Demain, vencedor do Prémio César para o Melhor Documentário de 2016, publicado em DVD pela Medeia Filmes, merece ser revisitado. O documentário dá-nos a ver o presente de um futuro desejável. Tudo começa com a evocação entre amigos de um artigo da revista Nature que preconiza o desaparecimento duma parte da espécie humana até 2100. Levanta-se, então, a interrogação acerca do futuro dos seus filhos, do impacto da sobrepopulação, da escassez de água e energias fósseis e do desregulamento climático. Haverá alternativas? “Sim – diz Mélanie. Saídos da zona de conforto, mas não em colapso, estamos numa fase particularmente inspiradora. É o momento de nos mobilizarmos”.
Mélanie Laurent, atriz, e Cyril Dion, escritor e fundador do movimento Colibris, partem então, com uma equipa de filmagem, em busca de boas práticas e ideias redentoras do nosso futuro. Segue-se um road movie, através de dez países, dos Estados Unidos à India, da ilha francesa da Reunião à Islândia, dividido em cinco capítulos temáticos: agricultura, energia, democracia, economia e ensino. A caminho, encontramos cidadãos admiráveis e iniciativas locais de grande criatividade em todos estes aspetos chave da nossa civilização. Desde logo, belezas naturais e pessoas inteligentes comprometidas com um mundo melhor, a humanização das relações sociais, a reconversão de lixos em energia e de cidades poluídas em lugares aprazíveis, levantam o ânimo, e mobilizam sinceramente a vontade de participar ativamente num renascimento, tão ao encontro dos desejos mais profundos de todo o ser humano.
Também a poética das imagens e a excelente banda sonora de Fredrika Stahl promovem eficazmente esse efeito. A parábola do movimento Colibris sobre o pequeníssimo pássaro que contribui com uma gota de água, na ponta do bico, a apagar o incêndio do bosque, é interpelante.
Iniciada a viagem, o primeiro capítulo leva-nos pelos caminhos da agricultura a Detroit, cidade fantasma da industria automóvel, onde a população se reorganiza num movimento de quintas urbanas para prover ao sustento alimentar. O paradoxo dos 1500 km, em média, dos alimentos até ao nosso prato é vencido, podendo comprar alimentos nos produtores locais. O recurso à agroecologia permitiria redobrar os rendimentos agrícolas em dez anos, reforçando a sua capacidade face às grandes explorações muito dependentes do setor petroquímico. O problema vem dos lobbies da agricultura industrial, cujo uso da energia não faz sentido, refém das energias fosseis emissoras de gases de efeito estufa.
Mélanie Laurent, atriz, e Cyril Dion, escritor e fundador do movimento Colibris, partem então, com uma equipa de filmagem, em busca de boas práticas e ideias redentoras do nosso futuro.
E, assim por diante, a cada capítulo sucedem-se as problemáticas energéticas, económicas, políticas e pedagógicas, e as realizações que lhes procuram dar solução concreta e criativa. Contudo, será o otimismo de Cyril e Mélanie superficial? Estaremos enfeitiçados pelo charme da banda sonora, demasiado ligeira para o drama em curso?
O artigo da Nature é um bom ponto de partida pois descarta o discurso negacionista, hoje intolerável. Não estamos tampouco no registo de calamidade à Al Gore, nem de denuncia incriminatória, à Michael Moore. Demain é uma proposição esperançosa, sobre um fundo de interesses maléficos na economia mundial e as suas consequências ecológicas. O melhor do filme são os protagonistas, testemunhos competentes e legítimos de boas práticas, cuja narrativa nos convida a uma atualização de valores e estilos de vida mais responsáveis.
O seu ponto mais fraco é o excesso de informação e o caráter demonstrativo que abafa uma participação mais refletida do espetador: poderia pensar-se que as hortas urbanas convivem mal com a poluição de muitas cidades ativas; que o sucesso energético da Islândia assenta em condições naturais e populacionais singulares; que muitos países gostariam de adotar a lição educativa finlandesa, mas não o conseguem senão em nichos privilegiados.
É também interpelante pensar que no mesmo ano de 2015, estando o filme a ser rodado, o Papa Francisco publicava a carta encíclica Laudato Si, sobre o cuidado da casa comum.
A complexidade da problemática resiste à apologética acelerada em voz off, que se torna quase anestesiante, contraproducente relativamente ao entusiasmo que a narrativa soube suscitar. A estrutura da ação humana tem os seus aspetos troncais, elementos antropológicos, éticos e espirituais, económicos e políticos, agregadores tanto das boas práticas como das resistências que se levantam, aspetos que catalisam as reflexões mais extensas sobre o documentário.
É também interpelante pensar que no mesmo ano de 2015, estando o filme a ser rodado, o Papa Francisco publicava a carta encíclica Laudato Si, sobre o cuidado da casa comum. A coincidência temática revela uma correlação pertinente. As noções introduzidas na encíclica de “paradigma tecnocrático”, “antropocentrismo autossuficiente” e “raiz humana da crise ecológica”, ou a noção de “ecologia integral” que convoca as tradições culturais e religiosas, oferece orientações para a ação política local e internacional e subsídios para uma educação e espiritualidade ecológicas, ajudam, em muito, a reflexão a ir mais longe. A inspiração cruzada de Demain e Laudato Si daria muito fruto, levada às nossas escolas e universidades.
Amanhã (T.O.) – Demain
Documentário
Estreia em França: 02.12.2015
Duração: 118 minutos
Realização Cyril Dion e Mélanie Laurent
Cinematografia Alexandre Léglise
Argumento Cyril Dion
Produção de Jérôme Tonnerre
Música Fredrika Stahl
Edição Sandie Bompar
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
Sugestão Cultural Brotéria
Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.
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