Caminhar juntos: cosmética ou revolução?

A “revolução” de uma Igreja sinodal começa agora em cada diocese, paróquia, movimento, família, tendo como horizonte “aprender uns dos outros e criar um imaginário positivo que ilumine as mentes, aqueça os corações, restitua força às mãos.

A “revolução” de uma Igreja sinodal começa agora em cada diocese, paróquia, movimento, família, tendo como horizonte “aprender uns dos outros e criar um imaginário positivo que ilumine as mentes, aqueça os corações, restitua força às mãos.

No passado dia 7 foram divulgados no Vaticano dois documentos que lançam o próximo Sínodo dos Bispos que terá como título: “Para uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão”. Trata-se do Documento preparatório que apresenta as linhas gerais para o tratamento do tema, e de um Guia prático (Vademecum) para a realização da primeira etapa, de consulta a todo o povo de Deus.

Desde o início do seu pontificado, o Papa Francisco tem dado especial atenção a este instrumento, nascido no final do Concílio Vaticano II para prolongar a experiência de comunhão que os bispos de todo o mundo tinham feito ao reunirem-se para refletir acerca da Igreja e do seu lugar e papel no mundo. As assembleias sinodais convocadas pelo atual Pontífice, sobre a família (em 2014 e 2015), a juventude (2018) e a Igreja na Amazónia (2019) suscitaram grandes debates, envolvendo Pastores, responsáveis eclesiais aos mais diversos níveis, fiéis e até não crentes, não só por causa das questões tratadas, mas sobretudo pelo clima de abertura, escuta e participação que o próprio Papa promoveu, dentro e fora da Aula sinodal. Já em 2015, ao comemorar os 50 anos da instituição do Sínodo dos bispos, o Papa Francisco tinha deixado clara a sua convicção acerca da centralidade do próprio conceito de sínodo, que etimologicamente significa “caminhar juntos”, para a identidade e a missão da Igreja, resumida numa afirmação de S. João Crisóstomo: “Igreja e Sínodo são sinónimos”.

Em linha com esta preocupação, o Papa convocou agora um Sínodo cujo tema é precisamente a sinodalidade, entendida como modo de ser, de viver e de operar do Povo de Deus. A Igreja manifesta e realiza concretamente o seu “ser comunhão” no caminhar juntos, no reunir-se em assembleia e na participação ativa de todos os seus membros na sua missão evangelizadora. Não se trata, então, apenas da celebração de encontros eclesiais e assembleias de Bispos, ou de uma questão de simples administração interna da Igreja, mas de algo mais profundo e abrangente.

A Igreja manifesta e realiza concretamente o seu “ser comunhão” no caminhar juntos, no reunir-se em assembleia e na participação ativa de todos os seus membros na sua missão evangelizadora.

O Documento preparatório (n. 27) identifica três níveis em que a sinodalidade se articula enquanto dimensão constitutiva da Igreja: o plano do estilo em que a Igreja normalmente vive e atua; o plano das estruturas e dos processos eclesiais em que a natureza sinodal da Igreja se manifesta de maneira institucional a nível local, regional e universal; o plano dos processos e eventos sinodais em que a Igreja é convocada pela autoridade competente, em conformidade com procedimentos específicos, determinados pela disciplina eclesiástica.

Coerentemente, o processo que agora é lançado pretende ser também ele um “caminhar juntos” que convida à participação de toda a Igreja. Nas palavras do Documento preparatório (n. 25), “o seu objeto – a sinodalidade – é também o seu método”. Pela primeira vez, o Sínodo será oficialmente inaugurado em simultâneo nas dioceses do mundo inteiro, no dia 17 de outubro de 2021, uma semana depois da cerimónia de abertura em Roma. A escuta do Povo de Deus que se seguirá não constitui, portanto, apenas uma fase preparatória, mas é já realização do Sínodo, que levará a sínteses nacionais e depois continentais, até ao momento da assembleia dos bispos em outubro de 2023. Ao longo destes meses todos somos chamados a refletir, em clima de discernimento, acerca de uma dupla interrogação: como é que este “caminhar juntos” se realiza hoje na nossa realidade particular? E ainda: que passos o Espírito nos convida a dar para crescermos no nosso “caminhar juntos”?

O desafio que é agora lançado a toda a Igreja de participar, refletindo ao mesmo tempo sobre essa mesma participação, concretiza de um modo especial o desejo de reforma que marca o pontificado de Francisco. O caminho de conversão que o Papa deseja empreender com toda a Igreja não pode resumir-se à remodelação da cúpula do governo, no Vaticano, mas tem de envolver toda a Igreja, num exercício humilde de escuta do Espírito que fala também através do “santo povo fiel de Deus” e no encontro com o mundo. No caminho sinodal agora iniciado, os obstáculos residem, portanto, principalmente numa “cultura impregnada de clericalismo, que a Igreja herdou da sua história, e de formas de exercício da autoridade nas quais se insinuam os vários tipos de abuso” (Documento preparatório, n. 6), mas igualmente “nas atitudes, assumidas também por muitos cristãos, que fomentam divisões e contraposições na Igreja” (Documento preparatório, n. 8).

No caminho sinodal agora iniciado, os obstáculos residem, portanto, principalmente numa “cultura impregnada de clericalismo, que a Igreja herdou da sua história, e de formas de exercício da autoridade nas quais se insinuam os vários tipos de abuso” (Documento preparatório, n. 6), mas igualmente “nas atitudes, assumidas também por muitos cristãos, que fomentam divisões e contraposições na Igreja” (Documento preparatório, n. 8).

Como dizia um slogan clássico, “estamos todos convocados!”, não apenas como adeptos a torcer pela vitória da nossa equipa, mas como verdadeiros protagonistas numa Igreja que caminha junta para escutar “aquilo que o Espírito diz às Igrejas” (Apocalipse 2, 7). Depende, por isso, de cada um de nós envolver-se (rezando, refletindo, escutando, contribuindo) e assim garantir que não se trata apenas de “ocupar espaços”, mas sim “iniciar processos” (cf. Evangelii Gaudium, n. 223). Para tal, convém manter presente que “a consulta do Povo de Deus não exige a assunção, no seio da Igreja, dos dinamismos da democracia centrados no princípio de maioria, uma vez que na base da participação em qualquer processo sinodal está a paixão partilhada pela missão comum de evangelização, e não a representação de interesses em conflito” (Documento preparatório, n. 14).

Depende também de nós sermos exigentes com os nossos Pastores, para que esta participação seja verdadeiramente vivida e acolhida, não como “operação cosmética”, mas como caminho de transformação real. A “revolução” de uma Igreja sinodal, na fidelidade à sua mais genuína tradição, começa agora em cada diocese, em cada paróquia ou movimento, em cada família, tendo como horizonte, não o de produzir documentos, mas de “aprender uns dos outros e criar um imaginário positivo que ilumine as mentes, aqueça os corações, restitua força às mãos” (Documento preparatório, n. 32).

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.