“O VENTO DE MUDANÇA ESTÁ A SOPRAR”
Dom., 26 nov. 23
Abro a página em branco, no último domingo do calendário litúrgico. O ano do louvor cristão culmina numa festa de nome raro, entre o bíblico e o anacrónico, entre a formulação de um desejo e uma alusão à margem sul: Cristo Rei. Quero escrever um diário desta última semana que, hoje, começa, porque é a semana que termina um ano de louvor na comunidade que me pôs o Pão à frente, para que o partíssemos, e o Verbo em redor, para que o conjugássemos. O Vinho nunca faltou, nem o sangue nem a seiva. Quero um diário que registe algumas coisas que se vêem daqui, deste promontório dos sete dias finais.
Cristo Rei é lugar alto, mais alta ainda a metáfora que o monumento. Metáfora de ver ao longe. O apóstolo Paulo deu o mote, no dizer bonito da primeira carta aos Coríntios, quando se entusiasma para anunciar a ressurreição de Jesus: «é preciso que ele reine!» (1Cor 15, 25). E, entre as várias utopias deste reinado de Cristo com que nos fomos convocando e equivocando na história, chegámos a uma dicção celebrativa e solene deste desejo. Foi o Papa Pio XI quem instaurou a festa litúrgica, com a encíclica “Quas Primas”. Era o ano 1925 – estamos quase no centenário – e os ventos de mudança que se sentiam eram fortes. A primeira guerra mundial terminara havia pouco, deixando muito lugar ao desabrigo. O descampado atrai as ventanias.
Li, há dois dias, uma publicação na rede X a propósito: “O vento da mudança está a soprar”. Era isto, ainda no formato minimalista dos anteriores tweets. Foi publicada por Viktor Órban na sua conta oficial, endereçada a Geert Wilders, alegrando-se pela sua vitória nas eleições dos Países Baixos. Que “vento de mudança” sopra se são estes os arautos de sentinela?
Quando, em 1925, surgiu esta solenidade litúrgica para celebrar o paulino «é preciso que Cristo reine!», vínhamos de um Tratado de Paz de Versailles que, em 1919, fora boicotado à partida. No pós-guerra, em contexto de reconfiguração de nações, num ponto de-cisão claro da cultura que vinha do influxo do iluminismo até ao modernismo, com a revolução industrial a mudar quase todas as regras do jogo, vivíamos alguma coisa de muito parecido com o que agora vivemos com outros nomes e dinâmicas. É a tal “mudança de época” que, entre tanto que acontece, esculpe sempre um limiar para habitarmos como funâmbulos. A liminaridade é o nome deste tempo em que o caminho a percorrer tem o desenho de um limiar, de um umbral. Já não estamos na realidade de onde viemos, ainda não chegámos a uma nova estrutura de ser, o lugar é o da “terra do meio”, um viveiro de perguntas. Para uns, a única segurança está em voltar atrás, para outros a única hipótese é acreditar no guru mais eficaz e estar disponível para o primeiro messias que apareça.
Naqueles anos 20 do século passado, no contexto de toda esta instabilidade e incerteza, na voragem de mudanças tão inéditas, começaram a despontar figuras messiânicas destas, gente com palavras como panfletos e gestos desenhados a régua e esquadro. Tudo encaixava e era directo ao ponto. E as promessas eram de segurança e ordem, protecção e identidade de grupo. Poucas coisas são mais sedutoras do que estas, em tempos liminares. Em 1920, Hitler aparece na liderança do Partido nazista na Alemanha e publica, em 1924, o Mein Kampf. Em 1922, Mussolini tornava-se primeiro-ministro pelo Partido Nacional Fascista, tendo abdicado, em 1925, dos mínimos trejeitos democratas ou diplomáticos que ainda tentara, para estabelecer uma ditadura autoritária e violenta. Não por acaso um se fazia chamar “Fuhrer” e o outro “Duce”. Tempos destes – em que as pragas se sucedem e um deserto imenso medeia o desejo da liberdade e da paz – suscitam figuras assim, mas raramente são da têmpera de Moisés.
