Breve Sinopse: Veterano da Guerra da Coreia, Earl Stone (Eastwood) é um horticultor de 90 anos, falido e com a vida familiar destruída. É nessa circunstância que é ‘contratado’ por um poderoso cartel mexicano para ser correio de transporte de cocaína.
Nota Crítica: A actriz portuguesa Palmira Bastos falecida em 1967, com 91 anos, teve um último momento de glória, na sua longa e prestigiada carreira, ao interpretar no ano anterior o principal papel da peça As Árvores Morrem de Pé, em Lisboa, na Companhia Amélia Rey-Colaço/Robles Monteiro. Neste contexto de longevidade, Palmira Bastos testemunhava, ao vivo e com todo o mérito, a afirmação popular de que “velhos são os trapos”. Aforismo também assumido para título do filme de estreia (1981) da realizadora francesa, há longos anos radicada e a trabalhar em Portugal, Monique Rutler (1941), um filme que aborda a vida e os problemas de pessoas idosas. Vem este preâmbulo para recordar que o realizador e actor norte-americano Clint Eastwood, não tendo ainda os noventa anos do seu herói em The Mule, dele se aproxima, pois está, actualmente, com activos 88 anos. Sendo de sublinhar a veterania da persistente carreira deste realizador importa, no entanto, deixar claro que o que aqui faz trazer o filme agora estreado é a sua qualidade cinematográfica e temática, como adiante se apontará, de que se tem feito eco a crítica internacional e, agora, também a portuguesa.
Uma longa carreira
A carreira de Eastwood, como actor, começou, naturalmente, há longos anos, mais precisamente em 1955, no cinema, em papéis de pequena importância (nem sequer creditados), mas também na televisão. Curiosamente é em Itália, em 1964, que começa a ser notado ao participar, no destacado papel de protagonista, no filme de Sergio Leone Por Um Punhado de Dólares. Este filme, e o seu realizador, acabariam por ficar como marco na história do cinema mundial ao se identificarem com destaque no que ficou conhecido como western-spaghetti, uma retoma, em Itália, em meados da década de 60, de westerns ao estilo americano, rodados porém na Europa, com características estilísticas muito próprias. Estávamos numa época em que no país de origem, a América, o emblemático western entrava no ocaso: o seu grande mestre, John Ford (+1973) realizara o seu último e crepuscular western em 1962 (O Homem que Matou Liberty Valance). Eastwood colaboraria ainda em mais dois western-spaghetti de Leone e deixaria uma marca que projetaria a sua carreira como actor, nos Estados Unidos, a partir sobretudo de 1968, com Os Maridos de Elisabeth, de Joshua Logan. A partir de 1971 vai encarnar, numa série de filmes, a personagem do violento detective Harry: Dirty Harry, de Don Siegel, é o filme inaugural da linha. Uma série de filmes hoje muito questionada pela sua ideologia policial extrema e violenta que acabariam por se colar à pele conservadora de Eastwood que, é sabido, apoiou a controversa eleição de Donald Trump. O que é tanto mais surpreendente quanto, nas suas temáticas, embora jogando em sólidos valores tradicionais, Eastwood revela um espírito aberto.
Mas, 1971, é também importante para Eastwood porque, nele inaugura também a carreira de realizador, um papel que não será pontual mas regular ao longo das décadas seguintes, até ao presente. Quando em 1985 apresenta o western Pale Rider (Justiceiro Solitário) o realizador aborda então, pela terceira vez, e de forma nova, o universo do western: um reverendo, pistoleiro, mas defensor dos fracos. Esta abordagem do mítico género deixou um esteio para 1992 quando Eastwood realiza Imperdoável, o western que surpreende não só a Academia de Hollywood, mas a cena cinematográfica internacional. Nomeado para os Oscars Inforgiven recebe, entre outros, os prémios para melhor realizador e melhor filme. Mas, o feito maior, é ter reintroduzido no panorama cinematográfico uma reflexão aprofundada sobre este género americano. Na verdade, o filme fá-lo de forma crítica, desmonta o mito, usando uma linguagem que se transformará na marca de água de Eastwood: a feitura clássica, referindo este termo os valores da cinematografia americana solidificados por vários realizadores durante o chamado período de ouro do cinema americano, alicerçado na política dos estúdios, entre as décadas de 30 e 40 do passado século. Clint Eastwood ‘herdou’, de forma explícita e consciente, esses valores hoje tão arredados da produção americana corrente. Por isso os amantes do cinema lhe estão agradecidos e, mais uma vez, o encontram na excelente obra que é Correio de Droga.
