Green Book: um pequeno filme aumentado pelos óscares

Para Carlos Capucho, Green Book faz uma abordagem superficial da questão premente do racismo, nos Estados Unidos, recusando as premissas de fundo do problema. Partindo de uma crítica a este filme, o crítico menciona os limites dos óscares.

Para Carlos Capucho, Green Book faz uma abordagem superficial da questão premente do racismo, nos Estados Unidos, recusando as premissas de fundo do problema. Partindo de uma crítica a este filme, o crítico menciona os limites dos óscares.

Breve Sinopse: A acção situa-se no ano de 1962. O italo-americano Tony Vallelonga (conhecido como Lip Vallelonga) é segurança num restaurante em Nova Iorque. Quando a casa fecha para remodelação Lip vê-se desempregado e sem meios para enfrentar as despesas familiares. Como recurso aceita tornar-se motorista e guarda-costas do Dr. Don Shirley, um talentoso e sofisticado pianista negro, de formação clássica, que vai realizar uma longa tournée pelos estados do sul da América.

Nota Crítica: Responsável – juntamente com seu irmão Bobby – por um conjunto de comédias descabeladas na década de 90 (Doidos Por Mary [1997] é um exemplo), o historial dos seus filmes não justificava qualquer expectativa. Green Book parte de acontecimentos verídicos (assim é apontado) relacionados com o brilhante pianista Don Shirley, através das lembranças que ecoam na memória do filho de Lip Vallelonga, Nick, co-autor do argumento. Situado no pretexto da itinerância artística de Shirley pelo sul racista dos Estados Unidos – durante a presidência de Kennedy – o filme desenvolve-se com alguma ligação a um subgénero fílmico caro ao cinema americano, designado on the road. Uma temática que tem como expoente o celebrado filme de Dennis Hopper Easy Ryder (1969), premiado no Festival de Cannes nesse mesmo ano. Refira-se que os filmes com a marca on the road têm, por sua vez, filiação num tipo de literatura específica em que, justamente, se evidencia a célebre obra de Jack Kerouak On the Road (1957), um relato pessoal do autor que é considerado a grande referência da geração Beatnik nos Estados Unidos. Sem grande brilho, diga-se, o brasileiro Walter Salles levou ao grande ecrã, em 2012, uma adaptação desta obra literária.

O título original do filme, Green Book , – a que o distribuidor português sentiu necessidade de acrescentar o pouco inspirado subtítulo de Um Guia Para a Vida – é o título abreviado de um guia de viagem (The Negro Motorist Green Book) concebido por Victor Hugo Green em 1936, e reeditado até1 966, para ajudar os motoristas negros a encontrarem com segurança, entre outros estabelecimentos, locais de restauração e dormida, aqueles que recebiam negros, no sul racista dos Estados Unidos.

Há dois modos de entrosar as reacções ao filme de Farrelly. As cinematográficas e as que olham o tema. E ambas dizem respeito a situações presentes no filme e ambas estão, sobretudo nos Estados Unidos, envoltas em acesa polémica, antes e depois da atribuição dos Óscares da Academia de Hollywood. Olhemos um pouco para ambas.

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Mahershala Ali e Viggo Mortensen protagonizam Green Book

