“Estudar na Gregoriana é uma grande experiência de universalidade”

P. Nuno Gonçalves termina a 31 de agosto o mandato de seis anos de reitor da Pontifícia Universidade Gregoriana em Roma. Uma instituição que remonta a Santo Inácio e conta com alunos de 125 nacionalidades e distintas proveniências eclesiais

P. Nuno Gonçalves termina a 31 de agosto o mandato de seis anos de reitor da Pontifícia Universidade Gregoriana em Roma. Uma instituição que remonta a Santo Inácio e conta com alunos de 125 nacionalidades e distintas proveniências eclesiais

1. Como avalia o mandato que está prestes a terminar como reitor numa universidade cujas origens remontam ao próprio Santo Inácio de Loiola e tem hoje alunos de 125 nacionalidades distintas?
É verdade que as origens da Pontifícia Universidade Gregoriana remontam a S. Inácio de Loiola que, em 1551, fundou o Colégio Romano que se tornou, em poucos anos, um importante centro de formação. Esse centro incluía o que chamaríamos hoje ensino secundário, mas também o ensino universitário. De facto, logo em 1553, os jesuítas do Colégio Romano começaram a ensinar Filosofia e Teologia e foi-lhes concedida a possibilidade de conferirem graus académicos. Sendo frequentado por estudantes provenientes de toda a Europa, o Colégio ficou também conhecido com a designação universitas omnium nationum que sublinhava o seu carácter internacional. Esse carácter é ainda mais evidente nos nossos dias, com 125 países representados e uma maioria de estudantes – cerca de 55% – provenientes de fora da Europa.
Os seis anos como reitor foram muito intensos e diversificados. Usei frequentemente imagens musicais para falar do papel do reitor, dizendo que precisa de agir como um maestro que dirige uma orquestra, ouvindo todos, promovendo a harmonia e valorizando o papel de cada um. Numa universidade como a Gregoriana, o reitor tem um papel importante de escuta, de incentivo, de coordenação e de orientação. Por vezes, também, retomando as imagens musicais, tem de estar atento a quem eventualmente tenda a desafinar ou a não respeitar a partitura!
Senti sempre a importância da colegialidade, da coresponsabilidade, da confiança recíproca e do princípio de subsidiariedade. Tentei aplicar estes princípios na minha atuação e procurei que se agisse do mesmo modo nas várias unidades académicas que compõem a Universidade.
Quanto à avaliação, deixo-a para outros! Da minha parte, só posso agradecer a colaboração generosa e competente de quem trabalha na Universidade com um grande espírito de missão. Acrescento apenas que foi um mandato marcado pela pandemia que nos trouxe dificuldades e sofrimento, mas também muitas aprendizagens. À pandemia pudemos responder eficazmente graças ao espírito de corpo, ao profissionalismo e à dedicação de professores, estudantes e pessoal técnico e administrativo.

2. Como é que a internacionalidade e diversidade marcam a experiência académica e eclesial que os estudantes têm?
Todos os membros da comunidade universitária estão imersos neste ambiente internacional muito enriquecedor. Para nos apercebermos deste ambiente, basta passar pelos corredores, pelas salas de aula, pela biblioteca ou pelo bar. A internacionalidade que vivemos significa uma grande diversidade de formações anteriores e uma grande diversidade de culturas e contextos eclesiais de proveniência. Temos de nos adaptar uns aos outros e procuramos valorizar as vivências prévias. Os professores guiam e acompanham, mas, simultaneamente, todos aprendemos com as experiências uns dos outros. Costumo dizer que a Universidade Gregoriana não existe para formatar estudantes, mas para os formar. Fá-lo, estimulando as capacidades individuais e levando cada um a alcançar o próprio magis, num percurso atento a cada pessoa, como é próprio da tradição pedagógica inaciana. Esta atenção a cada um, no entanto, não cultiva o isolamento. Pelo contrário, é um processo em que a interação com os professores e os colegas é fundamental pela riqueza formativa que proporciona. Por isso, costumamos também dizer que estudar na Gregoriana é uma grande experiência de universalidade que fica para toda a vida.

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P. Nuno Gonçalves com um grupo de estudantes no edifício central da universidade.

3. A Gregoriana é uma universidade com uma vocação universal que presta um serviço à Igreja universal e onde foram formados muitos dos bispos do mundo inteiro. Quem é que neste momento a Universidade está a formar?

