Dilexit nos, a encíclica sobre o amor humano e divino

A finalizar o ano da oração e às portas do ano jubilar, o Papa Francisco apresenta-nos a sua quarta carta encíclica Dilexit nos [Amou-nos] sobre o amor humano e divino do Coração de Jesus.

A finalizar o ano da oração e às portas do ano jubilar, o Papa Francisco apresenta-nos a sua quarta carta encíclica Dilexit nos [Amou-nos] sobre o amor humano e divino do Coração de Jesus.

Este texto é publicado em parceria com a Rede Mundial de Oração do Papa, que tem como missão a promoção da espiritualidade do coração de Jesus

A finalizar o Ano da Oração e às portas do Ano Jubilar, o Papa Francisco apresenta-nos a sua quarta carta encíclica Dilexit nos [Amou-nos] sobre o amor humano e divino do Coração de Jesus. Depois de uma encíclica dedicada à fé, duas com cariz mais social, apelando ao respeito e cuidado pela casa comum, recordando que somos todos irmãos, convida-nos agora a mergulhar na espiritualidade da devoção ao Coração de Jesus, por ser “essencial para a nossa vida cristã” [DN 83], de modo a levar-nos a amar-nos uns aos outros como Ele nos amou.

Fazendo uma primeira leitura a esta encíclica, rica em passagens que convidam a saborear internamente, apercebo-me das inúmeras vezes que Francisco fala do íntimo, no sentido de interioridade, já que neste voltar para dentro podemos encontrar-nos connosco e com Deus para depois sair de forma mais livre ao seu serviço. Abrindo a encíclica com a explicação da importância do coração, no seu carácter simbólico, além de destacar que “neste mundo líquido é necessário voltar a falar do coração (…) onde os seres concretos encontram a fonte e a raiz de todas as suas outras potências, convicções, paixões e escolhas”, recorda que é ali “que se decide tudo: ali não conta o que mostramos exteriormente ou o que ocultamos, ali conta o que somos” [DN 6]. É forte: no coração habita o centro da nossa essência. Ainda mais forte se torna, quando vivemos tempos de tanta tensão, conflitos, guerras e lutas pelo poder, que “podemos pensar que a sociedade mundial está a perder o seu coração.” [DN 22]

O coração foi descurado do imenso que concentra em si mesmo. Ou pelo menos relegado para planos afastados, onde se deu mais preferência à racionalidade, à vontade ou à liberdade. Por isso, Francisco apela a voltar ao coração, desde o Coração de Cristo. “Seguindo [S. John Henry Newman], o lugar de encontro mais profundo consigo mesmo e com o Senhor não fosse a leitura ou a reflexão, mas o diálogo orante, de coração a coração, com Cristo vivo e presente.” [DN 26] Para voltar a este diálogo, o Papa recorre aos textos bíblicos que falam dos gestos e palavras que refletem o Coração de Cristo revelador da proximidade, compaixão e ternura de Deus. “Enquanto ser humano, tinha aprendido isto de Maria, sua Mãe. Ela, que tudo contemplava com cuidado e ‘guardava tudo no seu coração’ (Lc 2, 19.51), ensinou-O desde muito cedo, na companhia de S. José, a prestar atenção.” [DN 42]

O Papa Francisco reconhece que, apesar de essencial, esta devoção pode parecer um mero romantismo religioso. No entanto, recorrendo também à tradição da Igreja, desde os inúmeros santuários dedicados ao Coração de Jesus que foram surgindo ao longo dos últimos séculos (dirigindo a sua bênção a quem de algum modo colabora nestes lugares de fé e de caridade), passando por homens e mulheres, canonizados ou não, que marcaram a sua vida pela do Coração de Jesus, tais como S. Francisco de Sales, S. Margarida Maria Alacoque, S. Cláudio La Colombière, Sta. Teresa do Menino de Jesus e S. Carlos de Foucauld, o Papa mostra que se formos à profundidade desta devoção, junto à proximidade com Deus, viveremos uma proximidade com o próximo de modo renovado. Recorda que a devoção ao Coração de Jesus, nomeadamente a comunhão eucarística das primeiras sextas-feiras como a adoração às quintas-feiras, surgiu como modo de combate a modelos de fé que, pelas propostas de perfeccionismo, como se a comunhão fosse um prémio, afastavam as pessoas da relação com Deus e, como consequência, da caridade ao próximo. Porque não avivar esta devoção como caminho de encontro e entrega ao próximo?

