“Inominável evento global”

A sugestão da Brotéria para este fim de semana é ler um belíssimo texto de Jacinto Lucas Pires. "Estamos a aprender a pensar sem a enciclopédia instantânea. A aprender a passar o tempo, a comunicar, a imaginar. Voltámos ao zero do jogo."

A sugestão da Brotéria para este fim de semana é ler um belíssimo texto de Jacinto Lucas Pires. "Estamos a aprender a pensar sem a enciclopédia instantânea. A aprender a passar o tempo, a comunicar, a imaginar. Voltámos ao zero do jogo."

Faz hoje exatamente um ano que a internet ruiu. Quem viveu esse nublado 4 de julho sabe que foi como uma catástrofe natural. Uma catástrofe que se abateu sobre todo o planeta ao mesmo tempo. Não entrarei em pormenores. Episódios aborrecidos, factos conhecidos. Se refiro aqui esse dia (esse segundo, nanossegundo), é para que o leitor futuro consiga perceber um pouco melhor os nossos atos, isto é, os atos da geração a que pertenço e das que nos seguirão. Sim, porque esse evento (num esforço de negação tão hercúleo quanto inglório, recusamos dar-lhe um nome, como se, apenas depois do nome, ele se tornasse indesmentível e inalterável) mudou tudo. Ou antes, desmudou tudo. De um dia para o outro, regressámos ao passado. Ou antes, o passado apanhou-nos.

No momento em que redijo esta missiva, o mundo está fantasmático. Da minha janela, vejo a Praça cheia de gente a passar. O próprio movimento das pessoas espelha o vazio em que vivemos. Ninguém caminha com um propósito, um destino; somos turistas de nós mesmos, presos numa hesitação mais ou menos leve, sem um lugar a que possamos chamar casa. Primeiro morreram as religiões, depois as ideologias e, por fim, a internet. Desenterrámos o passado e ele agora anda por aí a espalhar cinzas. Solto mas não livre; perdido ou pior, pois nem sabe como se procurar.

Estamos a aprender a pensar sem a enciclopédia instantânea. A aprender a passar o tempo, a comunicar, a imaginar. Voltámos ao zero do jogo. Somos outra vez só feitos de carne e osso, e começamos a dar-nos conta da nossa mortalidade, com todo o susto que isso implica. Não é possível exagerar a importância desse “inominável evento global”. O desabamento da internet abriu uma nova idade do gelo que condiciona toda a nossa conduta individual e coletiva. (Caramba, uso as palavras com o pudor de uma virgem desnuda. Um mundo sem net “condiciona” a nossa vida mais ou menos como um corpo “condiciona” a alma. Condiciona e condicionará: por mais quantos anos, décadas ou séculos. Serão estes pruridos de linguagem já um sintoma da minha condição de órfão da internet?)

Somos outra vez só feitos de carne e osso, e começamos a dar-nos conta da nossa mortalidade, com todo o susto que isso implica. Não é possível exagerar a importância desse “inominável evento global”.

Há quem tente imitar as pessoas do passado. Jovens casais mudam-se para o campo, regressam às florestas, criam miúdos selvagens. É uma reação compreensível, embora fútil e condenada ao fracasso. Nem é preciso ter presente que o que nos define enquanto humanos é a consciência e a cultura, ou seja, tudo o que acrescentamos à natureza; bastaria esses novos “naturalistas” escutarem, de facto, o que dizem as mesmíssimas florestas, praias e montanhas que tanto os encantam para perceberem que o caminho nunca é para trás.

Mas, para a frente, é tão difícil. Inconcebível, quase. Chocamos com a nossa pergunta, uma e outra vez, como moscas contra o vidro. Não? Sim? Quê?

Também eu desesperei nessa luta. Até que, um dia, acordei e soube. Estava lá, feito de frases nenhumas, na composição do ar à minha volta. O futuro é tornarmo-nos a nossa própria rede. Sermos vários Borges como Borges, várias pessoas como Pessoa, todos os homens e mulheres de ontem e hoje e amanhã como Whitman, Walt. Isso implica, naturalmente, muito treino.

Caro leitor do futuro, eu não sou eu, sou muitos. Mil, os que vos escrevem deste remoto passado, milhões. Tanto silêncio entre isto e isso. A língua destas palavras existirá sequer nesse amanhã em que o seu pensamento, querido leitor ou leitora, as tenta decifrar?

O meu corpo, o meu espírito, somos uma rede. Dizer corpo ou espírito equivale-se. Corpo voa, espírito beija. No momento em que digo isto, deixando as palavras como bolas de brincar que uma criança depositasse na solene máquina do tempo da sociedade dos adultos (durante um tempo entre parêntesis em que a sociedade dos adultos se distrai a discutir questões práticas e prementes), a minha voz sabe mais do que eu. Escuta-me, por favor, sem ideias nos ouvidos. Querido leitor ou leitora do futuro. Como se nos entregássemos um ao outro no mais puro dia do verão. Corpo e espírito, sou só e sou mais. Trabalho-me o mais distraidamente que consigo até ser a melhor ferramenta de mim mesmo. Quantos mins. Enquanto escrevo isto, sou uma mulher lavando os pés nas traseiras clandestinas de uma loja de penhores em Valparaiso, no Chile, sou um verso isabelino imaginando uma dama a cruzar o palácio real como um espelho em chamas, sou a imagem formada pela sombra da Ponte Dourada de São Francisco sobre a água, uma imagem quebrada, abstrata, que um miúdo de onze anos vê, por acaso, da parte de trás de um automóvel em movimento e que o faz sentir mais amor no peito do que alguma vez, por razão nenhuma, ou pela desrazão que é pressentir o mistério da beleza de um único trago, e sou o binómio de Newton, e a teoria de Einstein que diz que massa e informação nunca viajarão tão velozes quanto a luz, e também sou o fluxo sem sujeito que se apazigua sobre a terra quando chega a hora, uma noite sem história pousando num canto do Saara, neste canto da Europa. Assim não acabamos, eu. A rede que somos. É nisto que acredito agora. Isto que rezo ao Deus-Sem-Deus destes novos dias desertos. Poucas palavras ativam a rede. Repete-as connosco, leitor do futuro, leitora, e estarás o mais perto possível de saber como sofremos e subimos.

 

Texto lido por Jacinto Lucas Pires na sua intervenção no encontro Fé e Cultura 2019. 

Escrito originalmente para o ciclo “Outra sociedade – À volta das ideias de Ivan Illich”, da Casa da Achada

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