Desiderio desideravi: viver do encanto

Aquilo que reuniu os apóstolos a Jesus foi o saberem-se chamados, desejados, amados – muitíssimo antes de saberem o que significava o que quer que fosse que viriam a experimentar.

Aquilo que reuniu os apóstolos a Jesus foi o saberem-se chamados, desejados, amados – muitíssimo antes de saberem o que significava o que quer que fosse que viriam a experimentar.

O que nos vem à mente e ao coração quando ouvimos a palavra “liturgia”? Entre diversos sentimentos e experiências vividas, talvez a palavra “desejo” não surja imediatamente. Mas, na carta apostólica Desiderio desideravi, sobre a formação litúrgica de todos os fiéis, o Papa Francisco realça como ponto chave da liturgia o desejo que Deus tem de nós.

Ao escrever esta carta, no passado dia 29 de Junho, o Papa pretende ajudar a “redescobrir, cuidar e viver a verdade e a força da celebração cristã” (n.16). Penso que estes três verbos estão bem munidos de sentido: redescobrir, cuidar e viver. O que tem então a liturgia de tão significativo a ponto de o Concílio Vaticano II a ter definido como “meta e fonte” da ação da Igreja? Como é possível que a experiência que temos e fazemos nem sempre corresponda a essa grande riqueza que nos é apresentada?

Tudo começa no desejo… de Deus

Teremos seguramente boas motivações para participar nos sacramentos. Concorrem todas certamente para o nosso bem e dos demais. Podemos ser movidos por um desejo de intimidade e comunhão com Deus. No entanto, antes do desejo que possamos nós ter, está o desejo que o próprio Jesus teve e tem: “Tenho desejado ardentemente comer esta Páscoa convosco, antes de padecer” (Lc 22,15). Por isso, continua o Papa, depois do Pentecostes, chegados a Jerusalém, se quiséssemos conhecer o tal Jesus de que se falava, não haveria modo melhor do que aquele de nos juntarmos aos Seus discípulos na celebração comunitária: a comunidade viva, que celebra, que ouve a Sua palavra, que cumpre os Seus gestos. A liturgia, como experiência comunitária, liberta-nos do “veneno do subjetivismo”, “da prisão da autorreferencialidade” (n.18).

Na Eucaristia, como os mesmos discípulos depois do Pentecostes em Jerusalém, como os próprios apóstolos no Cenáculo com o próprio Jesus Cristo, nós somos projetados naquela mesma Última Ceia. A Última Ceia é a única ceia da qual todos participamos. Não a Última Ceia que recordamos ou que representamos de um modo sagrado: é a Última e única Ceia da qual participamos, por graça do Espírito Santo, por meio de sinais e gestos concretos. Aquilo que reuniu os apóstolos a Jesus foi o saberem-se chamados, desejados, amados – muitíssimo antes de saberem o que significava o que quer que fosse que viriam a experimentar.

Deixarmo-nos encantar

Deus encarnou – e encarnou ao ponto de na Última Ceia se fazer alimento, para que dali recebamos a vida da Páscoa que Ele mesmo é, para que nos transformemos no Cristo que comungamos. Isto não pode não gerar espanto, maravilha, encanto. Na verdade, sem esse espanto, “tornamo-nos impermeáveis ao oceano de graça que inunda cada celebração” (n.24). Podemos sempre ser mais aquilo que com o baptismo já somos. “A beleza, como a verdade”, recorda o Papa, “gera sempre maravilha e, quanto se refere ao mistério de Deus, leva à adoração” (n.25).

Por isso, no documento dito programático do seu pontificado, o Papa Francisco afirma que “a Igreja evangeliza e se evangeliza com a beleza da liturgia” (Evangelii Gaudium, 24). No entanto, esta beleza não deve ser confundida com algo “misterioso” no sentido oculto, secreto, obscuro. Nem tão pouco falar de beleza na liturgia é sinónimo de formalidade, de uma espécie de regras de etiqueta para cristãos, nem a busca de um qualquer fanatismo estético. Se por um lado a beleza não se pode reduzir ao cumprimento das indicações do Missal, por outro, “a arte de celebrar não se pode improvisar” (n.50). A beleza da liturgia está na Beleza do que é celebrado – o que requer, naturalmente, um cuidado e beleza que lhe sejam fiéis.

Como (re)entrar neste modo de estar?

A partir das reflexões feitas pelo teólogo Romano Guardini, o Papa pergunta-se se seremos nós (ainda) capazes de colher aquilo a que os símbolos na liturgia nos abrem. Teremos nós adormecido os nossos sentidos quando entramos numa igreja?

A este propósito, o Papa faz duas observações. A primeira diz respeito ao readquirir a confiança na criação. Na liturgia, os elementos que a compõem não são abstrato; são bem concretos, por vezes tangíveis até: pão, vinho, água, óleo, incenso, cinzas, cores dos paramentos, luz, sons, palavras, silêncio, movimentos (sentar, levantar, ajoelhar, etc). Todos estes elementos são dados pelo Criador para serem canal da graça e devem ser acolhidos como tal.

A segunda observação é sobre a educação para os símbolos. O Papa recorda, por exemplo, a docilidade com que tantos fomos ensinados a fazer o sinal da cruz, sem que muito nos fosse explicado, sem que passássemos a possuir aquele gesto, mas a deixar que o gesto nos moldasse. Por isso mesmo, Francisco diz que é importantíssimo, por um lado, sermos formados para a liturgia (lendo, procurando, pedindo formações na nossa comunidade) de modo que o coração possa melhor entender o que vive, mas sobretudo sermos formados pela liturgia. Justamente neste último sentido, o Papa discorre longamente sobre a arte de celebrar. Se, por um lado, sem ser directiva, a carta oferece uma reflexão muito rica aos sacerdotes sobre a presidência da Eucaristia como uma arte, por outro, também para os fiéis leigos que celebram a Eucaristia estas luzes permitem vislumbrar a imensidão do que se pode esperar da celebração litúrgica.

O primeiro ato a cumprir, portanto, é “render-se ao seu amor, deixar-se atrair por Ele” (n.6). Assim, a liturgia abre-nos ao coração de Deus. Talvez um bom ponto de partida seja recordar, antes de cada Eucaristia, que me encontro ali porque Jesus me deseja ardentemente. E, saboreando esta verdade, seremos docemente mergulhados na beleza daquela Ceia definitiva que nos dá Vida.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.