Ir ao cinema: Shoplifters – Uma família de pequenos ladrões

Shoplifters, de Hirokazu Kore-eda, venceu a Palma de Ouro em Cannes, está em exibição em Braga, Porto e Lisboa e é a sugestão cultural da Brotéria para esta semana.

Shoplifters, de Hirokazu Kore-eda, venceu a Palma de Ouro em Cannes, está em exibição em Braga, Porto e Lisboa e é a sugestão cultural da Brotéria para esta semana.

Breve Sinopse

A ‘família’ presente em Shoplifters é um agrupamento ad hoc. Apenas existem laços de sangue entre uma neta e sua avó (que se utiliza daquela relação para extorquir dinheiro à família). O casal não o será na acepção formal do termo mas na realidade vivida. E as crianças: um, funcionando como filho, foi ‘achado’ num automóvel abandonado e a outra, a menina de cinco anos, vítima de maus tratos pelos pais e, encontrada na rua, foi recolhida pela ‘família’. Como sobrevive esta comunidade sui generis?  Diga-se que o vencimento da mulher não dá para grande coisa e acaba por ser despedida. O homem da casa acha pesada (e perigosa) a tarefa na construção civil. Assim, com o miúdo, dedica-se a roubar em estabelecimentos comerciais (e não só)! Esta estória (pouco edificante) tem um desfecho? Sem dúvida. Referi-lo roubaria muito do interesse a quem veja o filme … Acrescente-se apenas que toda esta gente vive em relativa harmonia e com expressões mútuas de afecto! E se, a alguns leitores com mais idade, ou cinéfilos, este relato pode fazer lembrar algo parecido com o célebre Feios, Porcos e Maus, de Ettore Scola (1976), desenganem-se. Apenas a exiguidade do apartamento ou o amontoado de pessoas coincide, de alguma forma. O resto…!

O que brota do filme de Kore-eda é a derrota das nossas certezas morais absolutas salvando em primeiro lugar os gestos de construção para os não deixarmos perder-se.

Carlos Capucho

Nota Crítica

Shoplifters, de Kore-eda (n.1962), ganhou, no Festival de Cannes de 2018 a Palma de Ouro. No longínquo ano de 1951, Às Portas do Inferno (Rashomon), do seu compatriota, o mestre Akira Kurosawa (+1998), recebera o grande prémio do Festival de Veneza, o Leão de Ouro. Sessenta e sete anos em que a produção de um dos grandes da indústria cinematográfica mundial (o Japão) sempre se tem mantido na ribalta, não apenas na ficção e no documentário mas também, de forma laureada, nos filmes de animação. Com a Índia e os Estados Unidos, o Japão é, na verdade, uma potência fímica antiga e reconhecida. Mas nem sempre assim foi, quanto a reconhecimento como bem relata o historiador do cinema Mark Cousins (Biografia do Filme, Lisboa, Plátano, 2005 e DVD, A História do Cinema-Uma Odisseia, Lisboa, Midas, 2011).

Em rigor não se pode afirmar que o cinema japonês, antes de 1951, fosse desconhecido do ocidente. Mas era, no ocidente, depois do final da Guerra, um cinema ‘estranho’, exótico, produzido por vencidos e humilhados. Tudo se altera em Veneza, no Festival de 1951. A força, a beleza, o domínio fílmico de Kurosawa, patente em Às Portas do Inferno, arrasa a concorrência, deixa Júri e público em estupefação e ganha o Grande Prémio. Era uma porta que se escancarava para o que a partir daí se seguiu com outros mestres (como Ozu, Mizogushi, Naruse, Imamura…), não apenas em Veneza mas também em Cannes, Berlim ou Locarno. Na realidade, logo em 1955, a extraordinária obra de Kurosawa Os 7 Samurais, obtém o Oscar para o melhor fim estrangeiro.

Shoplifters é o filme de Kore-eda onde constatamos uma maior complexidade de questões, nada fáceis de dirimir com uma espécie de ‘manual’.