Desde logo, essa feitura clássica ‘sente-se’ na fluidez da narrativa, servida por criatividade cinemática presente na composição dos planos e movimentos, bem como na montagem
Desde logo, essa feitura clássica ‘sente-se’ na fluidez da narrativa, servida por criatividade cinemática presente na composição dos planos e movimentos, bem como na montagem. O cinéfilo, ou o estudioso de cinema, para além da fruição da história contada, tenderá a um olhar clínico para a obra. Porém logo ficará seduzido pela claridade e eficácia de meios com que essa história é contada. Claro é que, Eastwood partilha um sólido argumento escrito por um parceiro que com ele já colaborara, há dez anos, para o argumento de Gran Torino, curiosamente o último filme em que o realizador também fora protagonista, enquanto actor. Essa oportuna e sólida história de um veterano da Coreia (antes, tal como agora), detentor de um carro de colecção (um Gran Torino), com dificuldade de aceitação de emigrantes asiáticos, fora escrita pelo mesmo argumentista que hoje nos oferece The Mule: Nick Schenk. Quantas vezes um argumento sofrível é base para um bom filme, pela arte de um realizador. Tal como um excelente argumento pode ser destruído pela inépcia do realizador tarefeiro. No caso presente um bom argumento é amplificado pela sólida arte do realizador. E nesta história Eastwood vai deixando marcos que na sua filmografia lhe são queridos: a crítica dos modismos sociais do momento, tais como os telemóveis e a internet; o poder da riqueza e de influência criminosa destruidora dos senhores da droga; o subtil afloramento dos métodos discricionários, senão brutais, da polícia, intimidando emigrantes e cidadãos pacatos. Mas, sobretudo, a sempre patente questão de fundo da família na sociedade americana, reiteradamente presente em outros dos seus filmes. A família (a ex-mulher, a filha, a neta) que Earl não conseguiu conservar, enquanto a profissão de intenso produtor de flores passou para primeiro lugar e o obrigou a calcorrear todos os Estados americanos para fornecimento do produto e participação em concursos e eventos sociais. É quando a falência lhe bate à porta e, literalmente lhe faz perder tudo (alegadamente devido à concorrência da internet), e se torna no acontecimento que lhe revela o vazio, que Earl se dá conta como foi ausente e recebeu em troca o repúdio de mulher e filha. A revisão de vida, e a transformação, não acontecerão por oportunismo: Earl nada em dinheiro. Dinheiro sujo pelos recebimentos da distribuição da droga. Mas, na verdade, o valor cimeiro é o da família, perdida e que se quer recuperar. Mesmo pondo em risco a vida, assumindo todas as culpas, passadas e presentes, no contexto familiar e no encargo do universo criminoso do tráfico. O que é extraordinário, nesta fase final, é que Eastwood roça os perigos do melodrama e, como realizador superior, os ultrapassa com êxito, de forma rápida, sóbria, digna. O filme, sabiamente, não tem um final feliz, mas termina de forma apaziguada naquilo que, para o realizador, é o objectivo essencial: a família, a família reconciliada.
Um elenco dirigido com talento
Uma palavra ainda para o elenco de actrizes e actores dirigidos com eficácia e talento. Sobressai, evidentemente, o próprio Clint Eastwood. Como escrevi acima, não o víamos nos seus filmes desde 1998. Realizador cimeiro (embora com pontuais pontos fracos), Eastwood é bom e experiente actor. Jogando subtilmente com as nuances que o argumento exige é sempre um prazer vê-lo representar, oscilando entre o drama e o ácido tom de comédia. Mas, temos também que lhe agradecer ter-nos voltado a oferecer a visão (há algum tempo arredada) da excelente actriz que é Dianne Wiest, aqui no papel da ex-mulher. Wiest é comovedora na mulher que nunca deixou de amar o marido, mas que se sente incapaz de aproximação pelo muito que sofreu. Só uma profissional maior consegue traduzir tais sentimentos, no ecrã, com proficiência e verdade. Quanto a Bradley Cooper, no pequeno papel do oficial da policia especial é sóbrio e eficaz. Cooper já colaborara com o realizador, em 2014, como protagonista do polémico Sniper Americano, sobre um caso real de um atirador do exército americano, no Iraque.
Só pode ser desejada, nas salas portuguesas, uma carreira longa a tão bom filme, a vários títulos. Bom filme de um homem de 88 anos! Velhos são os trapos…
Ficha técnica
Título original: The Mule – EUA, 2018 – Drama
Estreia em Portugal: 31/02/2019
1H56 minutos – M/14 anos
Realização: Clint Eastwood
Argumento: Nick Schenk
Música: Arturo Sandoval
Fotografia: Yves Bélanger
Elenco: Clint Eastwood, Bradley Cooper, Dianne Wiest, Lawrence Fishburne, Taissa Farmiga, Alison Eastwood, Ignacio Serricchio, Michael Peña e Andy Garcia
No Cinecartaz do Público fique a a saber onde ver o filme.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
Sugestão Cultural Brotéria
Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.
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