Artigo originalmente publicado na revista The Tablet
O recente relatório sobre os abusos sexuais ocorridos na Igreja em França suscitou a questão que já tinha sido levantada após a publicação de relatórios semelhantes na Austrália, Irlanda, Estados Unidos e noutros locais: deveria ser obrigatório que um padre que ouve falar em confissão de um abuso sexual cometido contra um menor o denunciasse às autoridades seculares?
Embora a Igreja Católica não espere que as suas leis sejam colocadas acima da legislação civil, as tentativas de remover o segredo da confissão levantam questões fundamentais sobre a liberdade religiosa e de consciência. Não existem também quaisquer provas convincentes de que o abuso seria evitado pela remoção do segredo.
Assim se expressou o Arcebispo D. Éric de Moulins-Beaufort, presidente da Conferência Episcopal Francesa, após a publicação do relatório francês: “É necessário conciliar a natureza da confissão com a necessidade de proteger as crianças”.
Um sacramento inviolável
Não é tarefa fácil quando a discussão está envolta numa tão grande carga emocional e quando a natureza da confissão na Igreja Católica é muito incompreendida. O cânone 983 §1 do Código de Direito Canónico oferece uma definição tão simples quanto possível do “segredo do confessionário”: “O sigilo sacramental é inviolável; pelo que o confessor não pode denunciar o penitente nem por palavras nem por qualquer outro modo nem por causa alguma”. O padre não pode quebrar o segredo para salvar a sua própria vida, nem para proteger o seu bom nome, para salvar a vida de outra pessoa ou para ajudar o curso da justiça. Os sacerdotes que violam o segredo de confissão ficam automaticamente excomungados.
O sigilo absoluto do confessionário explica porque é que as pessoas se sentem livres para dizer certas coisas em confissão que não diriam em mais lado nenhum. Há quem veja na insistência da Igreja na inviolabilidade do segredo uma confirmação de que ela não coloca a segurança e o bem-estar das crianças em primeiro lugar. Assume-se por vezes que os perpetradores de abusos sexuais são capazes de revelar o abuso em confissão, receber a absolvição, e depois continuar a abusar sem enfrentar quaisquer consequências. É verdade que alguns abusos foram dissimuladamente preparados e/ou ocorreram no contexto do sacramento da confissão – um delito grave (crime) no Direito Canónico. É verdade, também, que ao longo dos séculos, houve padres a serem torturados e martirizados por recusarem as exigências de regimes brutais para que fossem revelados os segredos da confissão. A discussão sobre o segredo abriga uma forte carga de emoção de ambos os lados, tanto mais que diz respeito a questões muito sensíveis como a vergonha, a privacidade e a responsabilidade pessoal.
O sigilo absoluto do confessionário explica porque é que as pessoas se sentem livres para dizer certas coisas em confissão que não diriam em mais lado nenhum.
Algumas distinções e esclarecimentos
Talvez fosse útil fazermos algumas distinções e esclarecimentos. Primeiro, aqueles que falam de abuso numa confissão podem ser perpetradores, vítimas de abuso ou pessoas que sabem de um abuso cometido por outros; e em cada um destes três casos, o abuso pode ter acontecido há anos, ou décadas, ou ainda estar em curso. Há algumas ideias profundamente enraizadas sobre a confissão que simplesmente não são verdadeiras. Com exceção dos capelães das prisões, é altamente improvável que os padres ouçam alguma vez uma confissão de um perpetrador de abuso sexual de crianças. Apenas um padre me disse que tinha ouvido a confissão de um perpetrador – e isso aconteceu apenas numa ocasião. Parece haver a ideia de que os católicos se confessam frequentemente. Na verdade, mesmo nas cidades, hoje em dia é muitas vezes difícil encontrar um lugar onde um católico possa fazer a sua confissão. E muitos não se apercebem que o padre normalmente não conhece a pessoa que está diante de si no confessionário e não a pode forçar a revelar a sua identidade. É precisamente porque o seu anonimato é garantido que as pessoas vão confessar-se. Se o tirassem, muito poucas pessoas continuariam a ir – e certamente nenhum perpetrador em risco de ser preso. No caso de um penitente se ir confessar a um padre que o conheça, por acaso ou por opção, seria ainda mais provável que não confessasse o seu abuso, ou que disfarçasse o seu crime por detrás de expressões propositadamente veladas.
