Da ficção e da realidade

Segunda proposta das Férias com Deus é assinada por Davide Correia, jovem ligado ao Centro Académico de Braga. E propõe-nos uma viagem ao coração paciente e misericordioso de Deus, a começar pela literatura.

Segunda proposta das Férias com Deus é assinada por Davide Correia, jovem ligado ao Centro Académico de Braga. E propõe-nos uma viagem ao coração paciente e misericordioso de Deus, a começar pela literatura.

(In)felizmente, pertenço ao grupo de pessoas que padece, principalmente, durante as férias de verão, daquela enfadonha condição para a qual, no passado mês de julho, o P. Francisco Martins, sj tanto nos acautelou no seu artigo no Ponto SJ. Quando tomo consciência, já cedi à tentação; é tarde demais. A atenção está voltada para essas temíveis criaturas, que possuem a estranhíssima capacidade de absorver quem ousa tocar-lhes: os livros. É um verdadeiro pesadelo.

Gracejos à parte, existem livros que, sendo devidamente apreciados, permitem-nos adentrar numa dimensão profunda (e, para muitos, cada vez mais desconhecida) da nossa existência. Esta profundidade torna-se mais atingível se navegarmos pelas suas suas páginas guarnecidos da lente do Amor. E, mais importante, se, tal como S. Inácio, também aprendermos a ver Deus em todas as coisas. Não sendo crítico literário (ou algo que equivalha), é deste modo que convido o leitor a acolher o resto desta proposta, mergulhando num dos mais maravilhosos romances da história.

* * *

Este pequeno trecho (1), de O Conde de Monte Cristo, pertence a uma carta de despedida, que o Conde escreve a dois amigos: Maximilien Morrel e Valentine de Villefort:

[…] Diga ao anjo que irá olhar pela sua vida, Morrel, que de vez em quando reze por um homem que, tal como Satanás, pensou por instantes ser igual a Deus, mas reconhece agora com cristã humildade que só Deus possui o poder supremo e a infinita sabedoria. Talvez essas preces possam apaziguar o remorso que ele sente no fundo do coração. […] É preciso ter querido morrer, Maximilien, para saber quanto é bom viver. […] e nunca se esqueçam de que, até ao dia em que Deus se dignar revelar o futuro ao homem, toda a sabedoria humana se resume nestas palavras:
Aguardar e ter esperança!

O vosso amigo,

Edmond Dantès

Conde de Monte Cristo

(DUMAS, Alexandre (1845). O Conde de Monte Cristo II. Lisboa: Relógio d’Água. p.602)

Das vontades

Nesta grande obra de Alexandre Dumas é narrada a história de um jovem capitão da marinha mercante, Edmond Dantès. Vítima da inveja humana, foi alvo de uma conspiração que o lançou, injustamente, para as masmorras do Castelo de If, onde permaneceu por vários anos, até alcançar a liberdade. Já longe do cárcere, Dantès deu início à sua ’missão’, tentando provar a sua inocência. Para isso arquitetou um plano, executado com a ajuda de um conjunto de disfarces (entre eles, o Conde de Monte Cristo), para conseguir aproximar-se daqueles que o incriminaram, na esperança de obter a sua justiça.

« … a racionalização do personagem começa a adulterar a sua visão de Deus, confundindo a sua vontade pessoal com a do Senhor»

O grande problema é que a sede de justiça de Edmond acabou por se confundir com algo pior e perigoso: o doentio desejo de vingança. Paralelamente, a racionalização do personagem começou a adulterar a sua visão de Deus, confundindo a sua vontade pessoal com a do Senhor. Uma vez questionado por outro personagem, Gérard de Villefort, acerca da sua ambição, o protagonista assume-se um agente divino ou, como acabaria por referir, um agente da Providência:

Também eu, como acontece com todos os homens uma vez na vida, fui levado por Satanás para a mais alta das montanhas da terra […], e como disse antes a Cristo, também me disse a mim: «Diz-me, filho dos homens, o que terei de fazer para me adorares?» Refleti durante muito tempo, pois há muito tempo já que uma ambição me devora o coração, e depois respondi: «Ouve, sempre ouvi falar da Providência, porém nunca a vi […]. Desejo ser eu mesmo a Providência, pois sei que a coisa mais bela, mais nobre e mais sublime do mundo é recompensar e punir.» Mas Satanás baixou a cabeça e suspirou «Estás enganado», disse ele, «a Providência existe. Nunca a viste, porque o filho de Deus é tão invisível quanto o pai. […] porque ele opera por meios secretos […]. Tudo o que posso fazer por ti é tornar-te um dos agentes da Providência.» O pacto foi concluído. Talvez tenha sacrificado a minha alma, mas o que importa isso?

