Como nasce uma palavra*

Francisco deu palavra como as árvores dão fruto. E por isto, quando falava, todos entendiam. Porque Francisco pregava com a palavra nascida das suas mãos, nascidas ao lado das mãos dos outros.

Francisco deu palavra como as árvores dão fruto. E por isto, quando falava, todos entendiam. Porque Francisco pregava com a palavra nascida das suas mãos, nascidas ao lado das mãos dos outros.

Uma palavra está nascendo

Na boca de uma criança:

Mais atrasada do que um murmúrio.

Não tem histórias nem letras

Está entre o coaxo e o arrulo.

                                                     Manoel de Barros

 

Toda a vida procurou uma palavra. É pouca coisa, é certo. Mas fazia-lhe falta. Por isso a procurava com obstinação. As biografias de Francisco de Assis, escritas pouco depois da sua morte, não contam como é que isto aconteceu. Mostram-no já de palavra madura nos lábios. Aqui faz-se ao contrário. Silencia-se a palavra para vê-la ainda verde, sem nome, a nascer. Este texto investiga o nascimento de uma palavra na vida de Francisco de Assis, e o nascimento de Francisco de Assis nessa palavra.

Quando Francisco de Assis dormia, jovem no limiar do século treze, sonhava com palácios e salões repletos de espadas, selas, lanças, escudos refulgentes. Conhecia de memória as gestas dos cavaleiros. Conta-se que passava manhãs, tardes e noites cantando através dos bosques. Demonstrou, desde cedo, apetências de andarilho. Toda a vida procurou uma palavra.

(O corpo do cavaleiro é feito de solidão e errância. Tem como único destino a aventura. Significa isto que anda de lado nenhum para lado nenhum arriscando a vida a pôr o mundo do avesso, tentando assim restituir-lhe a forma que teria no princípio de tudo. Por isso, há no cavaleiro uma atenção sem medida. A sua vadiagem respeita um código rígido de conduta: não passar ao lado dos desvalidos, não almejar senão a paz, não conhecer senão o relento, ter mais força de coração do que de corpo. Isto chega-me do Livro da Ordem de Cavalaria de Ramon Llul, que tem ainda esta frase: «O ofício do cavaleiro é manter a terra»).

Quando Francisco de Assis dormia, jovem no limiar do século treze, era assaltado por sonhos que não sabia ainda decifrar. Buscava um nome para si próprio. Sonhava com armas, e pensava consagrar-se cavaleiro. Francisco de Assis acreditava, como qualquer criatura do seu tempo, que os sonhos vinham de Deus. Dormir era uma boa forma de oração. Não era uma perda de tempo. A Legenda dos Três Companheiros dá conta de que, ainda sonhando, Francisco pergunta: «A quem pertencem estas armas que brilham com tanto esplendor, e este palácio tão encantador?», ouvindo depois esta resposta: «Todas estas armas, com o palácio, são para ti e para os teus cavaleiros». De súbito, é invadido por um plural: cavaleiros. Mas ainda não sabe o que fazer com ele. Interpreta tudo ao contrário. Sai sozinho e alegre em direção à guerra na Apúlia. Trocam-lhe as voltas. Cai doente, e dormitando sonha de novo (sonhos de dormitado são diferentes de sonhos de adormecido). A mesma voz regressa, não o deixa em paz: «Volta para a tua terra – disse a voz – e lá saberás o que deves fazer, porque a visão que sonhaste deves interpretá-la de modo completamente diferente». Quem assim procura uma palavra, mesmo sem o saber, está sendo procurado por ela.

Quando Francisco de Assis dormia, jovem no limiar do século treze, era assaltado por sonhos que não sabia ainda decifrar. Buscava um nome para si próprio. Sonhava com armas, e pensava consagrar-se cavaleiro.

(Roubei as primeiras frases deste texto a um poema do Eugénio, sem dizer coisa nenhuma, e agora parece-me injusto. Ele escreve assim: «Toda a manhã procurei uma sílaba. / É pouca coisa, é certo: uma vogal, / uma consoante, quase nada. / Mas faz-me falta. Só eu sei / a falta que me faz. / Por isso a procurava com obstinação. / Só ela me podia defender / do frio de janeiro, da estiagem / do verão. / Uma sílaba, / Uma única sílaba. / A salvação». A sílaba é a unidade mínima, gaguejante, incompleta da palavra. Talvez uma semente. Descobri há pouco tempo que o solo está sempre repleto de sementes. Quem mo contou ia comigo pelos campos do Vale Travesso, perto de Ourém. Não usou palavras. Caminhávamos, e a minha amiga ia-se dobrando ao longo do caminho, apanhando do chão bagos redondos, pequeninas hélices castanhas, estrelas mínimas, tufos do que parecia ser algodão e não era. Era tudo sementes. E eu não sabia. Eugénio parecia-se com esta minha amiga. Também ele percebia que o chão do poema está coberto de sílabas à espera da sua estação).

