“É difícil o exercício da profundidade mas os jovens desejam-no”

No rescaldo do Sínodo, o diretor do CUPAV diz que num mundo frenético os jovens continuam a ter sede de espiritualidade e de sentido para a vida. E assegura que respondem com entusiasmo, mesmo quando a proposta de caminho é exigente.

No rescaldo do Sínodo, o diretor do CUPAV diz que num mundo frenético os jovens continuam a ter sede de espiritualidade e de sentido para a vida. E assegura que respondem com entusiasmo, mesmo quando a proposta de caminho é exigente.

1. Qual a importância dos centros universitários, entre os quais o Centro Universitário Padre António Vieira (CUPAV), no acompanhamento dos jovens?

O acompanhamento é a componente fundamental do trabalho dos centros e a sua marca diferenciadora. Tempo para os estudantes, estes saberem que alguém os pode acompanhar. Este cuidado pelas pessoas e o acompanhamento dos processos faz parte da identidade da Companhia. Esta marca tão importante do Papa Francisco vem exatamente daqui, do seu enraizamento nos Exercícios Espirituais.

2. Qual a relevância concreta do acompanhamento espiritual na vida deles? Que tipo de questões trazem? Certamente, algumas não começam por ser espirituais…

O acompanhamento espiritual, seja qual for a idade, atravessa diferentes fases. No início, a pessoa precisa de ganhar confiança, habituar-se a falar de si própria, a descrever o que se passa. E isto já é um grande exercício espiritual…

3. Os jovens têm facilidade em falar de si próprios?

Depende muito se já têm escola (grupos de jovens, de partilha) ou não. Há um percurso a fazer, de tomada de consciência de si próprio: o que sinto, penso. No fundo, trata-se de perceber qual a sua arquitectura interior. Depois há o passo da fé: como é que esta minha arquitectura interior se orienta para um sentido de vida que eu ponho em Deus? Como é que as minhas escolhas se vão orientando para este sentido último da minha vida? Aí vão começando a ganhar os critérios de Jesus, da Igreja, a pensar no modo como estudam, trabalham, namoram, saem à noite, etc.

O acompanhamento espiritual acompanha estes percursos. Uns começam mais intensivamente e depois abandonam, outros vão descobrindo isto lentamente na sua vida; depois olham para trás e vêm como é importante ter alguém com quem podem ir conversando, que ajuda a fazer as perguntas mais difíceis, que confronta com o sentido da fé, da comunhão da Igreja. É muito importante, do ponto de vista do orientador, não se intrometer na consciência, mas zelar pela liberdade individual, como uma graça que se recebe, para que o exercício exigente do discernimento seja verdadeiro, honesto e fiel.

Há um percurso a fazer, de tomada de consciência de si próprio: o que sinto, penso. No fundo, trata-se de perceber qual a sua arquitectura interior. Depois há o passo da fé: como é que esta minha arquitectura interior se orienta para um sentido de vida que eu ponho em Deus?

4. Num mundo tão frenético e superficial, os jovens conseguem ter estas dinâmicas interiores? Ou chegam lá por algo concreto que estão a viver?

Começam (começamos) sempre a procurar respostas a partir de questões concretas da vida: dificuldades no namoro, opções de estudo, necessidade de compreender alguma coisa em si próprio, de perceber como rezar melhor. Ou até de questões de orientação vocacional explícitas: qual é o meu lugar na igreja e no mundo.

5. Mas alguns chegam aqui sem qualquer percurso de fé?

Vêm muitos para quem tudo é uma novidade. Começam a fazer uma experiência religiosa, a partir de uma missa ou serão, fazem uma aproximação gradual. Vão sentindo que há lugar para si na Igreja, e isso é fundamental. O CUPAV tem sido isso ao longo dos anos, até para quem está mais afastado. Não precisar de cumprir uma série de requisitos para fazer parte. Depois há uma proposta de caminho. Assume-se que há uma porta de entrada mas também um caminho a percorrer.

6. Os universitários têm muito desejo de profundidade?

Sim, e de sentido também. Pode ser difícil o exercício da profundidade num tempo em que tudo é ágil, mas desejam-no. Há uma resposta que só é dada nesse ambiente de olhar para dentro. Há uma grande sede de espiritualidade, de encontrar sentido no que se está a viver, a experimentar e a sentir.

7. E respondem bem à exigência de refletir sobre si próprios, quando tudo à volta dispersa?

Também por essa exigência do contexto, há a necessidade de enraizar a experiência, até do ponto de vista do conhecimento, – o que acredito, a família da Igreja a que pertenço – e do que é a minha fé enquanto relação. A experiência diz-me que, quanto mais exigente é a proposta, maior é o compromisso porque obriga a uma decisão de fundo. Não é mais uma proposta. Contudo, nesta busca grande de espiritualidade, e no contexto concreto de Lisboa, há o perigo do consumo de experiências. Todo o trabalho da pastoral juvenil de Lisboa (os campos, os necs, a Missão País, serões, noites, missas, retiros) pode constituir uma espécie de coleção de experiências para ir picando. Não há processo. Esse é o problema. O que dá trabalho é gerar processos e acompanhar um crescimento orientado e sustentado.

