Francisco falou-te em Portugal do caos da tua vida

O Papa disse-nos coisas exigentes, deixou-nos muito trabalho de casa. Engana-se quem pensa que a sua mensagem veio confortar os descomprometidos, condescender a um cristianismo de mínimos olímpicos. O Papa não veio dizer que está tudo bem.

O Papa disse-nos coisas exigentes, deixou-nos muito trabalho de casa. Engana-se quem pensa que a sua mensagem veio confortar os descomprometidos, condescender a um cristianismo de mínimos olímpicos. O Papa não veio dizer que está tudo bem.

“Todos, todos, todos! Na Igreja, há lugar para todos” (1). Foram as palavras que o Papa Francisco quis que todos repetíssemos e que ficarão como um slogan da JMJ. São um desafio à compreensão de todos, a imitarmos esse olhar de Jesus que não descriminou ninguém, amou todos os pecadores. E detestou o pecado, o mal que podia haver em cada um. A este propósito, a imagem da Igreja como um “hospital de campanha” de que o Papa tanto falou, é muito adequada. O que vai uma pessoa fazer a um hospital? Certamente entra com a esperança de sair melhor, curado, conhecedor do seu diagnóstico, um ponto de partida para uma terapia que lhe devolva a saúde, a vida, a normalidade.

Se a porta da Igreja deve estar aberta a todos, como essas portas da Capelinha em Fátima, ou as portas de um hospital, parece-me que o Papa espera que essa entrada seja transformadora. A palavra que o Papa mais utilizou nos seus discursos em Portugal não foi “todos”. Foi “Jesus”. Disse-o 102 vezes. (2) E, como diz Francisco, quando Jesus entra na nossa vida, “chama-nos para nos fazer caminhar, chama-nos para nos refazer”. (3) Ou seja, só é possível estar na Igreja com estas disposições: caminhar, refazer-se, deixar-se transformar por Ele.

Confesso que demorei uns dias para ler todos os textos do Papa em Portugal. Necessitamos de tranquilidade para os aprofundar. O Papa disse-nos coisas exigentes, deixou-nos muitos trabalhos de casa. Engana-se quem pensa que a mensagem do Papa veio confortar os descomprometidos, condescender a um cristianismo de mínimos olímpicos. O Papa não veio dizer que está tudo bem e pedir que sejamos bonzinhos. Pediu radicalidade na maneira de viver o Evangelho.

A este propósito, uma das metáforas mais felizes e teologicamente mais profundas foi a que utilizou em Cascais, na sua visita à Fundação Scholas Occurrentes. Na sede da instituição, uma jovem portuguesa ofereceu ao Papa um pincel, que Francisco utilizou para dar a última pincelada num mural de três quilómetros pintado por mais de três mil pessoas. Francisco respondeu antes, de improviso, a um jovem brasileiro evangélico de 24 anos que o abordou sobre o tema do caos na criação do mural e na vida de cada um. Francisco responde: “Houve alguém que disse que a vida do homem, a nossa vida humana, é fazer um cosmos a partir do caos, ou seja, a partir do que não faz sentido, do que é desordenado, caótico, fazer um cosmos que faça sentido, que seja aberto, convidativo, composto”. Para Francisco, o caos das linhas aleatórias desse mural pode-se converter numa obra tão bela como a Capela Sistina. Essa é a transformação pedida. Mas não é automática. É iniciativa de Deus, “que nos chamou a todos desde o início das nossas vidas; chamou-nos pelos nossos nomes”. (4) Desse Deus “que amou tanto o mundo que deu o seu único Filho, para que todo aquele que Nele crê não se perca, mas tenha a vida eterna (Jo 3, 16)”.

Para Francisco, o caos das linhas aleatórias desse mural pode-se converter numa obra tão bela como a Capela Sistina. Essa é a transformação pedida. Mas não é automática. É iniciativa de Deus, “que nos chamou a todos desde o início das nossas vidas; chamou-nos pelos nossos nomes”.