Em 1922, há um senhor chamado Lenin que chega a chefe do governo da União Soviética e, passado pouco, já temos um Estado socialista unipartidário. Em 1924, o vento muda e traz Stalin com uma crescente violência autoritária. Marxismo-leninismo veio a ser a cartilha ideológica, mas estalinismo tornou-se nome de manual de procedimentos. No México, estava a acontecer a guerra cristera – ou cristíada – que marcou tanto a região e ecoou abundantemente na Europa, sendo aqueles anos de 1923–27 os mais violentos. Em 1930, Getúlio Vargas liderou a revolução e fez-se presidente do Brasil, sobre o qual instituiu uma ditadura, e ainda hoje se discute se era um fascista ou apenas um populista. São sempre interessantes estes advérbios de exclusão. Em 1932, Salazar é presidente do Conselho de Ministros em Portugal; em 1933, Engelbert Dolfuss toma o controlo do poder na Áustria, fechando o parlamento e assumindo o poder absoluto num movimento ditatorial chamado austrofascismo; em 1936, Franco, aqui ao lado, desponta do golpe militar como “el generalísimo”.
Em 1925, quando foi instituída esta solenidade de Cristo Rei, não havia ainda X nem Twitter. Mas é provável que alguém tivesse escrito, naquele 1923 de há cem anos, qualquer coisa assim: “O vento da mudança está a soprar”. Na sexta-feira passada, num encontro dos partidos da família da extrema-direita europeia que aconteceu no parlamento português, um jornalista perguntou a Marine le Pen sobre a dificuldade de estes partidos emergentes na europa chegarem realmente aos lugares de poder. E ela gracejou, confortável: “Tenha calma. O tempo chegará”. Os presentes riram, enquanto se recebiam ainda os primeiros ecos da eleição de Millei na Argentina, ali um pouco a sul do “país do sr. Trump” e do “país do sr. Bolsonaro”. Por aqui mais perto, além de Geert Wilders, temos Giorgia Meloni coligada com Matteo Salvini no governo de Itália, a Suécia e a Finlândia com coligações de governo que integram partidos com nomes tão autoexplicativos quanto “Os Verdadeiros Finlandeses”. Conhecemos a vozearia desta onda política em Espanha e o modo como tudo isto chega a Portugal.
Talvez um dos sintomas mais alarmantes de que algo está a acontecer seja a questão dos migrantes e refugiados. Primeiro, o próprio facto de estarmos num tempo de deslocações massivas, o que isso mesmo nos diz. Depois, o modo como as sociedades ocidentais estão a comportar-se diante desta situação em termos políticos, entre o constrangimento tácito e os discursos correctos, entre as opções desumanas e os acordos de boas intenções. O mediterrâneo é ainda a grande vala comum do mundo actual, pelo número de pessoas lá desaparecidas e pelo tempo que permitimos que esteja aberta.
No final dos anos 20 do século passado, o mesmo Pio XI iniciou a “Acção Católica”, um conjunto de movimentos eclesiais, com o fim de intervir socialmente, inspirados pela mundividência cristã. Sim, “é preciso que ele reine” e a acção católica surgiu como uma militância desta necessidade, uma convocatória a um movimento testemunhal. Eis que as comunidades que levam o nome do Cristo – e o belo nome da universalidade – tinham de ganhar a moção de gente e agentes do Reino. É uma consequência social da teologia da Incarnação e uma espiritualidade prática da teologia do Baptismo.
Mas há um mundo a acontecer entre sinais que já soubemos ler. Espero que não nos acomodemos na irrelevância católica à qual nos vamos habituando e reinventemos comunidades capazes de gerar movimento, iniciar vagas de fundo na sociedade, na cultura, na política. Sabemos o que foi a “acção católica” propulsionada nos anos 20 do século passado. Que movimentos de agir cristão estão a desencadear presenças proféticas nos anos 20 deste século?
Juntam-se vários olhares neste primeiro dia de diário, como os ventos num lugar de desabrigo enquanto fazemos uma travessia. Mas há um mundo a acontecer entre sinais que já soubemos ler. Espero que não nos acomodemos na irrelevância católica à qual nos vamos habituando e reinventemos comunidades capazes de gerar movimento, iniciar vagas de fundo na sociedade, na cultura, na política. Sabemos o que foi a “acção católica” propulsionada nos anos 20 do século passado. Que movimentos de agir cristão estão a desencadear presenças proféticas nos anos 20 deste século?