Quem pretende abolir o sigilo do confessionário no caso de abuso de crianças ou outros crimes graves argumenta que deveria ser obrigatório que um padre que tenha conhecimento de abuso o denuncie, tal como o deveria ser para médicos, psicoterapeutas ou outros profissionais. As leis atuais sobre a denúncia obrigatória de abusos variam muito de país para país e mesmo dentro dos estados de um mesmo país, deixando frequentemente algum espaço de discrição sobre em que circunstâncias e a quem a pessoa que tem conhecimento de um abuso o deve denunciar. Uma vítima de abuso sexual clerical enquanto adulto fez-me notar o facto, por vezes negligenciado, que muitas vítimas se sentem culpadas, e acham extremamente difícil falar pela primeira vez sobre o indizível. Ela receia que, se não se tiver a certeza absoluta de que o que se diz em confissão permanecerá confidencial, um dos poucos lugares seguros onde se pode começar a falar de uma experiência de abuso se possa vir a perder.
A absolvição – o perdão dos pecados – está ligada ao cumprimento das condições para uma confissão válida: contrição sincera, confissão clara, satisfação adequada. A absolvição não pode ser dada se existirem dúvidas sobre qualquer uma destas condições.
A absolvição – o perdão dos pecados – está ligada ao cumprimento das condições para uma confissão válida: contrição sincera, confissão clara, satisfação adequada. A absolvição não pode ser dada se existirem dúvidas sobre qualquer uma destas condições. Por outras palavras, no caso de alguém confessar um abuso, a menos que demonstre sinais de arrependimento sincero e vontade de reparar o mal feito, o confessor não deve dar a absolvição. No entanto, de acordo com os ensinamentos da Igreja, o segredo não pode ser quebrado quando um padre toma conhecimento de um abuso ou de outro crime grave em confissão, mesmo que estas condições não sejam cumpridas e não possam dar a absolvição. É por isso que, por exemplo, um reitor não pode ouvir a confissão de um seminarista, para que possa falar livremente nas deliberações sobre se o candidato deva ser apresentado para ordenação e não esteja atado às obrigações do sigilo.
Embora, de acordo com o direito canónico, a absolvição não possa estar vinculada a uma condição como a denúncia do crime à polícia, o confessor deve fazer tudo o que estiver ao seu alcance para convencer um perpetrador a assumir a responsabilidade pelo que fez. Isto inclui tentar encontrar-se com ele ou ela fora do confessionário, onde o padre possa convidar o perpetrador a falar novamente sobre o crime cometido e instá-lo a entregar-se à justiça. Da mesma forma, se uma vítima se vier confessar, o confessor pode oferecer-se para se encontrar com essa pessoa fora do espaço do confessionário ou indicar o apoio e a orientação adicional que lhe possam ser oferecidas por parte de terapeutas e advogados.
Se a Igreja não explicar melhor porque é que o segredo da confissão não protege da justiça os abusadores ou autores de outros crimes graves – e porque é que o segredo pode ajudar a salvaguardar crianças e adultos vulneráveis – os legisladores civis podem vir a pôr em causa a inviolabilidade do segredo da confissão
Explicar melhor: uma nova instrução para os confessores
Se a Igreja não explicar melhor porque é que o segredo da confissão não protege da justiça os abusadores ou autores de outros crimes graves – e porque é que o segredo pode ajudar a salvaguardar crianças e adultos vulneráveis – os legisladores civis podem vir a pôr em causa a inviolabilidade do segredo da confissão. Sugiro que se a Igreja fizesse mais para ajudar os confessores a serem ouvintes empáticos, bem como intérpretes habilidosos do ensinamento moral da Igreja, tornar-se-ia mais claro que o sacramento da reconciliação pode ser um instrumento na luta contra o abuso, e promover-se-ia uma maior confiança nos confessores, no processo e na compreensão do próprio sacramento da reconciliação.
