evangélicos em valores plásticos, a capacidade de o fazer resulta de um trabalho conjunto e pertence ultimamente aos mais qualificados arquitetos e artistas, de que a Igreja não pode prescindir. Estes valores evangélicos, mesmo a paradoxal “exigência de pobreza”, vão unidos às aspirações do espírito humano à autenticidade, profundidade interior, silêncio, paz, segurança, de que o sagrado não se ressente, antes assimila e de algum modo sacraliza. De modo que, quanto mais crísticos forem esses valores expressivos, paradoxalmente mais humanos serão. Concordamos, portanto, com Nuno Portas: “O problema da arte sacra nos nossos dias torna-se capital não só para o pensamento católico mas também para a cultura laica… e, afinal, também para a cultura arquitetónica.”
CONCLUSÃO
Podemos concluir verificando que a agenda que o MRAR se propôs pede continuidade e permanece atual: (1) a educação dos fiéis e do clero em matéria de arquitetura e espaço litúrgico; (2) a atualização do ensino artístico nos seminários; (3) a realização de concursos públicos de projetos (com júris idóneos) para as obras mais importantes; (4) a obrigatoriedade de atribuir as obras de arte e de arquitetura a artistas e arquitetos; e (5) o reconhecimento das linguagens artísticas próprias do nosso tempo.
Fotografias: Igreja da Sagrada Família, em Paço de Arcos (arq. João de Almeida, 1969).
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.