E se não houver Natal?

Neste primeiro Domingo do Advento, na proposta "Encarnado(s) num mundo ferido", partilhamos um testemunho do P. Gonçalo Castro Fonseca que viveu na Síria entre 2017 e 2021, num dos períodos mais críticos da guerra civil.

Neste primeiro Domingo do Advento, na proposta "Encarnado(s) num mundo ferido", partilhamos um testemunho do P. Gonçalo Castro Fonseca que viveu na Síria entre 2017 e 2021, num dos períodos mais críticos da guerra civil.

Quando se vive em contextos privilegiados, mesmo que possamos ter a consciência de que não podemos ter nada por garantido, nunca nos fazemos uma pergunta como: “E se não houver Natal?”, se não houver a celebração do Natal, a reunião de família e a festa. Se não houver Natal porque não há como celebrar e não há também como preparar porque o foco está em sobreviver hoje, e pensar no amanhã é um luxo que não se pode ter.

Viver num palco de guerra quando o simples “haver amanhã” é uma incógnita transforma tudo, transforma também como se espera o “amanhã”, transforma como se vive o advento, e como se chega ao Natal sem luzes e cânticos. E ao chegar – se chegamos – vive-se o sentido do Natal, das coisas, das relações e da vida de uma maneira completamente desconcertante, porque se vive a dimensão da vida na sua inteireza, crueza e profundidade.

Às vezes penso se eu poderia, com verdade, fazer esta reflexão se não tivesse vivido numa situação de guerra durante quase cinco anos; se não tivesse eu experimentado na pele a preocupação da sobrevivência e a incógnita do amanhã, se não tivesse vivido o deserto de um Natal escuro e calado e não tivesse caminhado num tempo de advento quase sem esperar fosse o que fosse no final do caminho; e se não tivesse estado a nutrir desejos de paz enquanto escapava a bombardeamentos e a ser expectador de quadros apocalípticos.

Viver num palco de guerra quando o simples “haver amanhã” é uma incógnita transforma tudo, transforma também como se espera o “amanhã”, transforma como se vive o advento, e como se chega ao Natal sem luzes e cânticos. E ao chegar – se chegamos – vive-se o sentido do Natal, das coisas, das relações e da vida de uma maneira completamente desconcertante, porque se vive a dimensão da vida na sua inteireza, crueza e profundidade.

Reconheço que há em mim um antes e um depois. Este «depois» é mais despojado e mais em sintonia com os que vivem e experimentam estradas em que as luzes de Natal são apenas os clarões de explosões que rasgam os céus e os cânticos são gritos de dor, desespero e perda, sinto-me mais em sintonia com os que sofrem nas ruínas de guerras contra a paz, contra a humanidade e contra o próprio Deus.

Voltei a viver o advento entre luzes e cânticos de paz e noites felizes, mas com memórias de outros cânticos e outras luzes. Nada é como antes e a palavra PAZ é levada para um horizonte às vezes longínquo, às vezes oculto por detrás de fumo, poeira e pólvora.

Às vezes pergunto-me se conseguiria viver o advento unido aos que não têm advento, se eu próprio não tivesse já passado pelo desamparo de um tempo sem futuro em que o conceito de paz parece ter sido abolido do dicionário. Talvez não! Nunca saberei, mas quero crer que se dispusesse o coração verdadeiramente para um sentido mais profundo do que significa o Natal talvez visse as luzes do advento e escutasse os cânticos de noites felizes de uma maneira diferente.

Se as imagens que vemos nos noticiários, se as histórias que nos chegam mais ou menos ornadas de efeitos mediáticos, se os testemunhos que escutamos ou simplesmente se a lembrança de homens e mulheres, e crianças de todas as idades vivem sem paz e sem futuro, se deixássemos tudo isto entranhar na medula do nosso ser humano e no âmago do nosso ser cristão, sim, talvez o advento pudesse ser vivido com um horizonte diferente, percebendo que a encarnação do verbo de Deus não é um espetáculo de árvores mais ou menos iluminadas, presépios mais ou menos simples ou presentes com mais ou menos sentido. A encarnação do verbo é a eternidade que se entranha na humanidade, também e sobretudo naquela que vive no limiar da morte, para lhe trazer uma certeza: haja o que houver (ou não houver) há uma razão para acreditar na paz. O advento é um caminho até Belém que não sabemos quando e como vamos chegar e não sabemos se ao chegar (se chegarmos) ficaremos num palácio ou num estábulo, mas essa incerteza não pode ter a força de nos impedir de avançar.

Afinal aprendi que o que me movia (e move), mesmo na incerteza do amanhã, é a esperança, a esperança que o Verbo impregnou a humanidade ao encarnar. Mesmo que não haja Natal, há esperança! E fazer caminho de advento com a consciência que não haverá Natal para tantos e pode não haver natal também para nós transforma-nos, e talvez até nos transforme em fonte de Esperança e de Paz para o mundo.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.