No século II dC um documento cristão, conhecido como Carta a Diogneto, retratou os cristãos como sujeitos de uma dupla nacionalidade: por um lado, são cidadãos regulares nos lugares onde vivem, por outro lado, são estrangeiros porque a sua cidadania é a morada eterna pela qual aspiram. Pertencem a uma cultura mas a sua identidade é mais ampla. Esta pintura da identidade cristã continua a servir de modelo de compreensão do que significa ser discípulo de Jesus Cristo num aqui e agora concretos. A situação eclesial das comunidades cristãs na República Popular da China não é exceção.
Por um lado, os católicos do Reino do Meio estão chamados a viver dentro de uma realidade diferente de todas as outras, em modos de vida, em expressão linguística e manifestação cultural, etc. Por outro lado, a fé que professam é partilhada por muitos outros no mundo inteiro, unidos pela convicção de que Jesus de Nazaré ressuscitou dos mortos e que, por meio dele, podem viver em união com a família divina bem como a toda a família eclesial. Esta “dupla nacionalidade” configura a força e o desafio do ato de professar a fé no contexto cultural chinês, servindo de lente para compreender acontecimentos como o conflito dos ritos chineses, a rebelião boxer e a revolução cultural.
Por um lado, os católicos do Reino do Meio estão chamados a viver dentro de uma realidade diferente de todas as outras, em modos de vida, em expressão linguística e manifestação cultural, etc. Por outro lado, a fé que professam é partilhada por muitos outros no mundo inteiro, unidos pela convicção de que Jesus de Nazaré ressuscitou dos mortos e que, por meio dele, podem viver em união com a família divina bem como a toda a família eclesial. Esta “dupla nacionalidade” configura a força e o desafio do ato de professar a fé no contexto cultural chinês.
Cristianismo como ameaça estrangeira
Habitualmente, quando ouvimos falar sobre a presença do Catolicismo na China, a tendência geral é a de fixar o início da sua história na chegada dos missionários Jesuítas no século XVI. Contudo, este ponto de partida corresponde simplesmente à fase moderna da missão. Nos registos históricos da dinastia Tang, feitos em pedras negras de aproximadamente três metros, hoje expostas na antiga capital de Xi’an, regista-se a passagem de cristãos a partir de 640 dC. Referem-se ao Cristianismo como a religião luminosa do império romano, ali chegada na pessoa do bispo Adam. Depois, apresenta uma pequena súmula da fé cristã onde se podem encontrar referências aos mistérios da Trindade, da Encarnação, da Cruz e ao sacramento do batismo. Em qualquer tempo e espaço, estas referências podiam servir-nos de conceitos básicos da fé cristã.
No entanto, que chamem ao Cristianismo a religião do Império Romano aponta uma cicatriz que até hoje se mantém: o Cristianismo é uma religião estrangeira. Não é mentira nenhuma, e muito menos um inconveniente, se tivermos em conta que também o Budismo é uma importação da Índia. Porém, a visão do Cristianismo como ameaça estrangeira remonta aos séculos XVIII-XIX quando, para muitos chineses cosmopolitas, ser cristão na China significava adotar um estilo de vida ocidental, marcado por uma forma de vestir e de pensar, pelo poder militar e força organizativa. Foi neste sentido que a revolução comunista encarou o problema da religião, como lhe chamavam. Deste modo, o braço direito do chairman Mao Tsé-Tung, o primeiro-ministro Zhou Enlai, liderou o processo de desvinculação das religiões dos países estrangeiros, através da criação das Associações Patrióticas para as cinco religiões reconhecidas (Budismo, Catolicismo, Daoismo, Islão, Protestantismo) e da implementação de três autonomias (governo, recursos humanos e financeiros). Em oposição, na encíclica Ad Apostolurum principis, o Papa Pio XII rejeitou determinantemente esta desvinculação entre a Igreja Chinesa e a Santa Sé afirmando que, “sob o falso pretexto de patriotismo, a associação quer gradualmente levar os católicos a aderir e apoiar os princípios do materialismo ateu, negador de Deus e de todos os princípios sobrenaturais” (cf. Ad Apostolorum principis, nº 10).