Esta comparação é muito poderosa e ajudou-me a tirar uma série de ideias para a minha vida de cristão e de padre. O Papa não a proferiu diante de um público erudito, mas diante de pessoas desfavorecidas. O que é que quer dizer para mim passar do caos ao cosmos?

1. Reconhecer a soberania de Deus na minha vida. A origem do mundo está n’Outra pessoa. O mundo já funcionava quando nascemos. Não somos nós que ditamos as leis da física ou da química. A realidade não nos obedece. Há um primeiro movimento que é preciso respeitar: as coisas são como são, não como deveriam ser. “Deus ama-nos como somos. Não como gostaríamos de ser, mas como somos agora”. (5)

2. Dar um nome aos teus problemas. Francisco sabe que há caos na minha vida e na tua. Mas isso não é um problema. Existe um Pai, que é o Criador, e perante o qual cabem duas atitudes: abrir-se ou encerrar-se na amargura, no desânimo. Esse não é só o dilema dos que ouviram Francisco em Lisboa. É o desafio do povo de Israel ao longo dos séculos. “A terra era um caos e um vazio, as trevas cobriam a face do abismo e o espírito de Deus pairava sobre as águas” (Gen 1,2a.) Esta situação incoerente, sombria, deformada, desolada é também apresentada nos textos proféticos.

3. O caos não é a situação definitiva. O estado de caos (vazio, turbilhão) passa a kosmos (ordem, em grego, de onde provém a palavra cosmética, algo ordenado, belo). O mundo começa na desordem e Deus, pela sua palavra, leva-o à ordem e à beleza. O logos (a palavra) é o ponto de apoio da alavanca desta cosmética do caos. Uma das questões mais difíceis que tive que responder na catequese foi a de uma criança que me perguntou: “Se Deus é todo-poderoso porque demorou sete dias a criar tudo isto? Não podia ter carregado num botão para que tudo começasse a existir”? O que estava latente naquela ingénua pergunta era a compreensão da razão pela qual Deus fizera o mundo daquela forma: primeiro como uma confusão e depois parece que o foi corrigindo, arrumando-o. Porque não o fez diretamente belo e em menos tempo? Isto não faz sentido. Para aquela criança, o mundo, o belo, seria o lógico, o compreensível. O caótico, o ilógico, seria o mal feito, o erróneo. E o Papa em Cascais veio-nos confundir estas categorias, desarrumar as nossas ideias, desinstalar-nos das nossas certezas. Olhamos para a nossa vida e vemos que o caos e o cosmos convivem no nosso quotidiano. Um casamento é tantas vezes um acontecimento caótico. Seguir a vocação sacerdotal é um percurso caótico. Crescer é um acontecimento imprevisível; para muitos, nesta altura, ir de férias tem uma dinâmica ilógica; ter uma pessoa idosa em casa torna a vida confusa; ter um filho é pura desordem. Um dia nunca se desenrola como pensámos. As coisas nunca são como “deveriam ser”. O mundo é caótico. Mas nada disso é original. A própria vida de Cristo foi o caos. Cristo nasce numa situação caótica, nem sequer há lugar para Ele na estalagem; é ameaçado por um rei e tem de passar os primeiros anos da sua infância no exílio, no Egipto.

4. O caos faz parte da tua vida. Das aulas de Física do Instituto Superior Técnico, do primeiro ano de faculdade, não recordo muitas coisas. Ficou-me esta ideia: a entropia é a função que define o estado de desordem de um sistema. Em física, o caos, curiosamente, não é um estado sem ordem, mas com uma ordem tão elevada que não pode ser abordada com os nossos conhecimentos matemáticos. Assim, o primeiro passo para recomeçar é aceitar o caos, as nossas imperfeições, o pecado que existe em nós, essa distância grande, enorme, infinita que há entre cada um e Cristo, a quem somos chamados a imitar. “A vida é assim: cair e recomeçar, aborrecer-se e recobrar a alegria. Aceitar esta mão que nos dá Jesus”. (6) O Papa quer que aceitemos a nossa primeira vocação: viver. Não é coisa pouca. Todos somos importantes aos olhos de Deus. Por isso foi tão significativa a ida do Papa ao Bairro da Serafina. Porque, ali entre os mais necessitados, também aconteceu a JMJ. É preciso olhar para tantas pessoas que se satisfazem com pouco, que aprenderam a ser felizes com as suas limitações, que vivem intensamente essa vocação que se chama vida.