O Papa, com doze anos de pontificado, pautado por viagens apostólicas a zonas periféricas, algumas de conflito ou com feridas provocadas pela própria Igreja, num tempo marcado por cada vez mais tensões, sociais, políticas e religiosas, convida-nos a entranhar no sentido profundo desta devoção ao Coração de Jesus, a deixarmo-nos converter por Ele e assim sermos promotores de vida.

Pensando na Companhia de Jesus, o Papa recorda que esta tem como missão a promoção da devoção à espiritualidade do Coração de Jesus, por ser algo também central nos Exercícios Espirituais de Sto. Inácio de Loiola, em particular pela petição do “conhecimento interno do Senhor […] para que mais o ame e o siga.” De facto, Inácio, também conhecido como mestre dos afetos, propõe que se façam colóquios como “parte essencial dessa educação do coração, porque sentimos e saboreamos com o coração a mensagem do Evangelho e conversamos sobre ela com o Senhor” [DN 144] de modo a escutar a sua vontade, que nos chama ao serviço de amor ao próximo. “O amor aos irmãos não se fabrica, não é fruto do nosso esforço natural, mas exige uma transformação do nosso coração. Nasce então espontaneamente a célebre súplica: ‘Jesus, fazei o nosso coração semelhante ao Vosso’. Por isso mesmo, o convite de S. Paulo não era: ‘Esforçai-vos por fazer boas obras’. O seu convite era mais precisamente: ‘Tende entre vós, os mesmos sentimentos que estão em Cristo Jesus’ (Fl 2, 5).” [DN 168].

Francisco convida-nos, à semelhança do Coração de Jesus, a sermos promotores de consolação e de reparação. Neste sentido, somos chamados a construir uma nova civilização de amor. “Isto é reparar conforme o que o Coração de Cristo espera em nós. No meio do desastre deixado pelo mal, o Coração de Cristo quis precisar da nossa colaboração para reconstruir a bondade e a beleza.” [DN 182] A reparação torna-se, então, um prolongamento do Coração de Cristo, entendendo-se como a remoção dos obstáculos que colocamos à expansão do amor.

Já quase no final da encíclica, é-nos recordado o que o próprio Senhor disse “por isto é que todos conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros.” (Jo 13, 35). O Papa, com doze anos de pontificado, pautado por viagens apostólicas a zonas periféricas, algumas de conflito ou com feridas provocadas pela própria Igreja, num tempo marcado por cada vez mais tensões, sociais, políticas e religiosas, convida-nos a entranhar no sentido profundo desta devoção ao Coração de Jesus, a deixarmo-nos converter por Ele e assim sermos promotores de vida. “A Igreja também precisa dele, para não substituir o amor de Cristo por estruturas ultrapassadas, obsessões de outros tempos, adoração da própria mentalidade, fanatismos de todo o género que acabam por ocupar o lugar daquele amor gratuito de Deus que liberta, vivifica, alegra o coração e alimenta as comunidades. Da ferida do lado de Cristo continua a correr aquele rio que nunca se esgota, que não passa, que se oferece de novo a quem quer amar. Só o seu amor tornará possível uma nova humanidade.” [DN 219] “Amo-vos” e “envio-vos” a amar, desafia-nos Cristo, desde o seu Coração.

Voltarei mais vezes a esta encíclica, de mãos dadas com as anteriores, nomeadamente Laudato si’ e Fratelli tutti, como instrumentos de ajuda à missão de promover a reconciliação, a paz e a humanização do nosso mundo desde Deus. Recordo que foi através do Papa Francisco que se deu a refundação do Apostolado da Oração em Rede Mundial de Oração do Papa, que, tendo como suporte a espiritualidade do Coração de Jesus, promove O Caminho do Coração, levando à união a Cristo, aos irmãos e irmãs em Igreja que somos.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.