Um dos grandes dilemas relacionais que nos atravessa a vida toda prende-se com a questão “digo ou não digo?”. O que penso, como me sinto, como reajo, como leio determinada perspetiva, palavra ou acontecimento, como pressinto dado cenário, etc. Quem escreve estas palavras tem um passado e um traço personológico de um certo anti-conflitualismo militante que, apesar de tudo, tem vindo a transformar-se. Reconheço hoje, de forma muito clara, que sem algum grau de conflito dificilmente há progresso relacional. Há formas, ambientes, oportunidades e até técnicas que nos ajudam a conflituar civilizadamente (não levantar a voz, por exemplo) mas, a vida, ela mesma, sublinha-nos que o confronto crítico é da dor de parto inevitável das relações sadias. É assim, aliás, também, na vida interior e espiritual, onde a palavra luta não pode ser excluída e onde, por sugestão bíblica, o morno é desaconselhado.
Há um caminho para o discernimento em causa: relações com ou sem futuro
Apresento uma boa notícia (à qual se seguirá, como é costume, uma menos boa notícia…): há uma tese, diria mesmo, uma resposta objetiva, um critério, para fazer face à pergunta que dá título a esta reflexão. E é esta: sim, digo, se a relação tiver futuro.
A má notícia é que a tensão discernente se mantém: desloca-se para uma outra pergunta: “esta relação tem futuro”? Ficará para outro momento um olhar e um eventual amparo para esta enorme e inquietante questão mas registo desde já que algumas relações até “formalmente” próximas (com amigos, pais, filhos, cônjuges, membros da mesma comunidade, etc.) podem não ter muito futuro. Muitas vezes, esse sombrio futuro é dramático e espreitam até becos sem saída. O “sem futuro” das relações nota-se pela toxicidade e desgaste das interações e pode e deve ser encarado com realismo, coragem e liberdade. Muitas vezes, há que romper e vir embora, sacudindo o pó das sandálias. Sem futuro, todos concordamos, não vale a pena.
Algumas dicas quase-práticas para as relações com futuro:
1) quando o fígado se quer descarregar
Há muitos dizeres que são meras descargas figadais, autocentradas e, normalmente, não construtivas. Um discernimento pessoal atento, quando nos preparamos para dizer algo a alguém, porventura de maior teor crítico ou menos abonatório, poderá balizar-se por esta auto-pergunta: “é para descarregar o fígado ou para trabalhar esta relação com futuro?”. Em suma, quem se prepara para dizer, pode colocar a sua intenção numa banho-maria que só avança se passar pelo crivo da construtividade relacional.
2) O tempo, o modo e o espaço
Não pode ser qualquer, o tempo (para uns à noite, para outros à tarde, para outros daqui a uns dias…), o modo e até o espaço onde um diálogo mais combativo se pode travar. Muitas vezes, estas circunstâncias mais externas minam a qualidade da conversa e, por isso mesmo, estes aspetos deves ser mutuamente combinados, preparados e anuídos.
3) O caso da mensagem escrita
Tenho uma simpatia particular, nos cenários de maior tensão e de maior acumulação de “não ditos”, pela mensagem escrita. As grandes vantagens deste expediente prendem-se com a não interrupção recíproca, com a possibilidade de ponderação e de forma de expressão, com o enfoque e com o evitamento da deriva (a bem dizer, as virtudes que descrevo correspondem, no seu avesso, aos traços típicos das deteriorações dialogantes). Como há um certo mito de que a mensagem escrita pode significar medo, fuga ou falta de coragem, sugiro que quando se usa este mecanismo escrito desbloqueante, se tenha um encontro presencial, face-a-face, e se entregue a mensagem, que o recetor ou o emissor podem ler, sem interrupções, em voz alta. Seguir-se-á, desde logo ou adiante, o dinâmico feedback e contra feedback que se impõe…
4) Perguntar ao (potencial) recetor… se quer receber
Pode parecer estranho, mas é fundamental perguntar ao outro se quer ouvir o que lhe tenho para dizer, prevenindo, se for o caso, que pode incluir inspirações mais críticas. Mas é crucial esta indagação na cultura da assertividade. Ninguém ouve se não quiser ouvir e nem convém que o recetor se disponibilize apenas por cerimónia ou obediência. Desde que comecei a usar esta prática (“queres ouvir algo que te tenho para dizer sobre este assunto e que pode incluir algum teor crítico a teu respeito?”), tenho tido mais autênticos encontros a partir de dilemas e divergências. Tenho acumulado também, ironicamente, experiências surpreendentes de negação, em relações que eu julgava… com mais futuro. É verdade que no caso da resposta ser negativa, se manterá, até por mandato cristão, um certo não desistir da pessoa. No nosso coração, será libertador guardar sempre uma abertura, um lugar universal que, por assim ser, tem sempre um nicho de oportunidade para todos e para cada um. Mas, participando no risco da liberdade criadora, não podemos forçar um futuro que o outro não queira ou não possa, na circunstância em que se encontra…
Há denúncias incontornáveis mas há também os nossos limites
Podemos incluir nesta temática um devir ético e também cristão de denúncia. Em alguns casos (de forma evidente naqueles que correspondem à ultrapassagem da lei e à tangência de crime, real ou moral) teremos mesmo de avançar, mesmo que o próprio visado não deseje confronto. Quando são tocados terceiros pelos atos em causa, a pressão para “dizer” torna-se mais evidente. Mesmo assim, porém, a denúncia, como tudo o que fazemos e dizemos, há-de ser suportada pela liberdade e sujeita aos nossos próprios limites. Tenho a consciência de, ontem e hoje, embora não deseje, ter metido no bolso denúncias que deveriam ser feitas, por limitações próprias da mais variada ordem.
Na Igreja que somos – que tem futuro – ainda falta dizer muito…
Na Igreja que somos, nas nossas relações intra-comunitárias e no modus faciendi da estrutura eclesial, vejo com frequência certa cerimónia no dizer. Atribuo tal circunstância, principalmente, a dois tipos de equívocos: 1) uma certa ideia de “cristão bonzinho” (que não me parece emergir dos Evangelhos) que poupa aprioristicamente os outros, esquecendo que o crescimento pode pressupor alguma dor. É por isto que ‘magoo ou não magoo se disser’ não é a pergunta central do discernimento cristão sobre o dizer ou não dizer. Também nesta linha, são positivamente inspiradoras, embora não necessariamente muito e bem exercidas, as práticas de correção fraterna, tão frequentes nas regras de muitos carismas religiosos; 2) um excessivo e desequilibrado apoio na metáfora da descrição, do ‘não dar escândalo’, em última análise, na preservação da imagem (exterior…). Essa defensividade colide radicalmente com a sugestão evangélica da luz que convém mostrar e não esconder (Mc. 4, 21-22). Em muitos dossiers polémicos, vistos de dentro e de fora da Igreja, há um longo caminhos a percorrer no que diz respeito à assertividade pública e privada, à transparência e à explicitação…
Na perspetiva crente há dois vetores relacionais que possuem intrínseco valor e que, por isso, merecem investimento: a relação connosco mesmos e a relação com Deus. Há que nunca desistir destes dinamismos, interligados pela Presença que nos habita e pelas pontes com os outros humanos. Tudo isto tem um enorme futuro!
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.