O Papa quer que aceitemos a nossa primeira vocação: viver. Não é coisa pouca. Todos somos importantes aos olhos de Deus.

5. O principal inimigo: impedir que façamos o bem. “Deus, a partir do caos, um dia faz a luz, outro dia faz o Homem e vai criando coisas e transformando o caos em cosmos”. (7) É o primeiro dia da criação, o dia em que Deus cria a luz. “É preciso fazer as obras daquele que me enviou enquanto é dia, porque vem a noite, quando ninguém pode trabalhar “(Jo 9, 4).  O trabalho em que o inimigo da natureza humana, como lhe chama Santo Inácio de Loyola, é mais teimoso, não é o de nos fazer cometer o mal. O trabalho fundamental do inimigo é impedir-nos de fazer o bem. Isso é muito diferente. Não é importante para as trevas levar-nos a fazer o mal. Não é esse o objetivo. O importante para o pai da mentira é que nos afastemos do nosso dia, dos nossos trabalhos. O importante para ele é fazer-nos perder tempo.

6. Há coisas que não precisam de discernimento. Fabio Rosini (8) dá o exemplo de entrar numa sala escura. Quando alguém encontra o interruptor liga-o: a princípio, a luz incomoda-nos. As primeiras coisas que se vêem são as coisas grandes. Não veremos todos os pormenores. Experimentaremos o impacto com os objetos relevantes, o que salta imediatamente à vista. O mesmo acontece na vida espiritual: não podemos partir dos pormenores, dos detalhes. Francisco diz-nos que, para permitir que Deus nos reconstrua, é preciso partir das coisas macroscópicas, daquelas que se vêem logo que se acende a luz. Aquilo que é evidentemente, a vontade de Deus. Se caímos, a primeira coisa a procurar para nos deixarmos reerguer pela generosidade do Pai, ou para voltarmos a funcionar bem, deve ser algo que esteja ao nosso alcance, imediatamente disponível. Há coisas que não precisam de discernimento. São evidentes. Acendemos a luz e vemo-las.

7. Faz uma lista com as evidências da tua vida. “É bom tudo o que estamos a experimentar com Jesus, aquilo que vivemos juntos, e é bom como rezámos, com tanta alegria de coração. Mas perguntámo-nos: Que levamos connosco ao regressar à vida quotidiana?”. (9) O Papa fez-nos refletir sobre as verdades fundamentais da existência. Mas também sobre aquelas do quotidiano. A que horas me deito? A que horas me levanto? A que horas rezo? Onde é que posso ir à Missa? Há quanto tempo não me confesso? Quando é que dedico tempo aos outros? Tenho que pedir desculpa a alguém? O meu quarto está muito desarrumado?

Quando tinha 18 anos, numa sessão de acompanhamento espiritual, um padre lançou-me este desafio. “Tenta descrever, desde que te levantas até que te deitas, o que fazes com o teu tempo”. Não lhe pude responder porque tinha vergonha. Rimo-nos os dois. Aquele bom sacerdote ajudou-me a pôr os pés na terra. A entender que perdia o tempo. Descobri essa evidência: Deus está à minha espera na minha vida real, no meu estudo, nos meus amigos e família, mas era eu que não estava lá. Ressoavam com força aquelas palavras de S. Josemaria: “ou sabemos encontrar Nosso Senhor na nossa vida corrente ou nunca O encontraremos”. (10)