As voltas trocadas deixaram Francisco de Assis pensativo. Agora, queria nascer outra vez. Procurava ouvir uma palavra nova. A de cavaleiro não lhe assenta até ao fim. Herda-lhe a vagabundagem, a exuberância, o rigor, a ascese, a imaginação. Mas Francisco não vai nascer inteiro da palavra cavaleiro. Para fora dos sonhos as espadas, as selas, as lanças, os escudos refulgentes. Para fora do corpo as roupas luxuosas, próprias de um filho de mercador de tecidos. Uma outra palavra – mais atrasada do que um murmúrio – começou a chamá-lo. Quando é assim, ninguém aguenta. Há entusiasmo, mas muito mal-estar. Desmesurado como era, despiu-se todo, diante do bispo de Assis, do seu pai, e de muitos rostos espantados. O nu não sabe ainda que roupa o cobrirá. Está lançado no informe de uma palavra nascendo-lhe algures. E não quer que nada obstrua a sua germinação.

(O poeta António Ramos Rosa levou a cabo rigorosas e sucessivas investigações sobre esta palavra nascente, e sobre o modo como se nasce com ela. Ele fala desse lugar informe em que a palavra está vindo à luz e à cor, num poema intitulado «Nascer com a palavra»: «Aqui é o lugar onde se forma a face / visível e silenciosa das palavras / Neste instante desapareço / As palavras começam a ter cor / e um equilíbrio alto / um rio de formas surge / Neste momento vejo um verde ígneo e um cinzento suave». Desaparecer, desnudar-se, como um ventre alargando-se, quando começa a nascer qualquer coisa. Ramos Rosa descreveu um turbilhão, e nunca o negou. A fidelidade ao estado de nascença da palavra foi a sua forma de santidade. Viveu-a como vocação. A dado momento, conseguiu dizer: «estou pronto para a liberdade de nascer com as palavras / e de nelas me perder até que o turbilhão / se torne o vocábulo vivo e habitável». Estar pronto para nascer: passar do turbilhão ao vocábulo vivo e habitável. Ramos Rosa confessava: «Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra»).

Entretanto, Francisco de Assis começava a diminuir. Com o tempo, foi ficando cada vez mais pequeno. E isto, por tentadora que seja a metáfora, é literal. Lançou-se em jejuns intermináveis, emagreceu muito muito. Poucos o reconheciam. Diminuiu também o número dos seus gestos. Tinha apenas três: trabalhar, vadiar e louvar. E é tudo. Pedia pedras para reconstruir igrejas, e pão duro para a boca. Pedra sobre pedra reerguia as paredes, entaipava os muros. Levava pão duro à boca. Cantava de manhã, à tarde e à noite. Trabalhava muito as coisas, comia pouco as coisas, e louvava o Senhor de todas as coisas. Era tão pequeno que precisava de outros para se ver. E os outros chegaram, de imprevisto.

Trabalhava muito as coisas, comia pouco as coisas, e louvava o Senhor de todas as coisas. Era tão pequeno que precisava de outros para se ver. E os outros chegaram, de imprevisto.

(Os outros aparecem sabe-se lá donde. Nascem como os cogumelos. Li coisas espantosas sobre os cogumelos, e sobre as redes subterrâneas que se tecem sem que a gente veja – teias enormes conhecidas por mycelium permitem comunicações insuspeitadas debaixo de terra, e ao que parece é por conta delas que as árvores falam de água umas com as outras e crescem alto. Os cogumelos estão a manter a terra).

