Somos hoje uma sociedade mediatizada, dependente dos ritmos ditados pelas audiências. O saber o que se passa e o conhecer as notícias do mundo vem hoje de uma mediação que se rege por valores que pouco devem ao humanismo. Se, por exemplo, um atentado terrorista numa cidade do ocidente europeu pode ocupar várias aberturas de telejornais, uma barbárie cometida contra uma vila inteira num canto recôndito do mundo, pode nem merecer um rodapé depois das notícias desportivas.
E esta relativização do drama, da usurpação de direitos, de destruição de seres é tão mais dramática quanto mais alto afirmamos os nossos valores humanistas como universais, desejosamente comuns a todas as sociedades humanas. A banalização do mal, nas palavras de Hannah Arendt, é tão mais grave quanto um dos instrumentos dessa postura reside na indiferença tão realçada pelo Papa Francisco, seja a propósito da pobreza ou dos refugiados e das mortes no mediterrâneo.
Se, por exemplo, um atentado terrorista numa cidade do ocidente europeu pode ocupar várias aberturas de telejornais, uma barbárie cometida contra uma vila inteira num canto recôndito do mundo, pode nem merecer um rodapé depois das notícias desportivas.
Felizmente, no correr dos ditos ritmos mediáticos, há ilhas de tomadas de consciência, gestos e momentos que nos obrigam a sair da letargia, do imobilismo e da apatia. O Relatório Liberdade Religiosa no Mundo da Ajuda à Igreja que Sofre, na sua 14ª edição, e produzido de dois em dois anos, é um dos mais avassaladores instrumentos para uma tomada de consciência.
Publicado em português, inglês, holandês, francês, alemão, italiano, e espanhol, o documento deste ano é agora apresentado e, mais uma vez, é uma radiografia de rigor e exactidão que não nos permite relativizações na leitura das categorias, na leitura dos casos.
No Prefácio a esta edição, o Cardeal Dieudonné Nzapalainga, Arcebispo de Bangui (República Centro-Africana), aponta alguns linhas de reflexão. Num quadro político e social altamente complexo, onde a morte e a desagregação da sociedade parece poder irromper a qualquer momento, Dieudonné Nzapalainga alerta para a facilidade com que a religião pode ser usada, instrumentalizada por radicalismos, sejam eles de origem religiosa ou política: “Esta instrumentalização da religião é muito eficaz, porque os sentimentos religiosos apelam ao que há de mais profundo em nós e, sem dúvida, a religião tem a capacidade de despertar emoções apaixonadas.”
Estamos a arriscar, estamos a expor-nos a grandes críticas. Contudo, esta busca permanente do diálogo inter-religioso e da reconciliação é inquestionavelmente a última defesa contra a implosão do nosso país.
A resposta, para este clérigo que está no terreno, é o diálogo: “Estamos a arriscar, estamos a expor-nos a grandes críticas. Contudo, esta busca permanente do diálogo inter-religioso e da reconciliação é inquestionavelmente a última defesa contra a implosão do nosso país.” A reconciliação é o alvo a atingir com o diálogo, sublinhamos.
E esta porta de esperança lançada pelo cardeal Dieudonné Nzapalainga é tão importante quanto, neste relatório, é dado destaque a situações de apaziguamento, de reconstrução. Não só na República Centro-Africana, mas também na Síria e no Iraque onde o Daesh quase perdeu a totalidade dos territórios, permitindo um regresso de cristãos e de yazidis, recriando alguma da diversidade religiosa do Médio Oriente.
A cor mais transversal a este relatório não é alegre ou sorridente. Para além dos números e dos índices, as linhas de força de violência sobre a Liberdade Religiosa são cada vez mais fortes, sólidas e sistemáticas.
Mas a cor mais transversal a este relatório não é alegre ou sorridente. Para além dos números e dos índices, as linhas de força de violência sobre a Liberdade Religiosa são cada vez mais fortes, sólidas e sistemáticas. Como as conclusões do documento apontam, no período em análise, a situação dos grupos religiosos minoritários deteriorou-se em 18 dos 38 países monitorizados (países onde, à partida, há violações significativas da liberdade religiosa). Notou-se um declínio especialmente acentuado na China e na Índia. Em muitos dos outros países – incluindo Coreia do Norte, Arábia Saudita, Iémen e Eritreia – a situação já era tão má que dificilmente poderia piorar.
Se comparado com o relatório anterior, há mais quatro países com violações significativas da liberdade religiosa, comprovando-se, até, um aumento das violações da liberdade religiosa por parte de actores estatais. A Rússia e a já referida China são dois dos casos paradigmáticos, a que este ano se juntou, numa situação de drama incomensurável, o Myanmar e a situação dos rohingya.
Esta edição do relatório levanta uma nova dimensão de violência sobre a Liberdade Religiosa: o nacionalismo agressivo, quase sempre hostil às minorias religiosas, e não só.
Por fim, esta edição do relatório levanta uma nova dimensão de violência sobre a Liberdade Religiosa: o nacionalismo agressivo, quase sempre hostil às minorias religiosas, e não só. Numa modalidade significativamente nova, esta realidade apresenta-se com tendência e campo para grande crescimento nos próximos anos, alimentada pelos regimes e governos nacionalistas que grassam um pouco por todo o globo. Talvez a dimensão mais perigosa desta modalidade seja, não a própria violência e si, mas a formatação que pode criar nos cidadãos, levando-os a criar um novo-normal, uma nova visão da diferença onde a discriminação seja vista como normal. Em sociedades onde a discriminação seja normal, a defesa das liberdades das minorias surge como extemporânea, desnecessária ou, mesmo, mecânica de defesa de criminosos.
Merecem ainda destaque, como grandes linhas de violência, algumas situações que deveriam merecer muito mais atenção: no mundo islâmico, o quase esquecimento do crescimento do Daesh fora da Síria e do Iraque (África, Médio Oriente e Ásia), assim como a cada vez mais sangrentas lutas entre sunitas e xiitas. De igual modo, o olhar deveria ser lançado com mais acuidade para o sub-continente indiano, onde a violência sobre as minorias muçulmanas por parte de radicais hindus faz cada vez mais mortes.
Merecem ainda destaque, como grandes linhas de violência, algumas situações que deveriam merecer muito mais atenção: no mundo islâmico, o quase esquecimento do crescimento do Daesh fora da Síria e do Iraque (África, Médio Oriente e Ásia), assim como a cada vez mais sangrentas lutas entre sunitas e xiitas.
Por fim, na Europa, a nossa atenção tem de ser redirecionada, já não apenas para uma quase omnipresença da possibilidade terrorista, mas também para a reacção islamofóbica, com um agravamento das situações de xenofobia na Europa, assim como para um fenómeno complexo, que bebe, quer nos ultranacionalismos em crescimento, quer no radicalismo islâmico: o latente e crescente antissemitismo. De facto, hoje em dia estamos perante uma enorme vaga de migração de judeus europeus para Israel, entre outros destinos, devido ao clima de insegurança provocado pela regularidade das ameaças e dos ataques, seja a pessoas, seja a lugares religiosos (sinagogas ou cemitérios).
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.