Breve Sinopse: Argumento desenvolvido sobre factos reais ocorridos no Brasil e em Itália, entre anos da década de 80 e 2000, ano da morte do ‘arrependido’ da Cosa Nostra, Tommaso Buscetta. O filme aborda as consequências das denúncias feitas por Buscetta ao juiz Giovanni Falcone e que culminaram na prisão e consequente condenação de centenas de membros proeminentes da Mafia siciliana, como Beppe Caló ou Totó Riina. Embora aborde as circunstâncias de vida de Buscetta neste período, o filme destaca os processos judiciais que conduziram às condenações.
Nota Crítica: E, depois de Bellocchio ter estado presente nas páginas de Brotéria em 2017, com Sonhos Cor de Rosa (2016), eis que a ele regressamos com este surpreendente filme, com o realizador a atingir os 80 anos de vida e a revelar-se em plena qualidade cinematográfica com O Traidor.
Quando, nos anos subsequentes à introdução do sonoro (1927), se deu, nos Estados Unidos, a explosão de filmes de gangsters – com particular incidência na Mafia – como aconteceu com filmes como Scareface, de Hawks ou O Inimigo Público, de Wellman (ambos de 1931), as ligas de censura e as autoridades policiais tiveram grande dificuldade em evitar que os personagens centrais dos criminosos não obtivessem junto do público um tipo de estatuto heróico, mercê do desenvolvimento dos argumentos que elaboravam as figuras dos protagonistas sustentadas, no caso, por actores emblemáticos como Paul Muni ou James Cagney.
Com O Traidor, estamos num terreno de integração da figura do mafioso (neste caso real, Buscetta) completamente oposto. Desde logo pelo título do filme, que não deixa margem a qualquer dúvida. Apesar de Buscetta, na sua inusitada justificação, se reclamar defensor de valores (!) defendidos por uma Cosa Nostra tradicional, não adulterada, e se aplicar constantemente o estatuto de uomo di onore (!), que delata em nome da defesa desses pretensos valores, Buscetta, é assassino, traficante de droga, corrupto e tão criminoso como aqueles que denuncia. E, em qualquer circunstância, não passa de um traidor, sejam quais forem os fumos de que se queira envolver. E, um dos elementos mais sensíveis na presente obra de Bellocchio, é o tratamento fílmico da atitude de distância face ao personagem central, renunciando a qualquer elemento que possa demonstrar simpatia.
Concretizando, lembremos o momento em que, no processo que envolve a nunca esclarecida cumplicidade com a Mafia do antigo primeiro ministro Andreotti (denunciada por Buscetta), se torna fácil ao advogado do político democrata cristão destruir a personalidade do denunciante, como assassino e traficante e, logo, nunca digno de crédito. O outro momento é a fundamental coda do filme. Quando, ruído pelo cancro e próximo da morte, Buscetta se encontra prostrado numa cadeira, à noite (e como a noite, e os seus símbolos, é coisa fundamental nos filmes de Bellocchio) é chamado à colação, num flasback, um assassinato em que durante anos persistira, um muito mais jovem Buscetta, para consumar tentativas frustradas e nunca abandonadas. Um uomo di onore?
A actividade da Mafia é-nos devolvida não apenas pelos relatos policiais ou judiciais mas, amplamente, pela literatura e pelo cinema.
Quando pensamos a Itália – para além da sua história fundamental no domínio das artes, da cultura e do cristianismo– ocorrer-nos-á, em relance, e no domínio das instituições, a Igreja Católica, a Democracia Cristã, as permanentes crises políticas, As Brigadas Vermelhas dos anos 70 e, mais recentemente, a ascensão da extrema direita e a sua cobiça pelo poder. Contudo, não poderemos deixar de acrescentar a esse elenco a trágica e perene ‘instituição’ que domina a vida italiana desde séculos, do mais ínfimo ao mais elevado escalão da vida comunitária e dos indivíduos, e que se consubstancia na denominação comum de Mafia. Seja a Cosa Nostra siciliana, seja a Camorra napolitana. Polvos tenebrosos que se estendem, como é conhecido, pelos Estado Unidos da América, com réplicas, por exemplo, na Rússia e no Japão.
A actividade da Mafia é-nos devolvida não apenas pelos relatos policiais ou judiciais mas, amplamente, pela literatura e pelo cinema. Quando Bellochio toma esta circunstância concreta da denúncia efectuada por Buscetta está a juntar mais uma peça à sua filmografia eminentemente política, como se verifica desde o início da sua carreira de realizador, em 1965, com I Pugni In Tasca. Porque O Traidor não é apenas um olhar como o de O Padrinho, de Coppola/Puzzo, por mais poderosa que seja a postura desta dupla. Em Bellocchio existe uma determinação política em toda a mise en scène que envolve o filme. Veja-se, fixando-nos apenas, a título de exemplo, nas várias e intensas cenas de tribunal, tendo em conta sobretudo como o cinema, comumente, aborda, de forma rígida e institucional esta instância.
Ora o realizador italiano oferece-nos profusamente algo que, através da confusão e da gritaria – seja dos magistrados, advogados (um deles aproveita para comer uma maçã!) ou dos acusados (que displicentemente fumam, apesar da proibição do juiz presidente, ou gritam impropérios a Buscetta) –, se aproxima mais do histrionismo de uma ópera bufa do que da dignidade de um tribunal comum. Tudo nos propõe assim, Bellocchio, para estabelecer um desenho que resulta na identificação dos mafiosos como gente desprezível.
O mesmo acontece com as acareações entre Buscetta e alguns dos acusados, situações caracterizadas por acusações e insultos mútuos. No fundo, indivíduos que se apresentam como amantes íntegros das suas famílias, religiosos e respeitadores, mais não são do que seres inferiores, marcados pelos piores crimes e sentimentos. Acrescente-se, se mais é preciso, as referências às manifestações de júbilo dos mafiosos ao bárbaro atentado com que a Cosa Nostra assassinou o juiz Giovanni Falcone, sua mulher e os agentes da sua segurança. Um atentado que emocionou toda a Itália, em 1992, o que é enfatizado, no filme, com recurso a imagens de arquivo.
Uma última palavra para realçar a qualidade de representação de Pierfrancesco Favino, encarnando o protagonista. Um sublinhado também para a música intensa de Nicola Piovani (n.1946), um compositor frequente no cinema italiano e que poderá ser colocado a par de Ennio Morricone e do falecido acompanhante de tantos filmes de Fellini, Nino Rotta. Para além da partitura de Piovani, é bem significativa a escolha de trechos de óperas veristas italianas para marcar o dramatismo de certos momentos particulares.
O TRAIDOR
(T.O.) – Il Traditore, 2019, I/F/A/Brasil
2H 25 minutos – M/16 anos Estreia em Portugal: 24/10/2019
Drama biográfico Realização: Marco Bellocchio
Música: Nicola Piovani Argumento: M. Bellocchio/Valia Santella
Montagem: Francesca Calvelli Fotografia a cores: Vladan Radovic
Actores principais: Pierfrancesco Favino, Luigi Lo Cascio, Fausto Russo Alesio, Maria Fernanda Cândido, Nicola Calì e Fabrizio Farracane
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
Sugestão Cultural Brotéria
Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.
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