O seu primeiro companheiro foi Bernardo. Diz a Legenda dos Três Companheiros que Bernardo «admirara a austeridade da vida» de Francisco, e «sabia com que canseiras restaurara as igrejas em ruínas». As canseiras de Francisco chamam Bernardo. Um corpo cansado chama outro corpo. Então, primeiro veio Bernardo. Francisco era um. Agora são dois. Depois veio Silvestre. Depois veio Gil. Depois Sabatino, Morico, e João da Capela. Depois mais. Agora eram muitos. Não se escolheram, mas viviam juntos. Às vezes, separavam-se, e cada um tomava um caminho diferente, entrando por cidades, por castelos, por aldeias, a pregar a paz, e a confortar toda a gente, louvando o Criador do céu e da terra. «Quando se reviam, era tanta a alegria, que parecia não se recordarem mais do que tinham sofrido da parte dos maus» (palavras da Legenda dos Três Companheiros). O seu ir e vir conjunto, como o das aves, operava uma subtil desordem política. Certamente que a sua chegada, por humilde que fosse, desarrumava. Quem eram, o que queriam, para onde iam? Ninguém sabia bem, além dos que os convidavam a sentar-se à própria mesa. A proximidade expunha-lhes o nome. A falta de forma expunha-os ao vento. Francisco acentuava-a: «E nenhum se chame prior, mas todos, indistintamente, se chamem menores. E lavem os pés uns aos outros». Não tem designação este grupo de leigos vagabundos, muito menos hierarquia. Tem pés – e quem os lave. Não são ainda uma ordem religiosa. Não são frades, não são monges, não são freiras. Acompanham-se – e é tudo.

(No Vale Travesso, perto de Ourém, há um lugar chamado Quinta da Casa Velha. Aí, a partir de 2012, Margarida foi reunindo um grupo de gente, que agora se topa e se reconhece, mesmo quando não estão lá. Começaram por reabilitar uma garagem. Transformaram-na em capela. Celebravam a construção abrindo uma garrafa de vinho, que partiam depois em cacos. Estes cacos de trabalho eram recolhidos. Dos cacos do trabalho fez-se um vitral colorido. O Sol atravessa-o todas as manhãs. A comunidade da Casa Velha é gente junta, mesmo à distância. Onde quer que estejam são atravessados. A luz vem do Sol. E recebem a própria cor uns dos outros).

Não tem designação este grupo de leigos vagabundos, muito menos hierarquia. Tem pés – e quem os lave. Não são ainda uma ordem religiosa. Não são frades, não são monges, não são freiras. Acompanham-se – e é tudo.

A forma da vida deles seguia o Evangelho à letra. Quando mais tarde lhe pediram para escrever a Regra da sua comunidade, Francisco de Assis quase não usou palavras suas (o itálico assinala as frases roubadas): «Quando forem pelo mundo, nada levem para o caminho, nem saco, nem alforge, nem pão, nem dinheiro, nem bordão (Lc 9, 3; 10, 4; Mt 10, 10). E, ao entrar em qualquer casa, digam, antes de mais nada: – A paz seja nesta casa. E enquanto aí demoram, comam e bebam do que lhes oferecerem (Lc 10, 5). Não oponham resistência a quem lhes fizer mal, mas se alguém os ferir numa face, apresentem também a outra (Mt 5, 39); e a quem lhes tirar o manto, deixem-lhe também levar a túnica. Dêem a quem lhes pedir; e se alguém pegar do que é deles, não reclamem». Coseu toda a vida as suas palavras com as dos outros. Compôs um ofício litúrgico, para ser rezado de manhã, à tarde e à noite (o Ofício da Paixão do Senhor), que consistia simplesmente no recorte de diferentes passagens bíblicas (destacando-se o livro dos Salmos), colhidas aqui e ali, e na sua posterior colagem, segundo uma ordem nova que formava um novo salmo.

(A liturgia reúne comunidade não apenas no espaço, mas também no tempo. As laudes desta manhã são o resultado de muita gente que, ao longo dos séculos, foi escolhendo e juntando os salmos para hoje. Quantas vidas atrás, anónimas, sustentam a oração de uma manhã, as palavras de uma manhã. As palavras vêm dos outros. Isto que digo, digo-o porque uma língua me foi dada, com o seu som, o seu vocabulário, a sua sintaxe. Isto que digo vem de muito longe. E vou-me lembrando dos versos de André Tomé, poeta e arqueólogo: «somos tocados porque crescemos em comunidade / não de homens / mas de tempo». Também penso na expressão “dar a palavra”. “Agora, dou-te a palavra” – ouvimos dizer. Não nos estão apenas a oferecer a oportunidade de falar, mas a abrir um espaço para que nos possamos dizer. “Dou-te a palavra” – isto é, “ofereço-te o dom de te dizeres”. É o outro que me “dá a palavra” – é do espaço deixado pelo outro que eu vou nascer. Depois, vem essa expressão tremenda: “sou todo ouvidos”. Quem “dá a palavra” é “todo ouvidos”. Quem assim abre um espaço para que o outro nasça, faz-se “ouvidos”. Quer isto dizer que eu nasço no ouvido do outro, justamente aí onde me é dada a palavra).