A sua pergunta leva-me a sublinhar que a universalidade a que me referi há pouco, dizendo que é uma característica essencial da Universidade Gregoriana, não é uma realidade teórica ou abstrata. É algo de muito concreto. O facto de me cruzar todos os dias com estudantes de 125 países diferentes leva-me a outros horizontes, faz-me atravessar em pouco tempo muitas fronteiras e alarga as minhas preocupações e prioridades ao mundo inteiro. Por exemplo, o que se passa na Ucrânia, na China, no Congo ou no Brasil não o sei apenas pelo que vejo ou leio nos jornais, na televisão ou nas redes sociais. Tenho a possibilidade quotidiana de falar com estudantes provenientes destes países e de me aperceber dos seus anseios, sentimentos e preocupações.
Perguntou-me quem estamos a formar.  Para além da internacionalidade, há também na Gregoriana a presença de uma grande diversidade de vocações: seminaristas e jovens sacerdotes, consagrados e consagradas, leigos e leigas. Os leigos são cerca de 21%, o que é já significativo numa universidade dedicada aos estudos eclesiásticos como a Gregoriana. Há ainda uma outra diversidade que não nos é indiferente: a diversidade das situações eclesiais de proveniência. Há quem venha de países em secularização crescente ou quem, pelo contrário, provenha de países em que a Igreja continua a crescer. Há quem chega de países em que os cristãos são perseguidos e quem sempre viveu em contextos de liberdade religiosa assegurada. Cada vez mais, há quem chegue de países destroçados pela guerra e pela violência, o que nos torna próxima e visível a “terceira guerra mundial aos pedaços” a que o papa Francisco tantas vezes se refere.
O que têm em comum todos estes estudantes, na sua tão grande diversidade? O desejo de servirem a Igreja e de se prepararem para as missões que virão a receber no futuro parece-me ser o denominador comum. É verdade que, para alguns, como referiu na pergunta, o serviço poderá vir a ser o do episcopado, mas deixamos isso ao Espírito Santo e ao discernimento da Igreja. Ficamos contentes por saber que ajudámos a formar bons servidores do Povo de Deus quaisquer que sejam as suas futuras missões.

4. Como é a relação com as várias províncias da Companhia de Jesus? Os provinciais enviam jesuítas para estudar na Gregoriana?
Temos muito boas relações com as províncias da Companhia de Jesus. A Universidade Gregoriana é uma obra apostólica da Companhia universal e não de uma província em particular. Por isso, estamos muito gratos aos provinciais que enviam jesuítas para estudarem na Gregoriana. Neste momento são cerca de 130 os que frequentam a Universidade e que vivem, consoante o ciclo de estudos, nas três comunidades de formação existentes em Roma: a Comunidade de S. Saba para os estudos de Filosofia; o Colégio Internacional do Gesù para o primeiro ciclo de Teologia; e o Colégio de S. Roberto Belarmino para os estudos de II e III ciclo em várias disciplinas. Ficamos também muito agradecidos quando os provinciais disponibilizam jesuítas para serem professores, muitas vezes com sacrifício das obras apostólicas das próprias províncias.

5. Quais os principais desafios que a Universidade enfrenta? 
Nos últimos dez anos, passámos de 2550 a 2844 estudantes. São números que nos mantêm na posição de maior universidade pontifícia em Roma mas, ainda assim, longe dos 3500 alunos que a Universidade chegou a ter na década de 90 do século passado. Apesar dos números positivos dos últimos anos, o crescimento ou a estabilização do número de alunos nunca estão garantidos e dependem de muitos fatores externos que não controlamos. O mesmo se diga da situação financeira da Universidade, muito dependente da generosidade dos benfeitores que asseguram, cada ano, uma parte muito significativa do nosso orçamento. Temos também desafios pedagógicos importantes: a integração de tudo o que aprendemos no uso de novas tecnologias durante a pandemia, tornando o ensino mais interativo, mesmo numa situação de regresso à “normalidade”; e a problemática da diversidade de formações prévias dos nossos estudantes. Finalmente, como desafio está a necessidade constante de adaptar os programas académicos às solicitações que a vida da Igreja e da sociedade nos colocam e o incremento da dimensão interdisciplinar da oferta formativa.

6. Como é que o trabalho da Universidade Gregoriana põe em prática e se alinha com as preferências apostólicas universais da Companhia de Jesus?

