Chamam-lhe #metoo português, ocupa capas de jornais e tempo de noticiário, mas a questão dificilmente pode ser tratada com a superficialidade que tem grassado. Afinal, de que estamos a falar?
Quando tenho muitas dúvidas, gosto de começar por elencar os factos, porque isso ajuda a perceber incertezas. Portanto, selecionei alguns para podermos, juntos, pensar sobre um assunto que merece o nosso tempo e atenção, mas acima de tudo pede calma e justiça na análise, sob pena de não conseguirmos destrinçar a amálgama de temas que se fundiram entretanto.
Facto: em Portugal, 24% das mulheres sofreram violência física e/ou sexual pelo menos uma vez desde os 15 anos. Facto: em Portugal, 18% das mulheres que sofreram violência física e/ou sexual nos últimos 12 meses não contaram a ninguém. Facto: Em Portugal, 32% das mulheres já foi vítima de assédio sexual.
Estes são os dados mais recentes compilados pelo Instituto Europeu para a Igualdade de Género e revelam ainda que Portugal tem, em vários indicadores, uma prestação pior que a estimada ao nível da UE.
Portanto, mais um facto: temos um problema sério para resolver no País, e não é novo. Durante vários anos ignorámos, relativizámos e fomos arranjando desculpas para não lhe dar a devida atenção, mas a recente entrevista da atriz Sofia Arruda num programa transmitido pela SIC acabou por trazer o assunto do assédio (sexual, no caso) para o topo da agenda mediática. E bem.
Durante vários anos ignorámos, relativizámos e fomos arranjando desculpas para não lhe dar a devida atenção, mas a recente entrevista da atriz Sofia Arruda num programa transmitido pela SIC acabou por trazer o assunto do assédio (sexual, no caso) para o topo da agenda mediática. E bem.
Os testemunhos de outras mulheres não se fizeram esperar, e entre rostos mais ou menos conhecidos, foi revelada uma série de episódios em locais de trabalho ou sociais que fizeram capas de jornais e revistas e incendiaram as redes sociais. Acima de tudo, são relatos que revelam a injustiça tremenda de que as mulheres são recorrentemente alvo.
As inegáveis relações de assimetria que existem – potenciadas pelo género, cargo que se ocupa ou outra razão – faz escalar a existência daquilo a que podemos chamar de injustiça endémica, e que quando é instrumentalizada toma várias formas. Uma delas é a do assédio.
O Código do Trabalho – o único onde está prevista a proibição deste tipo de comportamento – define o assédio sexual (aquele sobre o qual proponho que reflitamos) como “todo o comportamento indesejado de caráter sexual, sob forma verbal, não verbal ou física, com o objetivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador”.
Numa sociedade ainda bastante machista, onde a mulher tem feito um caminho significativo para garantir direitos e oportunidades iguais num contexto onde não faz sentido ser de outra forma, a verdade é que estes casos são reais, são dramáticos e precisam de uma solução urgente, que deve ser pensada por especialistas e autoridades, e precisam de um trabalho a médio e longo prazos que passa, sobretudo pela educação de todos aqueles que ainda não perceberam que não é aceitável agredir, humilhar, violentar outra pessoa com base no seu género.
No caso concreto de assédio sexual, não haverá muitas dúvidas no caso de haver um comportamento inapropriado por parte de um superior hierárquico – a sua posição já é de poder, e, portanto, há-que não abusar dela, seja de que forma for. Não há qualquer justificação para comentários ou comportamentos que considerem a sexualização de um qualquer subordinado, sabendo que são as mulheres as principais vítimas deste tipo de questão. E sobre isto, talvez seja interessante ver o recente caso das ginastas alemãs, que começaram a competir com um maiô completo para tapar as pernas, tal como os colegas homens.(1) É um caso concreto em que é fácil perceber como se sexualizou o corpo feminino, o que tem consequência nos comportamentos a que assistimos.