ENUNCIAR O EVANGELHO
2ª, 27 Nov. 23
Lembro-me de ter sido convidado, há uns quinze anos, para um colóquio cujo tema geral era “Anunciar o Evangelho de novo” e, escrevendo a comunicação, não sei como me enganei e saiu “enunciar o Evangelho”. Corrigi tão imediatamente quanto parei logo a seguir. Virei a agulha da reflexão que estava a fazer por causa dessa involuntária mudança de verbo.
Não conseguimos despir tão rapidamente os tiques da cristandade e, por isso, o modo como anunciamos o Evangelho ainda assume pressupostos que já raramente existem. Precisamos de novos enunciados para o testemunho da narrativa evangélica e para a mundividência cristã. Não é simplesmente uma reformulação de linguagem, não é suficiente uma actualização das metáforas e muito menos uma simplificação das aproximações. Precisamos realmente de uma nova tradução, de uma dicção da fé-esperança-caridade a balbuciar-se no idioma novo que cada etapa civilizacional sempre traz. O que há de inventivo nisto pertence ao labor da tradução, não se trata de fabricar uma coisa nova. Mas, traduzir de uma cultura para outra, não é uma regra de três simples, implica génio criativo e muito partilhado. Novos enunciados do dizer cristão nascem no decurso de uma travessia transcultural que só fazemos com muita liberdade interior, humildade e coragem. Porque nos exige pousar a certeza preguiçosa e a rigidez dogmática. Sabemos que o fogo vivo e caudaloso a que chamamos Tradição é tesouro guardado apenas no mistério da transmissão. Não se preserva quando se retém, mas apenas quando se traduz.
Precisamos de novos enunciados para o testemunho da narrativa evangélica e para a mundividência cristã. Não é simplesmente uma reformulação de linguagem, não é suficiente uma actualização das metáforas e muito menos uma simplificação das aproximações. Precisamos realmente de uma nova tradução, de uma dicção da fé-esperança-caridade a balbuciar-se no idioma novo que cada etapa civilizacional sempre traz. O que há de inventivo nisto pertence ao labor da tradução, não se trata de fabricar uma coisa nova. Mas, traduzir de uma cultura para outra, não é uma regra de três simples, implica génio criativo e muito partilhado.
A palavra Tradição ficou conosco desde os tempos em que o latim era língua franca (traditio: entrega). Hoje, para inglês ver, dizemos delivery. Este conceito de Entrega é fundamental na comunicação. Que o digam sobremaneira os comediantes, para quem o binómio texto-interpretação tem de confluir perfeitamente para alcançar esta arte da delivery. Se não funciona, não adianta mudar todo o cenário na próxima subida em palco, vestir um fato de urso polar, colorir as luzes e aumentar os efeitos sonoros. Às vezes, quando falamos em “nova evangelização”, parece-me que é apenas isto que vamos fazendo: floreamos tudo à volta do mesmo que antes fazíamos, hipercenografamos a ocasião em que repetimos os mesmos enunciados e com as mesmas fórmulas. Achar que a delivery melhora com o acessório é, normalmente, um equívoco. Para o dizer em latim: achar que a Tradição está no acessório é um equívoco.
Temos em Paulo uma inspiração audaz para a emergência de novos enunciados da vida teologal. Tornou-se modelar a sua ida ao areópago e a subtileza com que afivelou as palavras para entregar aos que lá estavam. Ficou contado no capítulo 17 do livro dos Actos dos Apóstolos. Contudo, não é por aí que lhe sigo o rasto. Percebo e acolho a metáfora dos “novos areópagos” como estímulo a principiar diálogos inéditos, mas por onde Paulo me seduz é pela via lenta e discreta de quem foi cosendo realidades numa tapeçaria de comunidades admirável. As cartas paulinas são um manancial de enunciados novos para o dizer pascal, tão fresco. Tão fresco o evento, tão fresca a linguagem. Lendo as cartas como peças literárias, torna-se fascinante o carácter experimental da linguagem e as acendalhas que estão espalhadas por todo o lado. Imagens, alegorias, comparações paradoxais, oximoros e enunciados de um atrevimento profético imparável. Procura, por exemplo, enunciar a ressurreição do Senhor, pegando nas linguagens da semente ou do corpo, e descortinar a esperança da nossa ressurreição nele com as imagens do abraço em pleno voo, da atracção que rasga os céus. Onde nascem os enunciados mais completos e duráveis para a fé-esperança-caridade? Nos hinos eucológicos. Onde nasce a dicção mais coesa e futurível? Na epistolografia comunitária.
