Ninguém repara nele, as pessoas descem e sobem a rua apressada e indiferentemente, vão-se empurrando umas às outras. Mais um dia, mais um fim de tarde dominado pelo caos. Daqui a dois ou três dias ninguém se lembra desta confusão mais desnecessária do que útil. É assim todos os anos.
Mas como é que as pessoas não reparam no homem que desce e sobe a rua enrolado em luzes de várias cores, não sei. Elas não querem saber, devem achar que o tipo é doido. Onde é que já se viu caminhar iluminado da cabeça aos pés. Se calhar o homem não bate bem, se calhar gosta de Bukowski, se calhar é Bukowski. Tem o passo gordo e lento, é barbudo e grisalho, o rosto, bem marcado, só tem rugas de remorso. O poeta não deverá ser, mas talvez pense como ele e sonhe igualmente com um Natal em que as luzes das cidades e das ruas e das casas e das lojas estão apagadas e as das pessoas, acesas.
Como Bukowski há muitos e é preciso escutá-los, é muito importante ouvir os que fogem do espírito da época e compreendê-los, porque costumam estar magoados e não têm forma de parar a dor. Só é possível supor. Se não formos ter com o outro e se não virmos a vida pelos seus olhos, não podemos ter a certeza. Não o costumamos fazer, não temos remédio, facilitamos e vivemos para dentro, afugentamos o diálogo, escondemos o que sentimos e não damos nas vistas. Não acendemos as nossas luzes, mas acendemos as outras, porque é mais fácil fazer o que nos mandam e o que toda a gente faz. É muito mais difícil ir em direção ao outro e segui-lo, confiar nele.
Se acendemos as nossas luzes, veem-nos e isso não pode ser. Não estamos preparados, somos pouco corajosos, temos vergonha do que somos e rejeitamos as bênçãos e as dores que nos formam – em especial as dores. Não queremos ser vistos por ninguém. Preferimos distrair e ser distraídos.
Se acendemos as nossas luzes, veem-nos e isso não pode ser. Não estamos preparados, somos pouco corajosos, temos vergonha do que somos e rejeitamos as bênçãos e as dores que nos formam – em especial as dores. Não queremos ser vistos por ninguém. Preferimos distrair e ser distraídos.
Vamos às baixas atiçar as montras, onde recolhemos sacos, sacos e mais sacos e convidamos e somos convidados para convívios e jantares de todos os tipos. Esta tem sido a nossa vida e assim temos passado despercebidos. Escondemo-nos por detrás dos efeitos e das decorações das festas (ninguém nos vê e não vemos ninguém) e confiamos na passagem do tempo porque ela joga a nosso favor: distrai-nos. Daqui a nada já estamos em janeiro, impressionante. Impressiona também o facto de pensarmos mais no tempo que passa e menos em como é que o outro tem passado e em como é que nós próprios temos andado.
Ninguém sabe de nada, ninguém sabe de ninguém, ninguém vê ninguém. Se as pessoas se iluminassem umas às outras (em vez de se empurrarem ao longo de ruas que descem e sobem), conhecer-se-iam melhor e dariam conta das bênçãos e das dores que cada uma carrega. E seria tudo mais simples.
O Natal sabe ser cruel. Agora parece que as dores dominam. Dão-lhe força as ausências provocadas por algo ou por alguém: uma mãe sente falta da mãe, um pai sente falta do pai, os amigos desencontram-se, os amores quebram-se. Em dezembro, as despedidas costumam ter a última palavra. As pessoas pouco falam do que sentem falta e são terríveis a gerir as saudades: acabam por dar menos valor às coisas boas e só mudam de estratégia quando as perdem. É assim que são, não dá para mudar nem alterar a sua natureza – elas não vêm com talão de troca e é assim que vivem, sem se verem, sem se sentirem, sem se ouvirem.
O que podem fazer: ligar as luzes logo que o dia escurece, dando lugar a um mundo mais luminoso e vivo no qual as pessoas mostram às outras a matéria que as une: amor, fé, remorso, saudade e verdade.
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Entretanto o homem perde-se na multidão. Quando chega à porta da uma das igrejas emblemáticas da cidade, afunda-se na escadaria exterior e é nesse momento que o brilho das suas luzes se desvanece. Em breve o homem só será visto se for iluminado pelos corpos das pessoas que passam e que mostram, sem medo e sem receio, as luzes que carregam.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.