Tenho saudades de ouvir histórias como aquelas que ouvia na minha infância. Episódios reais e coisas imaginadas que nos eram contados ao serão por avós e tios, pais e padrinhos, numa roda de lareira ou à volta da mesa. Éramos muitos, sempre muitos, mas cabíamos todos na mesma sala quando se tratava de ouvir as histórias do Avô. Ele tinha a sua cadeira, onde se sentava todas as noites, e a Avó a dela, onde quase nunca se deixava ficar por muito tempo, por ter sempre que fazer, com tantos filhos e netos em casa. Nós, os mais novos, corríamos para chegar primeiro porque queríamos ficar perto do Avô. Os que conseguiam, sentavam-se no chão e apoiavam-se se nas suas pernas e assim ficavam, como que encantados pela sua voz e pela sua presença. Não sei quantos anos durou este idílio familiar, só sei que tenho saudades e que foram os tempos mais felizes da nossa família alargada.
Ouvíamos histórias divertidas, algumas cheias de fantasias, propositadamente exageradas para nos fazerem rir, outras mais verdadeiras, mas igualmente criativas e muitas vezes repetidas. Ríamos com as imitações que o Avô fazia e delirávamos com as anedotas do tio Guilherme, o nosso tio caçador que de tudo fazia uma graça de rebentar a rir. Também nos contavam histórias tristes, de pessoas por vezes muito pobres e muito sós, que era imperativo visitar e ajudar. Todos os Natais, de toda a vida, em casa dos Avós, foram marcados pelo amor e pela dedicação com que se faziam cabazes para estas famílias, que também eram visitadas e acompanhadas ao longo de todo o ano. Em casa dos Avós havia duas mesas grandes, uma na sala de jantar e outra na cozinha, onde almoçavam e jantavam as pessoas que trabalhavam na casa e no campo, mas também todos os pobres que batiam à porta com fome. Para eles e para os miseráveis que a guerra civil de Espanha deixou, havia sempre uma sopa quente e um prato acabado de cozinhar.
Talvez as minhas saudades do Natal da infância sejam mais desta cozinha, do que da sala, pois cruzavam-se ali pessoas incríveis.
Talvez as minhas saudades do Natal da infância sejam mais desta cozinha, do que da sala, pois cruzavam-se ali pessoas incríveis. Artesãos e funcionários, pobres e remediados, todos se encontravam naquele espaço com cheiro de fogão de lenha onde havia sempre lugar para mais um. Até os sapateiros e as costureiras viviam lá em casa às temporadas, pois corriam tempos de grande escassez e as roupas usavam-se primeiro de um lado e, depois, do outro. Quando o pano começava a ficar estafado viravam-se os tecidos, as golas e os punhos do avesso. Os sapatos para aquela tropa de pais que tiveram 12 filhos e perderam 3, mas continuavam com 9 para criar, também tinham que ser feitos em casa. As solas gastas arrancavam-se para colocar meias solas e, de seguida, puxava-se o lustro e dava-se novo brilho e compostura aos sapatos descambados que os mais novos invariavelmente iam herdando dos mais velhos.
As histórias de cada dia, da vida de cada um, naquele cenário familiar, foram o filme da infância de filhos e netos. Para mim, continuam a ser uma memória calorosa, vivida, povoada de vozes e cheiros, gargalhadas e segredos, serões em casa e passeios em terras de cerejeiras e castanheiros. Se fechar os olhos, ouço ainda melhor cada um. E volto ao eco das canções lá de casa, mas também às corridas no empedrado da rua, ao calor de derreter, nos verões, e ao frio granítico dos Invernos. E às camaratas de primas e de primos, cada uma em seu piso.
Duas histórias fazem-me voltar especialmente ao Natal e àquele presépio que era a nossa vida nesses tempos. Duas histórias de fazer chorar, daquelas que já não se contam às crianças para não as traumatizar. Uma delas é uma fábula conhecida de muitos, mas a outra ficou apenas com quem assistiu a um teatro de aldeia e depois a contou e voltou a contar, acrescentando mais ou menos detalhes.
Sei apenas que me marcou e me ajudou a contemplar certas realidades, porventura mais tristes e feias, de forma a encontrar beleza quando ela não está à vista.
A primeira é um simples diálogo entre uma mãe e um filho.
Inclinado sobre o colo da mãe, o filho pergunta:
– Mãe porque é que tem umas mãos tão feias?
A mãe fica em silêncio e abraça o filho antes de começar a contar a história de um grande fogo, numa casa onde morava uma família e havia um bebé. As chamas foram rápidas e consumiram tudo num instante, mas a mãe atravessou o fogo e conseguiu salvar o seu filho. Retirou-o do berço a arder com as suas próprias mãos.
O filho ouve tudo muito calado e, por fim, diz:
– Mãe, nunca vi umas mãos tão bonitas!
Esta história acompanhou-me durante a infância e acho que, de certa forma, ainda me acompanha, pois sempre que vejo alguém desfigurado lembro-me dela e penso na imagem que fiz daquela mãe (e das suas mãos) e ainda trago comigo. Não sei se era apenas uma história edificante, se era um conto do Estado Novo (pode muito bem ser daqueles que vinham publicados no livro de leitura da 4ª classe que, hoje em dia, é um ícone de época), ou se foi uma simples história contada pelos avós. Sei apenas que me marcou e me ajudou a contemplar certas realidades, porventura mais tristes e feias, de forma a encontrar beleza quando ela não está à vista. Como imagino que outros fizeram no pobre e despojado Presépio, quando lá chegaram há dois mil anos.
E, através delas, chego ao Presépio que me revela sempre o Menino, mas também o amor do Pai e o coração da Mãe.
O teatro de que falo foi encenado em palcos de aldeias perdidas no país profundo há mais de 70 anos e contava uma história muito triste:
Era uma vez um rapaz, um pobre súbdito, a quem o rei exigiu uma perversa prova de lealdade: que lhe trouxesse o coração da própria mãe. A peça foi levada ao palco no dia de Nossa Senhora da Sacra Parte, perto da aldeia dos meus Avós e a minha mãe conta que durante a peça todos choravam na plateia e atrás das cortinas. Entre peripécias e exageros que agora não vêm ao caso, o rapaz foi obrigado a matar a sua própria mãe e, durante a ação, todos os outros atores tentavam disfarçar a comoção fungando entre falas. Até ao rei cruel falhou a voz quando teve que fazer de malvado. No fim de tudo, quando o rapaz, despedaçado, trazia nas mãos o coração da sua mãe, feito de pasta de algodão embebida em mercúrio-cromo, para o entregar ao rei, tropeçou e deixou-o cair no chão. E foi nesse momento que se ouviu uma voz doce e terna, como que vinda do céu, que era a voz do coração de sua mãe a perguntar:
– Magoaste-te meu filho?
A sala veio abaixo em choros e lágrimas. Nem sequer houve palmas porque a invasão do palco foi instantânea e todos queriam acertar contas com o rei. Parece que tiveram que chamar a polícia e tudo.
Não estive lá e não sei. Apenas sei que aquela história e esta peça fantasiosa, tão exagerada como impensável, são duas fábulas que me devolvem a infância e me levam ao Presépio. Levam-me por caminhos improváveis e porventura inenarráveis de tão melodramáticos, mas levam porque estas e outras memórias de histórias ficaram para sempre comigo. E, através delas, chego ao Presépio que me revela sempre o Menino, mas também o amor do Pai e o coração da Mãe.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.