Francisco de Assis não era apenas cosedor de textos, mas também cosedor de têxteis (as duas palavras partilham a mesma etimologia, sem acaso). Alguma coisa do seu pai, mercador de tecidos, passou para as suas mãos. Sabia tecer. Era talvez por isso que Francisco se vestia de modo tão original. Tomás de Celano, um dos seus biógrafos, conta que «chegava a mandar coser, na mesma roupa, pano do mais caro ao lado doutro do mais ordinário». Tinha queda para os remendos. Depois de se despir totalmente dos panos caros, quando já andava roto com os seus companheiros pelos campos da Úmbria, dizia-lhes assim: «E todos se vistam com hábitos pobrezinhos e possam remendá-los de burel e outros pedaços com a bênção do Senhor». Deviam sair apenas com um hábito e, no caso deste se rasgar ou estragar, mendigar um pedacinho de burel para fazer um remendo. Muitas vezes o remendo vinha do hábito de um dos companheiros. Conta-se que Francisco «só muito raro, ou quase nunca, consentiu vestir uma túnica de pano novo. Preferia pedir uma a um companheiro que a tivesse usado por muitos dias. Às vezes recebia parte da túnica de um companheiro, e doutro, o resto». Impressiona imaginá-los: “O meu hábito descoseu-se – dás-me um pouco do teu?”. As descrições da Legenda Perusina desarmam na sua simplicidade, no modo como o coser de panos se torna um lugar em que vidas se entretecem, uma espécie de brincadeira de crianças, quando colam um cromo que lhes sobra no quadro vazio da caderneta do amigo, longe de um cálculo comercial, e perto de uma generosidade imediata. Espanta também a relação de Francisco com os desconhecidos. «Certa altura, solicitada por um pobre e não tendo absolutamente nada a que lançar mão, descoseu a barra do hábito e entregou-a ao pobre. Outras vezes, e em idêntica situação, chegou a dar os panos menores». O gesto de oferecer a túnica ao primeiro que a pede repete-se muitas vezes ao longo da vida de Francisco, e surpreende pela rapidez com que o poverello se desfaz do único tecido que leva sobre o corpo, como se nesse gesto oferecesse o próprio corpo, também ele manta de retalhos, tecido das tramas dos que foi tocando e dos que o tocaram (nas feridas abertas, nas feridas saradas), tal como o corpo eucarístico que se dá, oferece, e multiplica. Francisco não tem medo de ficar nu diante do outro. No sentido oposto, não teme também ser vestido por remendos do outro. Francisco de Assis cose as pontas. Recondu-las ao centro. Para ele, tudo existe numa relação de mútua dependência. E ao contrário do que tantas vezes se procura, Francisco de Assis escolheu radicalizar até ao fim esta dependência. Na sua oração, dependia das palavras de outros para suportar o peso das horas. No seu vadiar, dependia dos remendos dos outros para suportar o frio.

Francisco de Assis cose as pontas. Recondu-las ao centro. Para ele, tudo existe numa relação de mútua dependência. E ao contrário do que tantas vezes se procura, Francisco de Assis escolheu radicalizar até ao fim esta dependência.

(No dia 9 de Outubro de 2021, a crónica semanal assinada por Gonçalo M. Tavares na revista do Expresso lembrava a seguinte notícia: «Na Tailândia, táxis parados servem para cultivar alimentos». Devido ao agravamento da pandemia, muitos taxistas tailandeses ficaram desempregados, e, subitamente, começaram a proliferar “cemitérios de táxis”, que foram transformados pelos taxistas, preocupados com a sua subsistência, em terrenos de cultivo. Nos tetos dos carros, plantavam-se «pimenta, pepino e curgete». A observação com que Gonçalo M. Tavares encerra a crónica não podia ser mais pertinente. «A pobreza sempre se defendeu assim: ligando elementos do mundo que o bem-estar por norma separa»).