O que ficou da ida ao areópago? O estímulo a irmos e a boa vontade de dialogarmos. Pouco mais, além daquela deliciosa citação do poeta que o apóstolo levava na manga. Mas é do roteiro quotidiano nas pequenas comunidades que nos chega a criação quase exuberante de dizeres novos do infinitamente Novo. Esta é a urgência das igrejas em Portugal e nos países aqui à volta. Por mais que identifiquemos o que nos falta com a etiqueta A e a etiqueta B e por aí adiante, sabemos que todas essas etiquetas se penduram em ramos que entroncam na mesma carência, que é a carência de comunidades para um caminho cristão de iconografia trinitária, tom pessoal e criatividade inspirada. Por mais que apostemos em eventos com coreografias belas – e conseguimos –, é no tempo comum das igrejas que percebemos as dificuldades para uma liturgia vívida e para uma vivência comunitária construtiva.
Por mais que identifiquemos o que nos falta com a etiqueta A e a etiqueta B e por aí adiante, sabemos que todas essas etiquetas se penduram em ramos que entroncam na mesma carência, que é a carência de comunidades para um caminho cristão de iconografia trinitária, tom pessoal e criatividade inspirada. Por mais que apostemos em eventos com coreografias belas – e conseguimos –, é no tempo comum das igrejas que percebemos as dificuldades para uma liturgia vívida e para uma vivência comunitária construtiva.
Nesta última segunda-feira de tempo comum, é aqui que a minha atenção permanece, na necessidade de comunidades em que o louvor cristão seja fonte de um dizer novo da fé, em que a liturgia, que recebe verdadeiramente as influências da vida, seja fonte de um enunciado novo da esperança, em que os hinos e as orações partilhadas sejam fonte de uma pronúncia nova de caridade. Paulo foi ao areópago, sim. E, de acordo com o título do livro, isso é um acto de apóstolo. Mas não foi de lá, desses actos, que veio o que nos alimenta há dois mil anos? Sinto muita falta de um dinamismo assim, de liturgias que geram teologia, de comunidades que medram apóstolos.
CREDITAR A ESCUTA
3ª, 28 Nov. 23
Li, esta manhã, que o verbo escolhido por Isaías para “a poesia do ouvidor” é o mesmo que na escritura sempre se usa para a ação de escavar um poço: «todas as manhãs ele escava os meus ouvidos para que eu oiça, como fazem os discípulos» (Is 50, 4-5). É tão visual este gesto, tão penetrante esta acção do Verbo. Pressinto que escutar é uma das tarefas mais prioritárias para a Igreja. Se é corpo de discípulos é corporação de ouvintes. E escutar é uma das dimensões de acolher. Não basta, mais uma vez, transformar o “todos, todos, todos” num slogan infantil, mas converter as nossas experiências comunitárias em lugares de hospitalidade incondicional capazes de receber cada pessoa com a sua originalidade e dar-lhe possibilidades de se sentir acompanhada. Escutar e acolher não é tão natural quanto imaginamos e, ainda por cima, temos vícios antigos de usarmos palavras definitivas e abusarmos de sentenças moralistas.
Se é corpo de discípulos é corporação de ouvintes. E escutar é uma das dimensões de acolher.
O primeiro nível de conversão para a escuta que nos faz falta é, certamente, o mais inspirador para os outros: escutar as escrituras numa nova relação menos cerimoniosa e menos processada. Nas nossas igrejas, o contacto com a bíblia ainda permanece quase totalmente circunscrito ao contexto da liturgia dominical. Aí, todo o enquadramento para a palavra resvala facilmente para o cerimonioso. Muda-se o tom de voz, a cadência, o aparato. Por mais inconsciente que isso aconteça, a palavra inspirada das escrituras aparece assim desligada das coisas normais, algo que não existe para ser ouvido e recebido nas mesmas instâncias que tudo o resto. E, depois, há quase sempre um processamento dessa palavra substancial… digo-o em analogia com a comida processada. Faltam ainda experiências simples de contacto directo com as escrituras em ambiente fraterno e simples, sem outro cerimonial que o do desejo de escutarmos juntos uma palavra que está tão viva quanto o presente indicativo de um Verbo. Faltam ainda pequenos grupos de gente que se junte para um encontro com a bíblia mais dialogado e partilhado, porque esse é o processamento que convém ao Espírito Santo para continuar a inspirar a leitura, a escuta e a obediência.