Francisco louvou os portugueses pela “atenção ao «aqui e agora», (…) o cuidado dos pormenores e sentido prático, belas virtudes típicas do povo português”.  As grandes evidências da minha vida e da tua são as coisas concretas. São os deveres implícitos à tua condição. Um estudante tem que ir às aulas e estudar. Há dias em que para ter tempo para Deus tenho que dizer que não a esse jogo de futebol ou a essa série de televisão. E para os casados, é evidente que não é preciso que um anjo desça do céu para te lembrar que, se não falares com a tua mulher, é difícil que se possam entender. E que, se não perderes tempo com o teu filho, como queres saber o que o preocupa de verdade? Mas eu queria fazer o “Caminho de Fátima a pé”. Sim, tudo bem, mas o problema é que nunca chegas a casa a horas de jantar.

Na vida espiritual, não se pode avançar através do extraordinário, é preciso começar pelo simples. Gostaríamos de nos tornar S. Francisco Xavier a partir do zero, em doze lições, com um livro de autoajuda ou com tutorials do YouTube. Mas isso não é possível, não existe.

Estas são as primeiras evidências, temos de começar por aí. Mais vale o simples do que o complicado, sempre. Começa por visitar o teu familiar que está no hospital. Limpa o espelho. Então, olharás para ti próprio, como és. Na vida espiritual, não se pode avançar através do extraordinário, é preciso começar pelo simples. Gostaríamos de nos tornar S. Francisco Xavier a partir do zero, em doze lições, com um livro de autoajuda ou com tutorials do YouTube. Mas isso não é possível, não existe. Quando se sobe uma montanha é preciso começar devagar, não se pode começar com pressa, porque depois fica-se exausto e não se chega ao cume.

Para passar do caos ao cosmos, o trabalho de casa que o Papa nos pede é listar essas primeiras evidências; quatro ou cinco. Tenta reconhecê-las. E recomeçar. Talvez depois de muito tempo. Se fizeres essa lista e tiveres a coragem de a apresentar a alguém que te ame de verdade e a um diretor espiritual — porque só quem te ama de verdade, olha para ti de verdade — terás mais luz.

***

Quando acabares por admitir que não podes adiar mais alguma coisa, e a outra pessoa acenar silenciosamente com a cabeça, ou disser “já não era sem tempo”, podes ter a certeza de que esta JMJ valeu a pena. E tenho a certeza que o Papa ficará igualmente contente. Quando reconheces que Deus faz parte da tua vida, que o caos não é a situação definitiva e que tens uma resistência interior que te leva a perder tempo e não dedicar as melhores energias a Deus e aos outros, então podes-te levantar apressadamente como Maria. Então a luz transformará esse caos em cosmos. Nesse momento a tua vida é um lugar de beleza com as portas abertas a todos para que todos encontrem em ti a imagem de Cristo que procuram.

 

Notas:

  1. Discurso do Papa Francisco na cerimónia de acolhimento no Parque Eduardo VII.
  2. Notícia da Rádio Renascença: https://especiais.rr.pt/discursos-do-papa-jmj-portugal/
  3.  Discurso do Papa Francisco nas Vésperas no Mosteiro dos Jerónimos
  4. Discurso do Papa Francisco na cerimónia de acolhimento no Parque Eduardo VII
  5.   Discurso do Papa Francisco na cerimónia de acolhimento no Parque Eduardo VII.
  6.  Discurso do Papa Francisco nas Vésperas no Mosteiro dos Jerónimos
  7.  Discurso do Papa Francisco no encontro com os jovens da Scholas Occurrentes.
  8.  Fabio Rosini, “L’arte di ricominciare. I sei giorni della creazione e l’inizio del discernimento”, San Paolo Edizioni
  9.  Homilia do Papa Francisco da Missa de Envio (Campo da Graça)
  10.  S. Josemaria, Homilia “Amar o Mundo Apaixonadamente”, em “Entrevistas a S. Josemaria”, Aletheia Editores.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.