Como não viviam só do pescoço para cima, deixavam muitas decisões ao acaso. Para decidir por onde ia cada um, Francisco pedia-lhes que girassem até ficarem tontos, como fazem as crianças. A tontura fazia-os cair. Consoante a direção do corpo caído, assim a direção que deviam tomar (esta prática é descrita nos Fioretti de São Francisco e dos seus Frades, e pode ver-se no filme de Rossellini, realizado em 1950, Francesco Giullare di Dio). Pensavam mais gestos do que ideias. «Se sucedia um deles dizer a outro qualquer palavra capaz de o magoar, os remorsos da sua consciência impediam-no de repousar antes de confessar a sua falta, prostrando-se por terra humildemente e pedindo ao ofendido que lhe pusesse o pé sobre a boca» (mais uma vez, vem dito assim na Legenda dos Três Companheiros). Palavra má na boa – pé sobre a boca. Quando a palavra não vence o pé, não merece ser dita. Palavra boa é palavra andarilha. Como não viviam só do pescoço para cima, viviam muito de dizer tolices.

(Talvez o maior poema sobre o nascimento da palavra seja este de Tonino Guerra: «Esta manhã meu irmão procurava / qualquer coisa nas gavetas: remexeu  / no armário, nos bolsos dos casacos, / dos capotes e de cabeça e mãos / na cómoda tirou tudo para fora. / Virou do avesso até a cozinha. / Passava de um quarto para outro / sem me ligar.  / Quando começou a revistar a minha cama / perguntei-lhe: que procuras? / Não sei. Primeiro procurava um prego, / a seguir um botão, depois queria fazer café / e agora preciso que me digas alguma coisa, / nem que seja uma tolice». Tomo nota: a palavra nasce como uma tolice urgente, necessária à manhã de alguém).

Também viviam muito de cantar. Pedia-lhes Francisco que onde quer que fossem «primeiro, falaria ao povo o mais competente para pregação; depois cantariam todos os Louvores do Senhor, como jograis de Deus. Acabado o cântico, o pregador diria ao povo: “Nós somos os jograis de Deus, e a única recompensa que nós queremos é que leveis uma vida verdadeiramente penitente”. Que são, na verdade, os servos de Deus senão jograis que procuram comover o coração dos homens, até os levar às alegrias do espírito?» (Legenda Perusina). Uma outra palavra fazia nascer Francisco de Assis. Pensava na sua horda de vadios e chamava-lhes «jograis de Deus». O jogral era figura impertinente naquela época. Profano até ao osso, punha o mundo do avesso por arte de bobo. Ocupava os últimos lugares na escala social. «Jogral de Deus» era expressão que aos ouvidos daquele tempo soaria absolutamente inconcebível. Um paradoxo, como uma pedra dura de roer, para agitar as águas. O bobo aliava-se ao salmista. E metia tudo de pantanas, só por louvar o Senhor com a língua da rua. Era um louvor político – um louvor de intervenção. Francisco de Assis tomara para si e para os seus companheiros este nome. Adotara uma língua (a francesa – língua dos romances de cavalaria e das gestas da sua infância – e, mais tarde, o tosco-umbro – dialeto local da região de Assis). Todos entendiam. E adotara também, como os trovadores, uma Dama (a Dama Pobreza). Todos entendiam. A Legenda Perusina conta o que acontecia quando os jograis de Deus chegavam a algum lugar: «À tarde, quando os frades cantavam os louvores do Senhor, como era costume naquele tempo fazerem em muitos conventos, os homens e mulheres daquela terra, grandes e pequenos, saíam de casa e, mesmo da rua, salmodiavam com os frades, acompanhando-os no refrão: “Seja louvado o Senhor Deus”. Até as crianças que mal sabiam falar, ao verem os frades, louvavam o Senhor, como podiam». Transformavam o mundo num grande coro. Mostravam que todos – sãos, aleijados, roucos – tinham boca, voz, e a possibilidade do canto. Não separavam os afinados dos desafinados, nem se organizavam em baixos, tenores, altos ou sopranos. O seu louvor não limava a aresta, antes a tornava evidente e brilhante. Francisco de Assis pedia-lhes que cantassem «não atendendo tanto à melodia da voz, quanto à consonância do espírito, de modo que a voz sintonize com o espírito e o espírito sintonize com Deus». Faziam gente abandonar as casas, os afazeres, as discussões, as quezílias, os confrontos, as guerras, para cantar. Eram reconhecidos ativistas.

