Morrer à mesa

É urgente, por isso, fazer o elogio da mesa. Da mesa autêntica, daquela onde há lugar para todos e a palavra é livre. Porque a tentação, talvez a maior do nosso tempo, é de só nos sentarmos em mesas à medida da nossa mesquinhez.

É urgente, por isso, fazer o elogio da mesa. Da mesa autêntica, daquela onde há lugar para todos e a palavra é livre. Porque a tentação, talvez a maior do nosso tempo, é de só nos sentarmos em mesas à medida da nossa mesquinhez.

Bastou sentar-se à mesa. Lembro-me perfeitamente do espanto, e do fascínio quase imediato com a ideia. Foi há muitos anos, quando estudava teologia em Lisboa, que escutei pela primeira vez a tese de Robert Karris acerca da importância do partilhar a mesa na vida de Jesus. Diz o autor que “Jesus foi morto por causa da forma como comeu”. Foi porque decidiu sentar-se na mesma mesa que os pecadores e os rejeitados, os cobradores de impostos e as mulheres de má vida, que as autoridades religiosas da época se empenharam em reduzi-lo ao silêncio, da cova. Um tal gesto, que tem pouco para nos surpreender hoje em dia, estava longe de ser banal. Ao instaurar aquilo que os especialistas chamam uma comunhão de mesa com aqueles que estavam excluídos de todas as mesas, Jesus abriu uma brecha nos esquemas de pureza e impureza que organizavam a sociedade, colocando-os em suspenso. Sentou-se à mesa com quem não devia, partilhou o pão e fez circular a palavra com quem estava condenado às migalhas e ao silêncio, e isso foi-lhe fatal.

Nós, mais de 2000 anos depois, somos filhos e filhas da sociedade mais sentada da História. São muitos os que todos os dias passam longas horas à mesa: a da escola ou a do trabalho. Nunca se viveu tanto à mesa. E, contudo, com uma ironia quase cruel, esta exponencial multiplicação das mesas transformou a mesa numa paródia dela mesma: sentamo-nos em mesas onde só há lugar para um. O lugar do encontro, da partilha, do ruído, tornou-se ícone do indivíduo absorto no seu trabalho, separado do mundo e dos outros, com os olhos num ecrã. A escrivaninha matou a mesa e nós vivemos bem com a ideia. Aliás, já nem nos lembramos deste crime. Se assim não fosse, a imagem do Presidente Trump a assinar a ordem executiva destinada a excluir tantos da mesa da humanidade com base no país de proveniência, sentado numa pequena escrivaninha diante das câmaras, ter-nos-ia inspirado mais que um resignado silêncio de quem já não se surpreende com nada.

É urgente, por isso, fazer o elogio da mesa. Da mesa autêntica, daquela onde há lugar para todos e a palavra é livre. Porque a tentação, talvez a maior do nosso tempo, é de só nos sentarmos em mesas à medida da nossa mesquinhez, onde os lugares estão contados e o libretto para a conversa pré-definido. Ninguém destoa e tudo corre pelo melhor. Pelo contrário, a mesa verdadeira é um lugar que tende a tornar-se perigoso, sobretudo para as nossas certezas. É aí que o encontro com o outro, com o diferente, pode “dinamitar” o castelo de ideias e preconceitos que construímos à nossa volta. Não dá para furtar-se ao diálogo, ao genuíno trocar de olhares e de palavra, e isso é uma experiência radical sem paraquedas. Sabemos donde viemos quando nos sentámos àquela mesa, mas ignoramos ainda aonde iremos quando nos levantarmos dali.

Faltam-nos mesas destas no espaço público. Ou, melhor, uma cultura da mesa. É mais fácil falar da tribuna ou do púlpito. E, mais ainda, gritar slogans ou insultos, nas ruas como nas redes sociais. Somos nós, é a nossa voz e os outros são ouvintes ou vítimas, pouco importa, desde que estejam calados ou que nos aplaudam. Pelo contrário, na exigente disciplina da mesa, é preciso tomar a palavra e deixá-la também ao outro, perguntar e esperar uma resposta, sem ter a certeza de vir a escutar o que queríamos. Num certo sentido, porventura espiritual, precisamos de reaprender a morrer à mesa. A morrer para a unanimidade por decreto, para o conforto do “tem razão, sim, senhor”, para essa falsa bem-aventurança dos “puros de opinião”. E isto sem cair no relativismo ou numa falsa tolerância do diferente, que seria transformar a mesa num palco e o diálogo numa farsa.

Na tradição judaica, na noite da Páscoa, quando a família se senta para a refeição, há sempre um lugar vazio à mesa. Destina-se ao profeta Elias, cuja vinda, espera-se, iniciará algo novo. Talvez nos possamos deixar inspirar pela coragem de tal gesto. Porque, afinal, é disso que se trata, de ter sempre mais um lugar, de estender a mesa além dos limites estreitos dos “nossos”, dos “da casa”. Arriscamos, é verdade, ser feridos pela palavra daquele que chega. Também arriscamos uma morte lenta na boca dos “polícias” dos bons costumes ou das práticas convenientes. Mas, teremos vivido, e vivido sem medo.

 

Este texto foi publicado na edição de ontem do Jornal de Notícias

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.