Tem-se vindo a revalorizar, felizmente, o rico património de arte sacra em Portugal, tarefa de grande valor espiritual no contexto de inúmeras adversidades. Num entanto, são muitíssimo raras as exposições ou publicações sobre a relação moderna entre arte e liturgia. Esta razão é já suficiente para uma visita obrigatória à atual exposição no Museu Arpard Szenes-Vieira da Silva: “Brincar diante de Deus”.
Podemos considerar, simplificando, duas atitudes que no estado atual das coisas orientam a relação entre arte e liturgia. Uma atitude de autêntico apreço pela arte, mas de carácter estritamente patrimonial, onde o fascínio da beleza do passado asfixia o presente. Neste caso, na melhor das hipóteses, um objeto litúrgico moderno ou contemporâneo ou uma simples obra de arte qualitativamente capaz de dialogar com as obras do passado valorizaria o passado e acrescentaria a expressão incontornável da vitalidade dos valores espirituais e litúrgicos que as obras de arte são mediadoras. Na pior das hipóteses abre-se caminho ao fundamentalismo patrimonial ou religioso, apagando duas dimensões fundamentais da nossa relação com o tempo e a revelação, o momento histórico presente e a abertura ao futuro.
A boa notícia é que uma outra atitude, de convergência intrínseca entre culto e cultura, arte e liturgia, é possível; a má notícia é que a temos descurado, desconhecemos bons exemplos de arte litúrgica moderna e contemporânea
A outra atitude, mais corrente, é a de um grande desprezo pela arte, voluntário ou involuntário, de caráter predominantemente pragmático e comercial, para não dizer materialista – quanto custa, onde se vende? -, ou ainda de caráter religioso no sentido mais desencarnado do termo, a religião como oposição ao mundo, ao presente, à cultura, ao corpo e à arte. Na melhor das hipóteses há as correntes populares, artistas artesão, bons santeiros ou Rosas Ramalho; na pior das hipóteses, o problema fica resolvido em santarias industriais que difundem um realismo religioso sentimental, açucarado, muito falho de espírito, muito pouco religioso. A solução não é fácil, a espiritualidade e a profundidade da fé cristã não remetem para soluções de facilidade, a atualidade da revelação não é um espaço de conforto, mas de desinstalação ao qual resistimos. Uma obra de arte e, mais ainda, uma verdadeira dimensão religiosa da arte são um dom, surgem como necessidade interior e moção espiritual a discernir, procura-se e acolhe-se, não está em catálogos e montras.
A boa notícia é que uma outra atitude, de convergência intrínseca entre culto e cultura, arte e liturgia, é possível; a má notícia é que a temos descurado, desconhecemos bons exemplos de arte litúrgica moderna e contemporânea, resignámo-nos ao falso preconceito da separação entre arte e religião, quase não sabemos colocar as questões teóricas que esta relação levanta, e muito menos as práticas.
Tudo isto acentua a pertinência da exposição «Brincar diante de Deus. Arte e liturgia», onde se anunciam obras de três artistas, Henri Matisse, Vieira da Silva e Lourdes de Castro. Obras de arte, é verdade, retiradas dos seus contextos e histórias, mas ainda índices de processos, colaborações e resultados de grande qualidade. De Matisse, da capela das dominicanas do Rosário de Vence (quase) inteiramente desenhada por ele, podemos ver a casula rosa para os Domingos da alegria, Gaudete no Advento e Laetare na Quaresma (1951). Matisse dedicou quatro anos da sua vida em exclusividade ao desenho desta capela, vitrais, iconografia, elementos e alfaias litúrgicas, que reconheceu como momento maior da sua obra. De Maria Helena Vieira da Silva vemos o projeto e diapositivos dos vitrais da igreja de Saint-Jacques de Reims (1966) e alguns estudos para azulejos e uma tapeçaria destinados à sacristia da capela do Palácio Marquês de Abrantes, embaixada de França em Lisboa (1983). São traços de um percurso de adentramento no mistério que nos deixam no seu “Veni Sancte Spiritu” um mantra pintado e uma silenciosa afirmação de fé, que não se dá de imediato ao olhar mas se vai desvelando no tempo – (1981, óleo sobre tela 105×102 pertencente à coleção do museu). Da Lourdes de Castro temos a intuição para os paramentos da capela Árvore da Vida do seminário S. Pedro e S. Paulo de Braga, sabiamente desenvolvida e realizada por Helena Cardoso em tecelagem de tear português (2016) :
“Primavera – algodão / Verão – linho / Outono – seda / Inverno – lã. Só quatro tecidos diferentes sem nada mais, nenhum desenho, nenhum bordado, liso, branco.