Francisco de Assis não vivia só do pescoço para cima. Pelo contrário. As mãos de Francisco trabalharam muito. Restauraram igrejas, teceram cestos, construíram vasos, coseram tecido, abençoaram estrangeiros. As mãos de Francisco de Assis queriam habitar entre as mãos duras de toda a gente. Fazia parte da Regra da sua comunidade trabalhar e ganhar com o suor o sustento diário. Tudo podiam receber em troca, exceto dinheiro. Francisco proibia os seus companheiros de trazer livros consigo. Se tivessem de saber o que quer que fosse, que o trouxessem na memória. Pede, aliás, que as suas Cartas, as Admonições, e a Regra estejam sempre à mão – o mesmo é dizer, que se saibam de cor. Só assim, quando vadia pelo corpo, é que a palavra é realmente viva. Um dia, quando um noviço lhe pede um breviário, Francisco alarga-se na admoestação, «com gesto arrebatado, pega numa pouca de cinza, leva-a à cabeça, esfregando-a com a mão, como que a lavá-la e falando para consigo: “É este o meu breviário! É este o meu breviário”. E repetia gesto e palavra, muitas vezes» (assim nos conta a Legenda Perusina). Palavra sem gesto não é palavra. Por estas e por outras, Francisco foi afastado da sua ordem. Não aguentavam ter por perto uma palavra assim. Preferiam a higiene da palavra académica ao contágio da palavra encarnada.

(Pensei muitas vezes que o mistério da Encarnação se dizia apenas na primeira parte do versículo catorze do Prólogo do Evangelho de João: «E o verbo se fez carne». Agora, detenho-me mais na metade a seguir: «e habitou entre nós». Fazer-se carne, corpo, é mistério grande. Mas mistério maior é habitar entre nós. Tornar-se dom que circula. Palavra dada para que outro nasça).

O breviário de Francisco era o seu corpo. O mesmo corpo que trabalhava e habitava entre tantos outros corpos.

Francisco passou esses tempos entre bichos e amigos poucos. Encontrou abrigo junto de Clara e de Leão. Aí, conta-nos a Perusina, «passou o bem-aventurado Francisco mais de cinquenta dias, sem poder suportar a luz do sol durante o dia, nem a do lume durante a noite. Permanecia constantemente na obscuridade, no interior da sua cela. Às vezes ia dormir um pouco, mas nessa cela, e na cela de esteiras que lhe fizeram (numa parte da casa), eram tantos os ratos, correndo dum lado para o outro, à sua volta e por cima dele, que não conseguia descansar». Certo dia, quando a noite foi embora, e o Sol se foi chegando, Francisco sentia a pele doer. O Sol queimava, feria, senhor bruto. Entre toda aquela violência, subitamente, perfeita alegria. E dirigindo-se ao Sol, a voz de Francisco, meio rouca, meio segura, disse uma palavra. Foi desterrado por afirmar que palavra sem gesto não é palavra. O breviário de Francisco era o seu corpo. O mesmo corpo que trabalhava e habitava entre tantos outros corpos. Por isso, quando o Sol se veio chegando, a palavra brotou-lhe como lhe brotavam das mãos os vasos e os cestos. Brotou-lhe como brota o objeto de um trabalho continuado, enraizado por largos anos nos gestos. Francisco deu palavra como as árvores dão fruto. E por isto, quando falava, todos entendiam. Porque Francisco pregava com a palavra nascida das suas mãos, nascidas ao lado das mãos dos outros. Diz Tomás de Celano que «toda a sua pessoa era uma língua que pregava». Ele tinha-se agora tornado a palavra da qual tinha nascido. Nasceu com ela. E os outros ouviram bem, quando Francisco regressou de longos caminhos, doente, cego, a cantar como num milagre, que ele já a trazia de cor nos lábios. Ouviram chegar o Sol. Depois a Lua. Depois as Estrelas. Depois o Vento. Depois a Água. Depois o Fogo. Depois a Terra. Depois o perdão. Depois a morte. Ouviram os ratos. Depois o falcão. Depois as abelhas. Depois o faisão. Depois a cigarra. Ouviram Bernardo. Depois Silvestre. Depois Sabatino. Depois Morico. Depois João da Capela. Depois Clara. Depois Leão. Depois mais. Ouviram um mercador de tecidos. Depois um cavaleiro. Depois um tecedor de cestas. Depois um escultor de vasos. Depois um jogral. E eram todos ouvidos, e davam-lhe a palavra, e a palavra dele regressava e plantava-se dentro deles, e eles eram a palavra, e vendo bem, sem escamas nos olhos, olhavam-se, topavam-se, reconheciam-se, cresciam alto como as árvores porque água vinha de longe e de uns dos outros, e sem fazerem mais do que o esforço muscular necessário à vibração das cordas vocais, diziam, meio roucos, meio seguros, “irmão”.

 

* Este texto foi originalmente publicado no número de dezembro de 2023 da Brotéria (Vol. 197-6)

Fotografia: João Ferrand

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


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