Creio que é desta escola discipular de escuta que nascem outras, como a escuta dos irmãos em comunidade. A verdade é que, quando as pessoas se juntam à roda do Verbo, soltam-se também nelas palavras que traziam aprisionadas e escondidas, tantas vezes. O exercício do acolhimento fraterno e da escuta reparadora não está separado da convivência com as escrituras.
O percurso do Sínodo tem sido uma oportunidade para a eutopia desta escuta. Não só pelo estímulo a que todos se envolvam nela mas até pela metodologia proposta da “conversação no Espírito” que, certamente, não apareceu apenas para este “evento eclesial”, mas que espera tornar-se o “estilo eclesial” para o discernimento e os processos de tomada de decisão. Não precisamos de declarações pontifícias em documentos solenes para pormos isto a andar na prática das nossas pequenas comunidades, grupos, movimentos eclesiais. É hora de futurarmos o amanhecer de uma nova era do cristianismo que continua a despontar como broto tenro no ramo envelhecido da robusta cristandade.
Esta escuta e este acolhimento, que nascem do verdor do Verbo e se ensaiam em comunidade, estão chamados ao ecumenismo mais concreto. É hora também disto. Não bastam datas no calendário do diálogo entre as igrejas, podemos cada vez mais investir no caminho comum, nas iniciativas ordinárias em conjunto, na partilha de vida. Ecumenicamente, envolvemo-nos, então, no diálogo inter-religioso de uma maneira tão mais sincera quanto mais é fecundo o testemunho da comunhão.
E, se ontem não me convenceu a pregação de Paulo no areópago, hoje volto à lembrança desse dia por causa do apego aos lugares de escuta. Sou missionário redentorista, raça de pregador. Na minha família carismática, o púlpito era o lugar para o serviço à Palavra. Entraram em desuso há umas décadas, mas ainda não o estilo, mesmo que se cumpra de um ambão mais modesto. Um imenso desafio missionário é creditar a Escuta como modo de servir a Palavra. A pregação da Escuta. Precisamos de uma conversão – não apenas os redentoristas, espero eu, mas muitos cristãos – de fé para acreditarmos que Escutar genuinamente é uma forma de Anunciar o Evangelho. Como antes organizávamos tempos e espaços para a pregação, estamos hoje chamados a desencadear tempos e espaços para o Diálogo. O Diálogo é também uma forma de oratória sagrada e talvez seja, hoje, um dos registos de oratória que mais nos faz falta.
Um imenso desafio missionário é creditar a Escuta como modo de servir a Palavra. A pregação da Escuta.
A conversão do púlpito em lugares de Diálogo e o desconfinamento do confessionário em processos de Acolhimento: eis um desafio que não pode ser apenas para os redentoristas e outras congregações missionárias, mas deve tocar toda a habitabilidade dos nossos tempos e lugares eclesiais. Há uma “nova arquitectura das relações” a convidar-nos para a desenvoltura.
NO EIXO DA VIDA
4ª, 29 Nov. 23
Na maior parte dos países do mundo, o caminho cristão é uma experiência minoritária. Esta é uma evidência que consegue ainda surpreender os católicos mais distraídos nesta região da Europa. Quando se lêem prenúncios de um cristianismo a tornar-se minoritário também nos países herdeiros da cristandade, isso não nos assuste: o problema não é a minoria, mas a menoridade. Muitos sectores eclesiais, a começar em muitos cristãos das “hierarquias”, estão ainda em negação em relação à crescente irrelevância social e cultural da Igreja. É um lugar novo que temos de começar a habitar de maneira esperançosa e feliz. Afinal, as moções da história encarregam-se fielmente de nos situar no lugar do sal e do fermento que nos compete. Quisemos ser a sopa toda e a massa toda e, de algum modo, conseguimos. Mas agora vemos a sopa tão insossa e o pão tão chato…
O lugar da minoria tem na bíblia uma teologia própria, a do “Resto fiel” tal como aparece nalguma tradição profética e como depois é reeditada pela expectativa das primeiras gerações cristãs. A situação do “pequenino rebanho”, enquanto apelo à coesão no Espírito e à coerência no Verbo, não diminui o alcance do testemunho. Permanecemos no raio de acção das metáforas do sal e do fermento. Precisamos, hoje, de uma visão teológica a partir da irrelevância, uma “teologia do Resto” – não das sobras – que nos dê a graça de mordermos «os anzóis profundos dos sinais», como escreveu Daniel Faria.