As preferências apostólicas universais da Companhia de Jesus, como tem sido sublinhado em tantas iniciativas que as apresentam, falam-nos de atitudes e não tanto de setores de atividade. Por isso, o próprio P. Geral gosta de sublinhar os verbos usados em cada uma das preferências: mostrar, caminhar, acompanhar e colaborar. Através da sua missão específica, acho que a Gregoriana se identifica muito, implícita ou explicitamente, com estes quatro verbos e com as ações por eles indicadas, procurando motivá-las e aprofundá-las. O nosso desejo é que o trabalho que fazemos ajude a mostrar o caminho para Deus; que nos estimule a caminhar com os pobres, a aprender com eles e a procurar conhecer e debelar as causas da pobreza; que nos leve a acompanhar os jovens com alegria e sabedoria; e que não tenhamos dúvidas quando se trata de colaborar com os outros no cuidado da nossa casa comum.

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P. Nuno com um grupo de estudantes ucranianos.

7. Durante o seu mandato deram-se passos importantes para a incorporação do Pontifício Instituto Bíblico e do Pontifício Instituto Oriental na Pontifícia Universidade Gregoriana. Como está a decorrer este processo?
Este processo de incorporação – segundo a terminologia jurídica italiana “fusão por incorporação” – está a decorrer mais lentamente do que pensávamos à partida. No entanto, a decisão está tomada pelo Santo Padre, de quem dependem as três instituições, e a sua concretização é muito acompanhada e encorajada pelo P. Geral e pelo seu Delegado para as casas interprovinciais de Roma. Neste momento, estamos numa fase de aceleração do processo, com a ajuda de uma empresa de consultoria. Essa ajuda tornou-se necessária devido à complexidade jurídica e fiscal de um projeto que diz respeito a instituições da Santa Sé que operam, com um estatuto especial, em território italiano. Resolvidas estas dificuldades, a incorporação irá proporcionar uma melhor gestão do ponto de vista académico, permitirá a poupança de recursos e facilitará a colaboração entre as instituições todas elas confiadas pela Santa Sé à Companhia de Jesus. Creio que todos ficaremos a ganhar: estudantes, professores e pessoal técnico e administrativo.

8. Nos últimos anos viveram-se tempos atípicos devido à pandemia. Quais as marcas positivas e negativas que esse tempo deixou na comunidade académica e na própria dinâmica da Universidade?

A pandemia foi um grande sobressalto na vida da Universidade, como o foi na sociedade em geral. Não somos uma ilha e, por isso, fomos afetados por todas as medidas tomadas, a mais radical das quais foi a suspensão completa e repentina de todas as atividades letivas presenciais durante vários meses. O encerramento das fronteiras e o condicionamento das viagens internacionais também teve consequências muito negativas na vida universitária. Vivemos esses momentos com um grande espírito de equipa e o facto de estarmos relativamente bem apetrechados permitiu-nos garantir rapidamente a lecionação à distância. Na compra de novos equipamentos didáticos, tivemos a ajuda preciosa de benfeitores e foram também muito importantes os momentos de formação formal ou informal do corpo docente. Verificou-se um grande espírito de interajuda.
Na avaliação do que a pandemia nos tem feito viver, tenho dito que os melhores alunos, aqueles que têm mais autonomia, aproveitaram o facto de ter mais tempo para estudar e não foram prejudicados nos seus percursos académicos. Outros, no entanto, foram afetados pela falta dos estímulos que só o ensino presencial é capaz de garantir. Por isso, confirmámos as vantagens do ensino presencial, mas também aprendemos que o uso das novas tecnologias o pode e deve enriquecer.

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A receber a chanceler Angela Merkel, em visita ao Instituto de Antropologia.

9. A Gregoriana é reconhecida também pelo trabalho que tem realizado na área dos abusos sexuais, nomeadamente através da ação do Centre for Child Protection, atual Instituto de Antropologia de que é diretor o P. Hans Zollner. De que forma sente que a Universidade tem contribuído para uma maior atenção e reflexão sobre os temas da proteção e cuidado de menores e pessoas vulneráveis?

Tenho muito orgulho no trabalho feito pela Universidade, atualmente através do Instituto de Antropologia, na área da prevenção dos abusos sexuais e da proteção e cuidado de menores e pessoas vulneráveis. Estamos na linha da frente neste campo, ajudando a Igreja a combater os abusos, a cuidar das vítimas e, sobretudo, a promover uma cultura de proteção e cuidado. O P. Hans Zollner e a sua equipa fazem um excelente trabalho que inclui diversos tipos de formação: um programa de sensibilização e formação inicial em formato b-learning, em várias línguas e com parcerias em todos os continentes; um diploma semestral em safeguarding, em espanhol ou em inglês; um mestrado em safeguarding em inglês; e um doutoramento em Antropologia. Em todas estas formações, está cada vez mais presente a dimensão interdisciplinar sem a qual não é possível promover uma cultura da prevenção e da proteção.