Do meu ponto de vista, e de muitos observadores atentos, fala-se tanto de Green Book porque o filme foi nomeado para os Óscares. Não fora isso e o desempenho interessante dos dois protagonistas, o filme passaria desapercebido. Seria mais um pequeno filme no meio de outros: nem bom nem mau. Farrelly segue uma cartilha canónica de fazer filmes à moda de Hollywood, com algum humor, dois bons actores e, sobretudo, sabendo muito bem (ele e o produtor) da receita de que gostam os que votam nas várias categorias cinematográficas da Academia, e do que rende no lobbing. É por isso surpreendente que Green Book tenha obtido o galardão para o melhor filme. Pode compreender-se que a Academia não tenha querido colocar todos os ovos no mesmo cesto e tenha atribuído ao excelente Roma, de Quarón, apenas o Oscar para o Melhor Filme Estrangeiro, quando estava também nomeado para Melhor Filme e já recebera os prémios para Melhor Realizador e Melhor Fotografia. Porém, se olhamos para a lista de nomeados para Melhor Filme encontramos (além de Roma), entre outros, A Favorita, de Lanthimos, A Star Is Born, de Bradley Cooper, BlacKkKlansman, de Spike Lee ou Vice de Adam McKay, cinco filmes cuja solidez fílmica deixa Green Book a uma considerável distância. Se é surpreendente, este ano, o triunfo de um filme como o de Peter Farrelly, a surpresa perde força se olharmos, ao longo dos anos, o historial dos Óscares, e verificarmos que situações destas se repetem amiúde. Não é uma excepção, é um modo de proceder frequente. O que estou a sublinhar para o filme pode ser repetido quanto à atribuição do Oscar para o argumento original, também entregue a Green Book. O melhor argumento? Quando nos nomeados estavam, além de Roma, o magnífico No Coração da Escuridão, de Paul Schrader (o argumento foi a sua única nomeação…), Vice e A Favorita? É, pelo menos, questionável? É, pelo menos!

E poderá perguntar-se, também: gastar tantas linhas com os Óscares? Na verdade os prémios da Academia de Hollywood valem o que valem. Mas não é admissível que nos vendam gato por lebre neste mundo global do dominante cinema americano que, embora e felizmente, também produz filmes de superior qualidade. Alguns, a Academia de Hollywood premeia-os. Outros, porém, aos Óscares, ‘dizem nada’!

Falar do argumento leva-nos a reflectir acerca da temática proposta em Green Book. Um tema envolto numa estória que brota, como já foi dito acima, das lembranças do filho de Lip Vallelonga, estória contestada pelos familiares de Don Shirley, falecido em 2013. Numa referência ácida já li a aproximação de Green Book ao também oscarizado, em 1989, Driving Miss Daisy, de Bruce Beresford. Pessoalmente creio ter alguma validade a aproximação. Trata-se, aqui, tal como no filme de Farrelly, de uma abordagem superficial da questão premente do racismo, nos Estados Unidos, recusando as premissas de fundo do problema, do ponto de vista social e político para, de uma forma leve e simpática, se enveredar por uma receita de boa vontade pessoal. No fundo, são ‘todos bons rapazes’ e, com um pouco de compreensão, tudo se resolve, no fim, com abraços e beijos, mas, no âmago, tudo fica na mesma. Poderão dizer-me: vale mais um filme assim do que nada. Talvez, mas é pouco e falacioso.

E poderá perguntar-se, também: gastar tantas linhas com os Óscares? Na verdade os prémios da Academia de Hollywood valem o que valem. Mas não é admissível que nos vendam gato por lebre neste mundo global do dominante cinema americano que, embora e felizmente, também produz filmes de superior qualidade. Alguns, a Academia de Hollywood premeia-os. Outros, porém, aos Óscares, ‘dizem nada’! Exemplo gritante disso mesmo, neste ano de 2019, referente à produção de 2018, exemplo apontado internacionalmente, é o já citado filme de Paul Schrader No Coração da Escuridão (First Reformed), com interpretação superlativa de Ethan Hawke, porém ignorada nas nomeações, tal como o filme e o realizador. Um argumento profundo relatando as angústias, bem actuais, do pastor da Igreja First Reformed, congregação antiga dos Estados Unidos. É chocante que esse argumento (a única nomeação do filme) tenha sido preterido em favor do de Green Book.

 


Green Book – Um guia para a vida

Título Original: Green Book – EUA, 2018   I Comédia dramática  I Classificação: M/12 anos I 2H10 minutos
Realização: Peter Farrelly
Actores Principais: Viggo Mortensen, Mahershala Ali (Oscar para Melhor Actor Secundário) e Linda Cardellini
Argumento: Nick Vallelonga e P. Farrelly    
Música: Kris Bowers
Fotografia a cores: Sean Porter

Em exibição: veja os locais aqui

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


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