Em Portugal, nesse tempo de 25 de abril, a Democracia era a explosão da liberdade desejada, na diversidade dos conceitos, dos alinhamentos, das ideologias. A liberdade era iniciação e esperança, dúvida e expectativa para o tempo que havia de vir. Era paixão, era delírio e desafio para uma sociedade nova e novos modos de viver.
No Brasil, a Ditadura Militar era então implacável, o poder era absoluto nos meios de ação. Apesar de toda a censura e perseguição, a liberdade foi causa assumida. Foi ato de coragem, envolvimento da Igreja em momentos históricos de luta e resistência.
Cheguei a São Paulo em março de 1975. Tantos anos passados e tanta vida vivida depois do 25 de abril, recordo hoje ambientes e situações, momentos e espantos dos meus primeiros tempos. Na cidade de dez milhões, desumana de medida, a vivência de fé era prova de cada dia.
Na capela da PUC, Pontifícia Universidade Católica, onde íamos à missa aos domingos, foi-me revelada a espiritualidade da alegria e da fraternidade, da compaixão, do amor de Deus sem ameaça de inferno, do amor de Jesus e por Jesus. Descobri o fervor da oração em todos à minha volta, comprimidos os corpos desde o altar até à porta da entrada, eu sentia uma só respiração no silêncio da Consagração, nos cânticos aprendia significados de protesto contra a intolerância, na homilia percebia um modo fluente e sedutor para os fiéis de uma Igreja tão diferente daquela austera, ameaçadora, que formalmente se afirmava no meu país.
Descobri que ser cristão é desejo de liberdade. É fazer política. Intervir na cidade, pensar, exprimir, arriscar. Na Igreja do Brasil, percebi que várias vozes se faziam ouvir, com força.
Eu ainda seria capaz de acompanhar a missa em latim, mas não conhecia a esperança do Reino de Deus sobre a Terra, nunca tinha ouvido falar de Comunidades Eclesiais de Base, nem do tom marxista várias vezes atribuído à CNBB, Confederação Nacional dos Bispos Brasileiros, na sua ação pastoral.
Descobri que ser cristão é desejo de liberdade. É fazer política. Intervir na cidade, pensar, exprimir, arriscar. Na Igreja do Brasil, percebi que várias vozes se faziam ouvir, com força.
A PUC era reconhecida pela vanguarda das suas posições de crítica à ditadura desde o Golpe de 31 março de 1964, que depôs o presidente João Goulart e impôs o regime militar. Também, em 13 de dezembro de 1968, tinha sido acrescentado à Constituição o Ato Institucional Número Cinco, o AI-5, que todos os brasileiros conheciam e temiam, para o total e livre exercício do poder político. O AI-5 determinava a suspensão de direitos, a prática de tortura e prisão, a demissão sumária de funcionários públicos e de cidadãos contrários ao regime e à autoridade estabelecida.
Depressa eu soube que a Igreja lutava contra a arbitrariedade do poder e que os monges dominicanos se exprimiam e atuavam contra a ditadura. O Bispo de Olinda, Dom Hélder Câmara, era a face exposta da resistência e o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, em São Paulo, era o ativo defensor dos direitos humanos. E soube que havia movimentos de guerrilha armada, muitos eram então os perseguidos, os presos, os desaparecidos, os exilados.
No fim de outubro de 1975, foi anunciada a morte do jornalista Vladimir Herzog, numa cadeia do Exército em São Paulo. Por enforcamento e suicídio na versão oficial, a ocultar a tortura e o assassínio, na verdade acontecida. Indignada a opinião pública, logo foi lançada a revolta por mais de mil assinaturas, acrescentadas pelos nomes dos mais conceituados jornalistas brasileiros.
Impressionada por nunca ter acompanhado nada de igual no meu país católico, onde não me tinha sido dada a face oposta da realidade, segui a notícia. Mais de oito mil pessoas estiveram na Catedral da Sé, em memória de Vladimir Herzog, no culto concelebrado por Dom Paulo Evaristo Arns, pelo rabino Henry Sobel, pelo pastor presbiteriano Jaime Wright e mais de duas dezenas de oficiantes de várias religiões.
Experimentei a liberdade do diverso e diferente. Percebi a dimensão espiritual de um mundo que em absoluto desconhecia e que guardo, nítido, na minha memória.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.