(DUMAS, Alexandre (1845). O Conde de Monte Cristo I. Lisboa: Relógio d’Água. p.521)

 

Este lado vingador de Edmond arrastou consigo uma das grandes fatalidades da vingança: atingiu os inocentes, tornando-se impossível medir todas as consequências que daí advêm. E, no romance, por mais que os danos não sejam diretamente provocados por Monte Cristo, este não deixa de assumir o papel do jogador de xadrez, manipulando as pessoas como peças — jogando com as suas fraquezas e explorando as suas necessidades — assim como os acontecimentos, no tabuleiro da vida, daquela alta sociedade parisiense do século XIX. Isto fez com que não só os causadores da prisão do inocente fossem atingidos, mas, também, todos aqueles que os rodeavam, família e amigos, que nada tinham que ver com o passado de Edmond.

Podemos responder sempre à injustiça ora com vingança, ora com perdão. Talvez tivesse sido bastante útil se o protagonista possuísse conhecimento das valiosas regras de Discernimento dos Espíritos, que Santo Inácio de Loyola nos deixou.

Uma vez entregue a esta desordem de coração, acabou por ocorrer a despersonificação do próprio Dantès, que começou a perder a sua verdadeira identidade, restando quase nada do jovem capitão de humilde coração. Vendido aos prazeres aparentes e deleites do Inimigo, apenas sobrou a alma vingadora, desolada e desordenada do Conde de Monte Cristo.

Podemos responder sempre à injustiça ora com vingança, ora com perdão. Talvez tivesse sido bastante útil se o protagonista possuísse conhecimento das valiosas regras de Discernimento dos Espíritos, que Santo Inácio de Loyola nos deixou. Arrebatado, ao tomar consciência de que o seu coração estava mergulhado numa profunda desolação — com «obscuridade da alma, perturbação, inclinação a coisas baixas e terrenas, inquietação proveniente de várias agitações e tentações que levam a falta de fé, de esperança e de amor» —, Edmond Dantès poderia optar por lutar contra o mau espírito, esperançoso de que, com perseverança, a consolação viria, apesar da injustiça de que foi alvo. Por conseguinte, no decorrer da leitura da obra, facilmente percebemos que esta não é a sua eleição.

 

Do Arrependimento e da Misericórdia

Já reparamos que devido à conquista do ódio, sobre o seu coração, facilmente ocorreu uma exorbitação das necessidades e do desejo de reparo de Dantès. Então, este acabou por ser injusto e, também, praticar o mal, na busca de reparar o mal que lhe foi feito. Contudo, não deixa de ser importante realçar que o protagonista também ajudou muitas outras personagens, no decorrer da narrativa — podemos assumir, com alguma segurança, que essas passagens são resquícios da alma esquecida do bondoso Edmond.

«…ao observar as consequências irreparáveis e alargadas que a sua vingança vai provocando, Dantès acaba por se arrepender.»

Mais tarde, foram esses fragmentos da humilde alma do antigo marinheiro que permitiram que o seu coração não ficasse indiferente ao mal, tomando consciência dos efeitos dos seus atos. Então, apesar de ter optado por caminhar por vales tenebrosos, o mais importante é que, ao observar as consequências irreparáveis e alargadas que a sua vingança provocou, Dantès acabou por se arrepender.

O culminar desse arrependimento aconteceu quando o Conde escreveu a carta a Morrel e à menina de Villefort (que lemos mais a cima); a Misericórdia e o Perdão foram estendidos sobre o próprio Dantès que, finalmente, entendeu que não era (igual a) Deus. Assim, foi concedido o perdão àquele que outrora fora inocente, mas que, na sua busca de justiça (ou vingança), deixou de o ser, tornando-se também um culpado; é revelada não só a compunção no coração de Monte Cristo, como também dá-se a Ressurreição da alma do há muito esquecido Edmond Dantès.