10. O fim do seu mandato coincidiu com o anúncio da descoberta de um famoso documento, um original da autoria do P. António Vieira, que se pensava desaparecido há 300 anos e que afinal estava no Arquivo Histórico da sua Universidade. Como foi vivido este momento?

O que descobrimos – graças à intuição e sabedoria da Doutora Ana Valdez e do Prof. Doutor Arnaldo do Espírito Santo, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa – foi o manuscrito original da Clavis prophetarum do P. António Vieira. Esta obra, escrita em latim e não completamente terminada, era vista por Vieira como a síntese mais completa e amadurecida do seu pensamento. O texto latino nunca chegou a ser publicado, mas foram feitas várias cópias manuscritas, hoje guardadas em várias bibliotecas e arquivos. Por exemplo, no nosso Arquivo Histórico, conservam-se, além do original, três diferentes cópias. O texto era, portanto, conhecido e dele existem duas traduções em português: uma completa, da autoria do Prof. Doutor António Guimarães Pinto, publicada pelo Círculo de Leitores, em Portugal, e pelas Edições Loyola, no Brasil; e uma tradução parcial, da autoria do Prof. Doutor Arnaldo do Espírito Santo, publicada pela Biblioteca Nacional de Portugal. Em síntese, a descoberta tem uma grande importância para a fixação definitiva do texto latino porque nos dá acesso ao manuscrito original e, por outro lado, relembrou-nos a importância do seu conteúdo. É uma descoberta também muito simbólica porque coincide com a celebração dos duzentos anos da independência do Brasil, pondo em relevo um autor luso-brasileiro por excelência, como é o P. António Vieira.

11. Qual vai ser a sua nova missão?
Vou continuar a ser professor na Faculdade de História e Bens Culturais da Igreja, da Gregoriana, mas o meu trabalho principal, a partir de janeiro de 2023, será na revista La Civiltà Cattolica. Esta revista, fundada em 1850, é a revista mais antiga em língua italiana e também a mais antiga das revistas culturais dos jesuítas na Europa. Deste grupo, faz parte a Brotéria que também já tem uma idade veneranda pois foi fundada em 1902! La Civiltà Cattolica tem características que a tornam única no panorama das revistas da Companhia de Jesus: tem periodicidade quinzenal na sua edição em italiano; tem atualmente edições em inglês, francês, espanhol e coreano; os artigos só podem ser escritos por jesuítas; cada fascículo é revisto e aprovado, antes da publicação, pela Secretaria de Estado. Esta última característica exprime a ligação especial da revista e dos seus escritores à Santa Sé. Esta ligação implica que os temas estudados e aprofundados na revista tenham uma correspondência direta ou indireta com as grandes preocupações e temáticas de cada papa.

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Com o Papa Francisco, em 2016.

12. Como tem sido a experiência de viver e trabalhar em Roma, tão perto do Vaticano e do Santo Padre?   
A gestão da Universidade implica relações próximas com diversos organismos da Santa Sé, em particular a Congregação para a Educação Católica, atual Dicastério para a Cultura e a Educação. Tive sempre boas relações com estes organismos e o diálogo franco foi sempre possível, mesmo quando, alguma vez, os projetos apresentados não foram imediatamente aprovados ou foi pedida a sua reformulação. Quando alguma decisão podia ter implicações no âmbito das relações internacionais da Santa Sé, tive sempre conversas muito úteis e esclarecedoras com a Secretaria de Estado. O cargo de Reitor da Gregoriana implica também muitos contactos enriquecedores com os diplomatas acreditados junto da Santa Sé. Quanto ao Santo Padre, é uma inspiração quotidiana para o nosso trabalho, pela sua coragem, pelo seu dinamismo missionário e pela sua exigência de atenção e intervenção nos problemas do mundo de hoje com os critérios do Evangelho. Expressões suas como “Igreja em saída” ou “Igreja hospital de campanha” não podem deixar de nos interrogar do ponto de vista teológico. E, obviamente, também a dimensão sinodal que está a imprimir à Igreja é objeto de reflexão e de aprofundamento nas várias unidades académicas da Universidade Gregoriana.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.