Uma minoria profética é o oposto de uma menoridade patética que ainda dá ares da sua desgraça mais vezes do que gostaríamos. Uma das facetas do clericalismo é o paternalismo religioso que tudo menoriza e a todos infantiliza. Estas coisas produzem comportamentos confrangedores. E penso, como membro desta Igreja que integro acanhadamente, num outro slogan do nosso desentendimento: ir às periferias existenciais. Digo “desentendimento” , porque me parece que nas periferias existenciais está a Igreja demasiadas vezes: percorremos as liturgias das nossas comunidades, as nossas catequeses e as recolecções dos movimentos eclesiais e apercebemo-nos que quase tudo gira à volta de coisas que não estão no centro da existência das pessoas. Os motivos porque a vida dói, os fracassos em que as relações se quebram como fracturas expostas, as angústias para fazer face às contas do fim do mês, a ansiedade de quem trabalha sem segurança nem horizonte, o medo de não estar a acertar com a educação dos filhos, a voragem do tempo ininterrupto, as perguntas que gritam dentro da gente e a falta de espaço para desafogar a voz… Acontece, infelizmente, as igrejas gastarem todas as energias naquilo que está muito ao lado do epicentro existencial das pessoas reais. Eis outro olhar sobre a expressão “periferias existenciais” que nos últimos anos se tem tornado moda também.
Digo “desentendimento” , porque me parece que nas periferias existenciais está a Igreja demasiadas vezes: percorremos as liturgias das nossas comunidades, as nossas catequeses e as recolecções dos movimentos eclesiais e apercebemo-nos que quase tudo gira à volta de coisas que não estão no centro da existência das pessoas. Os motivos porque a vida dói, os fracassos em que as relações se quebram como fracturas expostas, as angústias para fazer face às contas do fim do mês, a ansiedade de quem trabalha sem segurança nem horizonte, o medo de não estar a acertar com a educação dos filhos, a voragem do tempo ininterrupto, as perguntas que gritam dentro da gente e a falta de espaço para desafogar a voz… Acontece, infelizmente, as igrejas gastarem todas as energias naquilo que está muito ao lado do epicentro existencial das pessoas reais. Eis outro olhar sobre a expressão “periferias existenciais” que nos últimos anos se tem tornado moda também.
Neste contexto de dissolução do tecido sócio-cultural como entretecido religioso, rapidamente os ritos e ritmos da crença se tornam assunto marginal, da margem do prato no banquete da vida. O caminho de uma minoria profética quer-se ao contrário, em direção ao centro da existência, às questões fundamentais, essenciais, ao lugar do eixo. O cristianismo é um dom situado no eixo da vida, no ponto crucial da ressurreição. Nenhuma das nossas experiências de morte lhe há-de ficar imune. Aqui incide, como desejo, a reinvenção de uma teologia e de uma espiritualidade baptismais. A Igreja tornar-se-á realmente outra coisa quando o Baptismo for revitalizado por uma teologia espiritual da vocação.
Não haverá mudança concreta nas nossas igrejas, enquanto o sacramento da ordem for, na prática, mais importante e operativo que o sacramento do Baptismo. Sem esta reconfiguração da ministerialidade fundada numa vivência clara e evangélica da sacramentalidade, dificilmente as comunidades encontrarão hoje formas de organicidade que as legitime como “Corpo de Cristo”.
Não haverá mudança concreta nas nossas igrejas, enquanto o sacramento da ordem for, na prática, mais importante e operativo que o sacramento do Baptismo. Sem esta reconfiguração da ministerialidade fundada numa vivência clara e evangélica da sacramentalidade, dificilmente as comunidades encontrarão hoje formas de organicidade que as legitime como “Corpo de Cristo”.