Sugiro que a Santa Sé considere a possibilidade de publicar uma nova instrução para os confessores. Esta reiteraria a obrigação de respeitar as leis de denúncia de abusos fora do confessionário e reafirmaria também o segredo. Um ponto crucial é a responsabilidade pessoal do confessor. Isto inclui o apelo que deve ser feito a um perpetrador para pôr fim ao abuso, para se apresentar às autoridades legais e para procurar ajuda terapêutica, e que a absolvição do pecado de abuso não pode ser dada a não ser que não só tenha ficado patente uma contrição sincera, como também tenha sido demonstrada a vontade de compensar os danos causados. A instrução também deixaria claro que, no caso de uma vítima falar de um abuso sofrido, o confessor deve ouvir com empatia e respeito. O padre pode então oferecer-se para se encontrar com a pessoa fora do espaço do confessionário e encorajá-la a contactar terapeutas e advogados. Deve ser prestado um acompanhamento adequado, dado que muitas vítimas que falam sobre o abuso pela primeira vez se sentem muito constrangidas quanto a voltar a contar o abuso, particularmente se se colocar a possibilidade de um processo judicial.
A mesma instrução deve definir (1) a quem os confessores podem pedir esclarecimento e orientação e que necessitam de estar informados sobre a quem podem encaminhar as vítimas e outras pessoas necessitadas de ajuda; (2) que procedimentos devem ser seguidos por um confessor quando uma pessoa – perpetrador ou vítima – concorda em encontrar-se fora da confissão para mais esclarecimentos; e (3) que tipo de elementos específicos são necessários tanto na formação inicial como contínua dos confessores, bem como o apoio e acompanhamento a prestar aos confessores para que possam lidar com princípios morais e legais que por vezes estão em contradição.
Uma secularidade saudável reconhece que os Estados podem incorrer na tentação de “exceder os limites” quando se trata de comunidades religiosas, enquanto uma Igreja saudável sabe como entregar a César o que é de César.
Relação Igreja – Estado
A questão subjacente ao debate sobre o segredo é a relação entre o Estado e a Igreja Católica e outras instituições religiosas num Estado laico e liberal. Devido ao flagelo do abuso sexual por parte de clérigos e à crença na Europa e na América do Norte de que as Igrejas não abordaram internamente a questão de forma satisfatória, existe um sentimento crescente de que o Estado deve intervir. Isto criou uma tensão entre a Igreja e o Estado que requer a procura de um delicado equilíbrio entre o respeito pelos poderes de aplicação da lei por parte do Estado e a liberdade religiosa. Uma secularidade saudável reconhece que os Estados podem incorrer na tentação de “exceder os limites” quando se trata de comunidades religiosas, enquanto uma Igreja saudável sabe como entregar a César o que é de César.
O segredo da confissão cria um espaço sagrado no qual o penitente fica completamente livre de colocar perante Deus o que a sua consciência lhe ditar, e – quando mostra contrição – encontra o perdão, a reconciliação e a cura. O facto de o segredo ter sido no passado um pretexto para abusos e outros crimes não deve levar a descartar o que é um canal de graça. Mas há questões complexas ao seu redor que precisam de ser abordadas com sensibilidade e argumentos bem fundamentados e no contexto de uma relação de mútua confiança entre a Igreja e o Estado. Talvez seja tempo de a Igreja emitir instruções mais claras em torno do exercício do sacramento da reconciliação, para que ele seja melhor compreendido pelos penitentes, confessores e pessoas de fora da Igreja como um lugar de segurança, de cura e de justiça.
Tradução do Inglês: Mário Almeida
Fotografia – Josh Applegate – Unsplash
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