Carlos Capaucho

Os nomes que apontei são apenas os cimeiros, no pós-guerra, no interior de um extenso núcleo. E a chama tem-se mantido ao longo de gerações, até aos nossos dias, passando ainda por referências, no ocidente, como Nagisa Oshima, Haiyo Miyazaki e Takeshi Kitano. Kore-eda é um ilustre representante de uma geração mais recente, com grande projecção no ocidente. Bastará dizer que esteve presente em Cannes, por cinco vezes, com filmes seus e saiu premiado  em três. Realizador desde o final da década de 80 do passado século tornou-se conhecido em Portugal a partir de 2004 com o filme Ninguém Sabe, um êxito de público e crítica, logo cimentado em 2008 com o excelente Andando e, passando menos intensamente por 2011 com O Meu Maior Desejo, retoma o fôlego junto do público com Tal Pai, Tal Filho, em 2013. Deixei de lado dois títulos de 2009 e 2017 por não se inscreverem na coerência temática e fílmica de todos os outros. E a constatação dessa temática – a família e a infância – é fulcral para a compreensão e integração da narrativa construída em Shoplifters. Embora este último se inscreva num universo sociológico diverso dos outros filmes apontados – antes a classe média, agora um lúmpen de pobreza e amoralidade. Não confundir, nesta circunstância, amoralidade com ausência de valores. Pelo menos, alguns valores (afecto, entreajuda, solidariedade, sentido de relação com as crianças, p. ex.), podem não estar consciencializados nos personagens, mas são vividos na prática. Para quem é familiar da obra de Kore-eda certamente já sentiu um maior entusiasmo na elaboração fílmica de obras anteriores do realizador mas, o presente filme, é aquele onde constatamos uma maior complexidade de questões, nada fáceis de dirimir com uma espécie de ‘manual’. Diria que se exige do espectador uma atitude, à maneira evangélica do olhar transparente do papa Francisco, sempre à procura ( num respeito infinito) de uma centelha de bem onde tudo, à partida, parece mal. Até porque (e isso já tem sido referido noutras instâncias) nenhum daqueles adultos é aquilo que parece ser em determinado momento, baralhando o realizador as nossas certezas, até ao desfecho final. Momento onde as nossas perguntas poderão encontrar algumas respostas. Alguns dos que me leem talvez recordem o que, nesta ordem, eu referi há meses, nas páginas de Brotéria, a propósito do final do filme de Teresa Villaverde, Colo.

Quando há pouco sublinhava a coerência e constância do contexto presente nos filmes de Kore-eda elas estão (agora mudando o plano social, embora) na abordagem do que constrói ou emperra (quando não mesmo destrói) o universo da família e, dentro deste, as crianças. Todos os filmes citados, deste realizador nipónico, laboram nessas duas constelações. E como elas são complexas: simultaneamente exaltantes e mesquinhas, frutificantes e estiolantes. É isso: mesmo na miséria moral pode haver lampejos de luz. E o que brota do filme de Kore-eda é a derrota das nossas certezas morais absolutas salvando em primeiro lugar os gestos de construção para os não deixarmos perder-se, embora repudiando os lados escuros que por ali se albergam: na verdade trata-se de delinquentes. Se assim não fosse – a coexistência de laços de construção – o adolescente não olharia para trás, nostalgicamente, no autocarro, para o local onde deixou o seu ‘pai’. “Não escolhemos a família em que nascemos”, diz uma das mulheres, para acrescentar que, ‘escolher’ aquela em que vivemos pode ter algumas vantagens.

Filmica e narrativamente Shoplifters demora a construir-se. Talvez pudesse ser mais desenvolto no mosaico de gestos e olhares com que nos propõe a trama e a figura de cada personagem. Mas o esforço do espectador é largamente compensado quando a narrativa entra em velocidade de cruzeiro.

É já um lugar comum em filmes de qualidade, mas não se pode deixar de referir a excelência dos desempenhos. Sem esquecer as magníficas crianças.

PS – Shoplfters é um dos poucos títulos que se destacam pela qualidade, no panorama anémico da distribuição cinematográfica em Portugal, nas semanas mais recentes. Na verdade em cada semana estreiam-se entre 10 a 12 filmes que oscilam entre o sofrível e o muito mau. Um panorama desolador. Na semana de estreia do filme de Kore-eda entrou, contudo, em exibição, o muito recomendável filme do russo Alexei German Jr., Dovlatov (2018).

Esta semana (13 de dezembro) estreou em Portugal a extraordinária e muito premiada  obra de Alfonso Quáron, Roma. Entre os muitos galardões recebidos está o do Júri Ecuménico Signis.

FICHA TÉCNICA
SHOPLIFTERS – Uma família de pequenos ladrões – Drama I M/14 anos I Duração: 2h01 minutos
Título Original: Manbiki Kazoku –  Japão, 2018
Realização e argumento: Hirokazu Kore-eda
Actores Principais: Lily Franky, Sakura Andô, Mayu Matzuoka, Jyo Kairi e Miyu Sasaki
Música: Haruomi Hosono
Fotografia a cor: Riûto Kondô

Em exibição:
Braga
Casa das Artes de V. N. de Famalicão
Telefone: 252371297
Sessões: 2ª 21h45
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Porto
Trindade
Telefone: 223162425
Sessões: 5ª 6ª Sáb Dom 2ª 3ª 4ª 21h45
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Lisboa
Medeia Monumental
Telefone: 213142223
Sessões: 5ª 6ª Sáb Dom 2ª 3ª 4ª 14h, 16h30, 19h10, 21h30
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Atlântida-Cine
Telefone: 214565653
Sessões: Sáb Dom 17h45
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Cinema City Alvalade
Telefone: 218413040
Sessões: 5ª 6ª Dom 2ª 3ª 4ª 13h, 18h50 Sáb 13h, 18h50, 19h40
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Fotografias descarregadas do site da Medeia Filmes. 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


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Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.

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