 

1.

«… pensou por instantes ser igual a Deus, mas reconhece agora com cristã humildade que só Deus possui o poder supremo e a infinita sabedoria.»

Assim como o protagonista da obra de Dumas, também nós somos habitados por várias moções interiores. O que podemos retirar daquilo que acontece ao longo da vida de Edmund Dantès é que, quando o discernimento é pobre, facilmente confundimos aquilo que parte de nós —  das nossas vontades —  com aquilo que o Senhor nos vai pedindo.

Uma vez fechados sobre este autocentramento, eventualmente, escravos de desejos ou vontades ilusórias, podemos danificar seriamente o nosso coração. Então, cabe-nos escutá-Lo, acolher o que Ele nos tem para dizer e tentar pôr em prática o que nos é confiado, evitando o protagonismo e a tentação de ocupar o lugar de Deus, ou manipular a sua vontade. Para tal não existe um melhor caminho do que o da oração: conscientes das moções interiores, devemos permanecer vigilantes, sabendo parar, escutar e discernir, confiantes de que apenas o Senhor possui a infinita sabedoria e sabe o que é melhor para nós.

É importante também ter em conta que é o Senhor quem nos convida sempre a nascer de novo; podemos/temos de nascer de novo, libertando-nos das nossas prisões e acolhendo o perdão e a vida que o Senhor nos quer dar. Tal como aconteceu com Edmond, é o Senhor, cheio de paciência e de bondade, que vem sempre ao nosso encontro (com o seu perdão) e não deseja outra coisa senão devolver-nos a vida.

Ainda assim, e se, tal como Dantès (Monte Cristo), também optamos pela escolha errada? Estará tudo perdido? Creio que não: é importante também ter em conta que é o Senhor quem nos convida sempre a nascer de novo; podemos/temos de nascer de novo, libertando-nos das nossas prisões e acolhendo o perdão e a vida que o Senhor nos quer dar. Tal como aconteceu com Edmond, é o Senhor, cheio de paciência e de bondade, que vem sempre ao nosso encontro (com o seu perdão) e não deseja outra coisa senão devolver-nos a vida.

2.

«… e nunca se esqueçam de que […], toda a sabedoria humana se resume nestas palavras: Aguardar e ter esperança!»

Vivemos numa época muito diferente, daquela onde decorre a ação de O Conde de Monte Cristo. É claro que, ao longo da História, existiram sempre algumas pessoas impacientes. Ainda assim, atualmente, saber aguardar tornou-se uma raridade; mais do que nunca, pouco de natural parece ter. Andamos, então, embebidos nos ritmos frenéticos que pautam o nosso quotidiano, (sobre)vivendo num mundo onde impera a sobrevalorização/sacralização da rapidez —  da instantaneidade.

Mas nem tudo é instantâneo e, às vezes, é necessário saber aguardar, com paciência. Então, por mais paradoxal que soe, nos dias de hoje é crucial reeducar o nosso próprio coração para a Espera e, consequentemente, para a Fidelidade e a Perseverança na mesma, principalmente se, tal como Edmond, andarmos desolados. Aliás, quem o diz é Santo Inácio, na oitava regra: «O que está em desolação trabalhe por manter-se na paciência…»

Sabemos que, por vezes, não é fácil: quando temos que esperar por algo, rapidamente surge a tentação de desistir ou de passar pela ‘porta larga’. Mas também devemos reagir intensamente contra a mesma tentação, pois há esperas que valem a pena ser vividas, nomeadamente se for com a esperança de que nunca estamos sós, mas com o Senhor do nosso lado, que nos acompanha e nos ensina a aguardar (como Ele aguarda sempre por nós) e a ter esperança (livres e confiantes no seu amor).

Hoje, aproveita um momento do teu dia, para agradecer ao Senhor, por todas as vezes em que Ele foi paciente contigo. Não deixes, também, de Lhe pedir a graça de uma relação verdadeira e próxima, baseada na escuta e no discernimento, através da oração – «como um amigo fala a um amigo e sabe calar-se para o escutar».

Ah, e não te esqueças: sem pressas.

Boas Férias!

 

Outras propostas das Férias com Deus:

O Evangelho segundo…tu

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.