A visão do Cristianismo como ameaça estrangeira remonta aos séculos XVIII-XIX quando, para muitos chineses cosmopolitas, ser cristão na China significava adotar um estilo de vida ocidental, marcado por uma forma de vestir e de pensar, pelo poder militar e força organizativa. Foi neste sentido que a revolução comunista encarou o problema da religião, como lhe chamavam.
O caso das igrejas oficiais e clandestinas
Regressando à Carta a Diogneto, uma vez mais o que aqui está em causa é o conflito entre ser chinês, sob os parâmetros estabelecidos pela autoridade local, e ser cristão. A partir desta tensão desenvolveu-se a progressiva divisão entre as chamadas Igrejas oficiais e clandestinas. Em termos legais, isto significa que todas as Igrejas devem pedir à Associação Patriótica da sua religião o reconhecimento da sua existência. Em certos casos o reconhecimento não é concedido e a Igreja é considerada clandestina. Há ainda igrejas que não chegam a pedir a aprovação da Associação Patriótica dado que não lhe reconhecem autoridade para exercer este tipo de juízo. Neste sentido, convém reconhecer que nem todas as igrejas clandestinas têm a mesma atitude diante da Associação Patriótica, dado que algumas lhe concedem alguma legitimidade – maioritariamente por questões estritamente legais – e outras não lhe concedem qualquer tipo de legitimidade. Para aumentar a complexidade do panorama, além da divisão entre as Igrejas oficiais e clandestinas, há também um território cinzento no qual se encontram dioceses que, pela sua boa relação com o governo comunista local, não são oficiais mas também não são consideradas clandestinas. É dentro deste panorama complexo que se exercem diversas modalidades de nomeação dos bispos locais.
Autonomia e igreja local
O que terá conduzido à criação deste mosaico aparentemente tão disforme? Em 1998, Richard Madsen escreveu um pequeno livro chamado China’s Catholics no qual dizia, a meu ver muito acertadamente, que um dos grandes problemas da Igreja católica chinesa foi ter estado fechada ao resto do mundo, concretamente ao Concílio Vaticano II, durante o tempo da terrível Revolução Cultural. Esta ferida histórica gerou nas comunidades ditas clandestinas uma forte predisposição a defender formas de vida cristã anteriores ao Concílio. Se a forma eclesial anterior ao Concílio via a Igreja como um todo unificado sob um princípio de autoridade doutrinal, sacramental e governativo exercido pelo Santo Padre, o Concílio redescobre o valor de uma Igreja que vive da comunhão entre igrejas locais.
Em 1998, Richard Madsen escreveu um pequeno livro chamado China’s Catholics no qual dizia, a meu ver muito acertadamente, que um dos grandes problemas da Igreja católica chinesa foi ter estado fechada ao resto do mundo, concretamente ao Concílio Vaticano II, durante o tempo da terrível Revolução Cultural.
Trata-se, no fundo, de um aprofundamento do significado de unidade da Igreja universal, no sentido de uma comunhão que pressupõe uma autonomia saudável entre as igrejas locais e não a sobreposição de uma sobre outra. Nas palavras do Concílio: “cada um dos bispos é princípio e fundamento visível da unidade nas suas respetivas igrejas, formadas à imagem da Igreja universal, das quais e pelas quais existe a Igreja católica, una e única” (Lumen Gentium nº 23). Se a forma eclesial anterior ao Concílio favorecia uma identidade cristã de certo modo independente da cultura local (um certo uniformismo), o Concílio propôs um regresso à tensão desenhada na Carta a Diogneto: ser membro do corpo de Cristo numa cultura e tempo concretos.