Apenas a diferença da matéria do fio, a diferença no branco do fio, do cair do tecido. Um debruo ou bainha à volta, sem mais nada para receber toda a luz à volta.”
As cores litúrgicas aparecem, consoante os tempos litúrgicos, em pendentes de lâmina de ágata: o rosa, o verde, o azul, o vermelho, o branco e o dourado, como revelações cristalinas das moções de alegria, louvor, caridade, a conversão, inscritas no coração da terra, do homem e da vida da liturgia.
A curadoria do Paulo Vale gera ainda num primeiro plano, visual, diálogos improváveis: uma arborescente Nossa Senhora do Rosário de Vieira da Silva com as igualmente dinâmicas casulas da capela homónima de Matisse; a alvura do anjo em «Lute avec l’ange, I, II, III, IV», com os igualmente luminosos paramentos da Capela Árvore da Vida.
A visita à exposição prolonga-se necessariamente no catálogo, bonito, breve, acessível, contém textos imprescindíveis pois, como diz Paul Ricoeur, “os símbolos dão que pensar. Sublinho o conjunto de questões fundamentais levantadas por Paulo Vale: “Esta exposição ao retirar as peças da sua função litúrgica, levanta várias questões: que estatuto têm essas peças? São obras de arte, se têm uma utilidade e funcionalidade – ou faz ainda sentido esta questão? Não será a liturgia uma forma de performance – e a origem dela? É a arte liturgia, ou a liturgia uma forma de arte? E como fica o lugar-comum que afirmou repetidamente a separação entre arte e religião no último século?”
É o P. Joaquim Félix que nos reenvia, com Romano Guardini, ao início da história recente destas questões. Questões que surgem duma escuta em profundidade do Espírito da liturgia, na dualidade filosófica entre sentido e utilidade, e nas imagens bíblica da criação como jogo, gratuidade, movimento, evitando explicitamente os desvios enganosos do esteticismo.
“Prosseguindo no método mistagógico, depois da iluminação bíblica, Guardini passa a duas imagens da experiência humana que devem ser contempladas através da mesma subtração ao critério da utilidade prática: o jogo da criança e a criação do artista”. Convites para levar a sério a liberdade e a seriedade do jogo, as interpretações não pueris da desconcertante afirmação de Jesus acerca da relação da criança com Reino dos Céus, a reconciliação da arte e da realidade aos níveis existenciais e simbólicos mais profundos. Aspetos que nos reconduzem ao espírito e essência da liturgia, para que, como diz Guardini, as nossas vidas se tornem “obras de arte vivas diante de Deus”.
Foto de capa:
HENRI MATISSE – Casula rosa, 1951; Seda bordada 130 x 200 cm
Col. Chapelle Matisse, Dominicaines, Vence – Foto ©João Krull
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Museu Arpad Szenes -Vieira da Silva
Ingresso: 5€
Gratuito: Jovens até 12 anos | APOM / ICOM / ICOMOS / AICA | Imprensa
Domingos até às 14h00 para cidadãos residentes em Portugal
Desconto 50%: Estudantes | Reformados | Professores
Horário:
Terça a Domingo
10h00 às 18h00
Encerrado: Segundas-feiras e feriados
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