Daqui vislumbra-se um dos desafios mais prementes para o cristianismo dos próximos tempos: a Iniciação Cristã. Que não haja entre nós muitos processos sérios de iniciação cristã, não é uma grande novidade. Há muito que é assim. Mas havia um outro processo a acontecer que parecia suprir a ausência de iniciação cristã: era a transmissão da fé. Ora, a transmissão da fé é eminentemente intergeracional, perpassa sobretudo pelos dinamismos familiares e situa-se normalmente no contexto sócio-cultural envolvente. A novidade está aqui, no facto de termos de criar processos de iniciação cristã numa sociedade “não cristã”. A transmissão da fé é uma transfusão de memória e uma convivência com os mecanismos da experiência religiosa dos outros, em registo de proximidade e de confiança. Não quer dizer que seja uma transmissão acrítica ou desvirtuada de criatividade. Basta lembrar o apóstolo Paulo quando confessa «transmito-vos o que eu próprio recebi!» (1Cor 15, 3). Di-lo em relação às coisas mais importantes, como são a Ceia do Senhor e a experiência da sua Ressurreição, e di-lo com desenvolvimentos de grande abertura. Mas hoje, levantam-se perguntas: E quando não recebemos? O que temos para transmitir? Ou, então, indo perguntar por outro lado: E quando o facto de “transmitirmos aquilo que recebemos” é exatamente o problema? Ou seja, quando seria tão importante transmitir outra coisa… Ainda há poucas semanas me lembrei disto, numa visita forçada ao mecânico: problemas na transmissão pagam-se muito caro.
Passar da transmissão da fé à iniciação cristã faz retomar a necessidade de novos enunciados para a vida teologal e levanta também o desafio da narração. A narração é um fio condutor da transmissão e as grandes esperanças cristãs inclinam-se a serem contadas como histórias e como visões. Que uso daremos às palavras para que elas componham de novo narrações que acendam a imaginação e toquem no centro mais profundo do ser humano? Nunca tanta gente leu tantas coisas tanto tempo seguido. Já nem encaixa bem o dito de valer uma imagem por mil palavras, porque agora são mais de mil as imagens que vemos também. Como narrar significativamente numa sociedade de hiper-estimulação que está online 24/7?
Que uso daremos às palavras para que elas componham de novo narrações que acendam a imaginação e toquem no centro mais profundo do ser humano?
O scroll era um instrumento de leitura vagarosa, um rolo simples ou duplo em que as palavras se desembaraçavam para a aparição e, passado um pouco, enrolando-se, se aninhavam novamente, na vaidade menina de já se terem dito. Hoje, scroll é gesto de instante fugaz, tapete rolante interminável. O fenómeno da comunicação abdicou do verbo “transmitir”. O verbo chave é “viralizar”. Por outras palavras, não há um canal, uma direcção, uma entrega: a alegoria viral é a difusão, o derrame (de facto, não há dia sem “fuga” de informação, sem que alguma coisa tenha “vazado”). Mas, entregar (traditio, delivery) é oferecer. Narrar é contar. E quando é de verdade, ao contarmos a, contamos com: é um princípio de comunhão.
Os desafios para as igrejas que vejo deste promontório – que é a última semana do ano litúrgico – formam círculos concêntricos como numa dança de roda, mas, olhe por onde olhar, tudo se inaugura em punhados de gente que se põe à escuta e celebra a vida num lugar que se parece a uma porta aberta.
Os desafios para as igrejas que vejo deste promontório – que é a última semana do ano litúrgico – formam círculos concêntricos como numa dança de roda, mas, olhe por onde olhar, tudo se inaugura em punhados de gente que se põe à escuta e celebra a vida num lugar que se parece a uma porta aberta.
COM A PACIÊNCIAS DOS CAMINHOS
5ª, 30 Nov. 23
É fácil diante da JMJ ficar consolado, por causa do sucesso da experiência, vaidoso por ter corrido tudo tão bem, e confirmado com este tipo de evento, porque, evidentemente, tantos jovens fizeram uma experiência de encontro e de fé que foi cheia de significado.