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P. João Goulão sj acompanha espiritualmente muitos jovens no CUPAV.

8. A comunidade é algo que os jovens procuram?

Sem dúvida. A questão da pertença é fundamental pois é a identidade que está em causa. Onde pertenço diz também como é que eu sou e como penso. Queremos que o CUPAV seja um ambiente cada vez mais universal onde qualquer um se possa sentir em casa. Mas é inevitável que os ambientes se tornem um pouco em guetos e que fiquemos fechados sobre nós próprios. Um ponto de vigilância para nós é a questão da universalidade, fazer com que qualquer um que chega se sinta bem.

9. De que forma os centros acompanham os jovens para além da sua passagem?

O núcleo apostólico dos centros são os universitários. Mas isso não implica que não cuidemos da fase pré-universitária – pois há muita gente a crescer nesta escola inaciana -, e dos que contactam com a espiritualidade inaciana mais tarde.

10. Voltando aos jovens, o que os leva a vir falar com o padre?

A confiança e empatia são muito importantes. Estão numa fase de grande insegurança – a nível emocional, muita coisa nova a acontecer, muitas solicitações – e encontrar uma âncora, alguém que me ajude a orientar a minha vida, é uma motivação. Às vezes começa pelo discurso da fé, outras não, mas mais tarde ou mais cedo vem a pergunta de Deus, que surge com muita naturalidade. Há um trabalho muito grande a fazer, quase catequético, de libertar as pessoas de imagens falsas de Deus: um Deus distante que vai mandando castigos e prémios; um Deus vigilante que em vez de convidar está sempre a punir; um Deus com que me posso relacionar quase contratualmente; ou um Deus que, como me ama infinitamente, posso fazer o que quiser.

11. Muitos têm a ideia de que o que a Igreja propõe é impossível, e pensam ‘isto não é para mim’… como se dá a volta a isto?

O facto de estudarem e aprofundarem a fé é bom. Porque a ideia de que “A Igreja diz que…” apresenta uma versão monolítica das coisas. O facto de lerem os documentos, de se conversar dentro da Igreja, vai ajudando a formar a consciência, seja através do encontro ou do confronto. O importante é que cada um possa ser formado a perceber qual é a finalidade daquilo que a Igreja propõe e como é que vai fazer o seu caminho próprio.

12. Mas muitos procuram hoje o que é mais objetivo e linear. Quais os riscos disso?

Por um lado, dar-se uma receita em que cada um não tenha que pensar. E, num mundo em que é tudo confuso, essa receita pode parecer mágica. Estamos a ver a nível social, político, como isso funciona e é eficaz. Por outro lado, há outra perspectiva: “como não sei muito bem a que me devo agarrar, vou tentando autojustificar os meus comportamentos e a minha fé e fazer com que Deus justifique a minha posição de vida”. Uma espécie de relativismo de fé. São estes os dois perigos que o Papa tem identificado.

13. Os jovens têm consciência disso?

Acho que sim, por isso, por vezes, o discernimento é mais difícil. Gostamos de respostas intuitivas e rápidas. E, pelo contrário, o discernimento causa desconforto e insegurança, faz-me confrontar com a limitação de uma forma que eu não gostaria de me ver limitado. Mas isso é que é extraordinário, pois isso é que me vai abrir um caminho de fidelidade e fé mais honesta.

Gostamos de respostas intuitivas e rápidas. E, pelo contrário, o discernimento causa desconforto e insegurança, faz-me confrontar com a limitação de uma forma que eu não gostaria de me ver limitado. Mas isso é que é extraordinário, pois isso é que me vai abrir um caminho de fidelidade e fé mais honesta.

14. Quais os efeitos mais nefastos desse caminho monolítico?

Vai levar a uma dualidade de vida. Todo a limitação, imperfeição, não encaixa na versão monolítica, porque é o mundo perfeito. O mundo da norma só admite um código binário: ou cumpre ou não cumpre. A norma é muito importante, sem ela não há instituição, corpo, organização. Mas há que ir ao fundamento da norma. Assim como, do outro lado, o limite é pensar que tudo é possível: “eu autojustifico tudo, tudo tem uma explicação no âmbito espiritual e, portanto, tudo é permitido, sob aparência de bem”. Procurando uma certa radicalidade, e querendo crescer no amor de Deus, estas duas tentações estarão sempre muito presentes.

15. Quais os desafios que isso traz para quem faz acompanhamento espiritual?

É muito importante o desafio da liberdade, seja em que idade for. Educar para a liberdade e responsabilidade. Só assim é que crescemos, podemos fazer opções claras na vida e tomar a fé na sua opção vital por Jesus. A tentação de quem orienta por interpor-se ao processo: acelerá-lo, porque já estamos a ver onde vai acabar, ou desviá-lo, porque vai acabar mal. É sempre o dilema de um pai e mãe: até onde deixar ir? Mas porque já vimos o filme muitas vezes, temos que ver o que pode ajudar mais a cada um. É muito importante o trabalho de humildade e respeito, pois é um processo muito sagrado: temos ali alguém diante de nós que se confia inteiramente. Não pode ser chapa cinco.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.