No entanto, quando estamos a falar de relações em que a hierarquia não é óbvia ou é inexistente, torna-se mais complexo definir que tipo de abordagem se classifica como assédio. É que apesar da definição concreta, as interpretações variarão sempre consoante os envolvidos.
Parvoíce ou assédio?
No entanto, quando estamos a falar de relações em que a hierarquia não é óbvia ou é inexistente, torna-se mais complexo definir que tipo de abordagem se classifica como assédio. É que apesar da definição concreta, as interpretações variarão sempre consoante os envolvidos. E nesta altura talvez seja importante lembrar mais um facto: a sedução faz parte das interações sociais, sob diversas formas, em diferentes graus e com múltiplas motivações. Seja em relações amorosas, de amizade ou profissionais, a sedução faz parte da comunicação (verbal e não-verbal): negar isso é ignorar um aspeto básico de qualquer encontro. Contudo, importa sublinhar que esse processo é ambíguo e, por isso, delicado. Os primeiros contactos entre pessoas são habitualmente inesperados, espontâneos e não solicitados. E no contexto dessa interação é que se podem esclarecer as motivações e avaliar os modos. E, consoante a sua interpretação, ela pode gerar consentimento ou recusa. Em qualquer dos casos, a pessoa abordada deve ser livre de decidir como interpretar e reagir. Mas é bom notar que também isto faz parte da ambiguidade da sedução: nem sempre o mesmo gesto significa a mesma coisa para a mesma pessoa.
Portanto, uma coisa é certa: a interpretação das motivações não é clara nem segue uma regra universal. Obviamente, nem sempre as abordagens são as melhores. E será que todas as que são tontas são assédio? Tenho dúvidas. Creio que muitas são isso mesmo: tontas, despropositadas e que requerem uma resposta assertiva da outra parte.
Posso dar-vos um exemplo que me aconteceu, e que me tem feito pensar precisamente sobre isto. Há uns meses, numa rede social, recebi uma série de mensagens de uma pessoa que não conheço, e que começou por elogiar uma reportagem assinada por mim que tinha lido. Agradeci a atenção, como faço sempre, e não disse mais nada. Recebi mais uma série de mensagens com comentários sobre os entrevistados, e afins, às quais respondi quase sempre com uma palavra apenas. Não havia nada de errado na abordagem, mas também não havia nada que me fizesse querer continuar a conversar com aquela pessoa. Não respondi às últimas quatro ou cinco mensagens, e uns dias depois recebo uma outra com uma fotografia e um “convite para conhecer” a casa do remetente da mensagem.
Obviamente, nem sempre as abordagens são as melhores. E será que todas as que são tontas são assédio? Tenho dúvidas. Creio que muitas são isso mesmo: tontas, despropositadas e que requerem uma resposta assertiva da outra parte.
Foi uma abordagem absurda? Sim. Foi inapropriada? Sim. Afetou a minha dignidade, humilhou-me ou desestabilizou-me? Não. Achei ridículo? Sim. E na ocasião até contei o episódio à minha equipa, pedindo apenas que, no caso de serem contactados pela pessoa – somos todos jornalistas e os nossos contactos são relativamente públicos – não lhe permitissem que chegasse até mim. Pensei mais sobre o assunto até hoje? Não.
Para mim, com toda a individualidade que isso aporta, não foi assédio. Foi uma tentativa disparatada e ridícula de forçar uma relação inexistente. E pronto. Mas a verdade é que para algumas das minhas amigas este episódio seria assédio. E é aqui que as coisas se complicam: é que não se pode medir pela mesma bitola aquilo que é inerentemente diferente.
E isto vale para qualquer tipo de comunicação. Porque nós não recebemos da mesma forma a mesma mensagem: apreendemo-la com as nossas experiências, receios, certezas e dúvidas, o que nos faz sentir de forma diferente. Pensemos em comunicações básicas, quando discordamos da pessoa que está connosco e que ouviu a mesma frase. Quantas vezes acontece uma dizer “que forma tão antipática de falar”, e a outra responder “achaste? Por acaso não achei nada”. Isto tem a ver com a forma como nós recebemos aquela informação, que foi dada da mesma forma a pessoas diferentes, mas que não vai ser recebida igualmente.
