Suspender as atividades lectivas e não letivas e manter as crianças e jovens em casa (e não na praia ou nos cinemas) é uma medida fundamental para as proteger face à epidemia que estamos a vivenciar. Ficam mais protegidos e protegem os outros, num claro exercício de cidadania, consciência e responsabilidade coletiva.
Existem, no entanto, muitas crianças para quem esta medida (fundamental e imprescindível, sublinhe-se) acaba por ter um efeito paradoxal, na medida em que as expõe a outro tipo de fatores de risco. Falamos das crianças que vivem em contextos familiares disfuncionais, onde experienciam diversas formas de maus tratos. Por um lado, crianças que comem a sua única refeição ou tomam o seu único banho na escola (sim, estas situações ainda existem). Falamos ainda das crianças vítimas de maus tratos físicos e psicológicos, perpetrados acima de tudo pelos pais e cuidadores. Confinadas ao espaço doméstico, sem o olhar tão atento e presente dos professores ou de outros profissionais que acompanham a família, acabam por ficar mais desprotegidas e vulneráveis.
Vivemos um momento de crise e, consequentemente, os pais experienciam maior stress. Sem os recursos (internos e externos) adequados para lidar com este mesmo stress, o risco de este ter um impacto negativo no exercício da parentalidade aumenta. Quer isto dizer que aumenta o risco de poderem utilizar práticas parentais mais desajustadas ou mesmo punitivas, como bater, empurrar ou fechar as crianças como forma de controlar os seus comportamentos.
As crianças são sempre a parte mais fraca e vulnerável, cabendo aos adultos assegurar a sua protecção e bem-estar. E se, por um lado, as protegemos do vírus ao mantê-las em casa, por outro lado, em muitos casos, acabamos por desprotegê-las ainda mais.
Neste contexto de crise, o apoio técnico às famílias acaba por ficar mais fragilizado. Evitam-se as visitas domiciliárias e os atendimentos presenciais, tornando menos visíveis eventuais situações disfuncionais. Afastadas dos jardins de infância e da escola, as crianças assumem também uma maior invisibilidade. Passam a ser as crianças que ninguém vê e que ninguém ouve.
É neste momento que a rede informal de suporte se afigura como particularmente importante. Falamos dos familiares, dos amigos e da rede de vizinhança que, respeitando a devida distância de segurança, devem ainda assim manter-se atentos a eventuais sinais de sofrimento nas crianças.
É neste momento que a rede informal de suporte se afigura como particularmente importante. Falamos dos familiares, dos amigos e da rede de vizinhança que, respeitando a devida distância de segurança, devem ainda assim manter-se atentos a eventuais sinais de sofrimento nas crianças. Avaliar, no dia-a-dia, se as suas necessidades são satisfeitas, desde as mais básicas até às emocionais e cognitivas. Comem devidamente e tomam banho? Dormem o número de horas que é recomendado? Têm a oportunidade de brincar de uma forma adequada à sua idade? Quando se portam mal ou fazem birras, conseguem os pais gerir a situação sem recorrer à punição física? Têm alguém que as escute e console quando precisam, acalmando os seus receios e as suas dúvidas?
Vivemos numa sociedade autocentrada, individualista e egoísta, em que cada um olha acima de tudo para o seu próprio umbigo. Tão bom seria que esta crise trouxesse consigo também alguma aprendizagem. Aprender a olhar à nossa volta, a escutar e a partilhar, numa verdadeira perspetiva de entre-ajuda.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.