Quando confrontados com as três autonomias propostas pelo Governo Chinês (governo, recursos humanos e financeiros), é natural que os cristãos que sofreram perseguição no tempo da Revolução Cultural reajam. Mais ainda, é compreensível que muitos cristãos entendam que sob o tema da autonomia o governo chinês tenha uma agenda particular. No entanto, creio que há uma margem para colocar a possibilidade de que a imposição das autonomias por parte do governo, possa ser entendida como um sinal dos tempos que favoreça na Igreja chinesa a integração daquela autonomia que lhe foi proposta pelo Concílio. Contudo, há visões radicalmente opostas a esta interpretação.
Protesto do cardeal Zen ou eclesiologia do diálogo
O cardeal Zen, bispo emérito de Hong Kong, tem vindo a afirmar que o acordo entre a Santa Sé e Pequim, de nomear bispos depois de uma eleição de candidatos feita pelo clero chinês, não tem precedentes na história da Igreja e é uma “traição a Jesus”. Porém, como explicou o jesuíta Michael Kelly[1], esta afirmação não tem base histórica por várias razões. Primeiramente, porque nos últimos dois séculos foi retomada a prática da Igreja Antiga de antepor a todas as nomeações episcopais um processo de seleção de candidatos, realizado pela Igreja local. Em segundo lugar, porque no início do século XIX apenas cerca de 5% dos bispos do mundo inteiro eram diretamente nomeados por Roma. Portanto, podemos afirmar que esta modalidade tem precedentes históricos, mas será uma “traição a Jesus”?
O cardeal Zen, bispo emérito de Hong Kong, tem vindo a afirmar que o acordo entre a Santa Sé e Pequim, de nomear bispos depois de uma eleição de candidatos feita pelo clero chinês, não tem precedentes na história da Igreja e é uma “traição a Jesus”.
Esta expressão, citada pelo The Guardian[2], expressa a preocupação do cardeal emérito com o facto de que, na sua opinião, os bispos da Associação Patriótica não anunciam o Evangelho mas a obediência ao Partido Comunista. Ora, entre os anos 2012-2014 vivi na cidade de Pequim. Participei várias vezes na Eucaristia na Catedral de Pequim, falei com sacerdotes da Associação Patriótica, tornei-me amigo de vários fiéis e em nenhuma destas situações pude verificar o que nos é dito pelo cardeal Zen.
Numa visita que fiz ao seminário católico de Shijiazhuang, o maior da Associação Patriótica, soube por testemunho pessoal que todos os seminaristas eram formados no sentido de compreenderem que a autonomia da igreja local não deve de modo nenhum lesionar a união com a Igreja de Roma. Mais ainda, na Catedral da Imaculada Conceição (Nan-Tang) na cidade de Pequim todos os Domingos o boletim paroquial apresentava uma frase do Papa, juntamente com a sua fotografia, para que os cristãos se sentissem unidos a ele. Quando perguntei desde que ano se tinha este hábito, responderam-me que começaram a fazê-lo desde que, no ano de 2007, o Papa Bento XVI escreveu uma carta a todos os cristãos chineses. Admito que o cardeal Zen tenha razões para justificar o que afirma, mas estou convencido de que as suas razões, podendo legitimar a prudência, não motivam ao diálogo; e é precisamente o diálogo a atitude que a Igreja deve favorecer se não quiser permanecer mais meio século num impasse institucional. Termino recorrendo às palavras do Beato Paulo VI: “A Igreja deve entrar em diálogo com o mundo em que vive. A Igreja faz-se palavra, faz-se mensagem, faz-se colóquio” (Ecclesiam Suam, nº 38)
[1] http://india.ucanews.com/news/cardinal-zen-is-just-wrong/36655/daily
[2] https://www.theguardian.com/world/2016/nov/28/pope-china-vatican-deal-would-betray-christ-says-former-hong-kong-bishop
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.