Repare-se que não estamos a falar de situações concreta e absolutamente inaceitáveis: toques não solicitados, conversas íntimas fora do círculo de confiança, comentários sobre o corpo ou afins. Estou a referir-me a relatos que foram surgindo, entretanto – e que fui acompanhando nas redes sociais ou entre o meu círculo de conhecidos – que colocam no cesto do ‘assédio’ situações que podem não o ser.
A esmagadora maioria dos casos que vivi não se tratou de ‘assédio’ mas de uma forma despropositada de sedução. E, nesses casos, penso que isso se resolve pela desambiguação: “não lhe permito isso”. Se me sinto incomodada com um comentário de um homem, a primeira coisa a fazer é dizer-lho explicitamente.
É que também nestes casos – e nunca, nunca, nunca responsabilizando a vítima num caso de assédio, de violência doméstica ou de qualquer outro tipo de agressão! – é importante lembrar que as mulheres são, felizmente, dotadas de livre-arbítrio e de personalidade que lhes dá o direito e o dever de se insurgirem contra uma situação desajustada.
Porque a sedução faz parte das interações, talvez seja “ineficaz” exigir ou esperar que ela desapareça. Mas é certamente urgente educar para que, já que não podemos evitá-la, ao menos aprendamos a usá-la de forma positiva (…).
Porque a sedução faz parte das interações, talvez seja “ineficaz” exigir ou esperar que ela desapareça. Mas é certamente urgente educar para que, já que não podemos evitá-la, ao menos aprendamos a usá-la de forma positiva, como forma de desejo de respeitar e acolher o outro, e não como estratégia de predadores em busca de troféus.
Educar, educar, educar
Sem prejuízo da luta por uma moldura penal que puna os casos de assédio sexual – que, repito, são reais e que afetam demasiadas pessoas [sobretudo mulheres] nos seus contextos laborais, nomeadamente em setores em que os homens estão em clara vantagem numérica e hierárquica – , acredito que conseguiremos mudar o atual estado das coisas através de uma coisa, apenas: educação.
Precisamos de escolas, de casas, que ensinem aos mais pequenos que quando querem transmitir uma mensagem, precisam de ter em atenção o outro e a forma como ele a vai receber; precisamos de deixar de relativizar os comportamentos machistas das crianças e adolescentes – espreitar debaixo das saias das colegas não tem graça e não é aceitável seja com que idade for, tal como comentar as formas que começam a aparecer no corpo das colegas adolescentes não é tolerável.
Precisamos de homens e mulheres que percebam as injustiças endémicas para que sejam exemplo do seu combate, ao exigir um tratamento digno, igualitário e respeitoso em qualquer contexto, em qualquer tempo e em qualquer lugar. Precisamos de escolas e de empresas que promovam uma cultura de tolerância e de respeito, e onde fazer perguntas sobre a vida íntima ou comentários com qualquer cariz sexual seja proibido e alvo de sanções.
Precisamos, enfim, de uma sociedade onde as pessoas são ouvidas, onde os problemas são combatidos em conjunto, com respeito por todos os que querem contribuir para a sua resolução e chamando para a discussão aqueles que mais sabem sobre o que queremos perceber: queremos pediatras, psicólogos, professores, sociólogos, diretores de recursos humanos, pais, líderes envolvidos nesta luta que tem de ser de todos, para todos.
A luta, acima de tudo, é pela escuta do outro e pelo respeito pelas suas emoções. É pelo fim das relações de poder desajustadas que são, na grande maioria das vezes, as principais responsáveis por estes comportamentos abusivos.
Partindo daqui, talvez seja possível dissiparmos as nossas dúvidas em menos tempo do que aquele que tem levado a conseguir tantas outras vitórias no campo dos Direitos Humanos.
https://www.bbc.com/portuguese/geral-56882992
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.