É fácil diante da JMJ ficar ressabiado, por causa do vazio de um tipo de coisa assim, desiludido com o aproveitamento que alguma hierarquia faz destas coisas para tentar amplificar a imagem, confirmado de que este tipo de evento não edifica, mas antes traz o bocejo de uma certa saudade de Igreja triunfal.
É fácil qualquer um destes extremos e mais fácil ainda encontrar argumentos capazes para os dois lados. Mas nenhum dos lados me dá visão, em ambos me sinto num ângulo cego. Contudo, há três olhares que tenho andado a compor desde agosto: a representação, a massa e o fundamentalismo.
A representação: tendo estado envolvido na JMJ, percebi claramente que a percentagem maior de jovens presentes vinha de colégios católicos e movimentos eclesiais muito sectários. Nalguns casos, ambas as pertenças coincidiam. É claro que estas coisas obedecem, depois, à psicologia de grupo e às formas como interagimos quando estamos em aglomerados maiores e mais identificados, como é o caso de grupos de escola ou de movimentos, mas, indo ao que me interessa agora: não era o dinamismo das comunidades cristãs que estava representado em primeiro lugar. Quem vê o cenário da JMJ não está a ver um panorama aglomerado do dinamismo que existe espalhado pelas comunidades cristãs. Não faço avaliação disto, certamente é preciso muito mais para isso do que este relance. Mas não consigo deixar de o ver e foi isso que ficou a meter-se comigo.
A massa: a linguagem da Igreja em relação aos jovens continua a ser a de um “eles” muito impessoal e difuso. Os “jovens”, no discurso de muitos bispos e presbíteros, é uma categoria de destinatários para a pastoral que nunca se sabe bem quem é, porque parece que vai ali entre os treze e os trinta anos… E esse é um equívoco que talvez explique qualquer coisa do problema da representação: nos colégios e nos movimentos gera-se um dinamismo de identificação: “nós somos…”. Mas a Igreja da pastoral ordinária fala sempre dos jovens como destinatários e não como membros. Fala “deles” com boa vontade (e um quanto baste de paternalismo), mas não os reconhece como companheiros, não na prática, e muito menos como participantes dos processos de discernimento e de decisão da vida das comunidades. Lembro-me da refeição que Jesus aceitou em casa de um fariseu, durante a qual uma mulher de má fama entrou na sala e se inclinou aos seus pés. O fariseu que o tinha convidado pensava: “se ele fosse profeta, saberia que tipo de mulher é que lhe está a beijar os pés”. E Jesus, percebendo-o, lançou-lhe uma pergunta como um clarão: “Vês esta mulher?” O fariseu não via. Via um “tipo” de mulher, mas não “esta” mulher. No percurso interior desta pergunta residia o milagre que Jesus oferecia ao anfitrião (Lc 7, 36-50). Assim, também na Igreja quando falamos de jovens, como se fossem uma massa de gente toda igual, um tipo de gente. A sociedade cataloga assim, descrevendo os Millennials ou Geração Y, mas compete-nos outra coisa: vês “este” jovem? É o maior desafio para nós, a criação de espaços suficientemente pessoais e humanos para que cada um seja “este” e “esta”. Também os jovens. Os modelos de pastoral juvenil que conhecemos estão coçados e precisamos de núcleos comunitários capazes de acolher quem chega com outras sensibilidades e linguagens, sem cairmos na tentação de os tentar enquadrar. Importa encontrar pessoas que não nos tratem como “destinatários” de qualquer plano pastoral, mas como companheiros no plano de Deus.
Importa encontrar pessoas que não nos tratem como “destinatários” de qualquer plano pastoral, mas como companheiros no plano de Deus.
O fundamentalismo: bem o lemos nos estudos que vão sendo feitos por todo o mundo, a preocupação que causa vermos posturas fundamentalistas a conquistarem cada vez mais gente nova, e cada vez mais nova. É um fenómeno expectável, em tempos de liminaridade. O que talvez seja surpreendente é a facilidade com que isto entra também na Igreja. De facto, uma das evidências mais chamativas durante a JMJ foi a multidão de grupos organizados de jovens que iam celebrando e rezando juntos com rigores litúrgicos que tresandavam a nostalgia das rubricas pré-conciliares. E a minha questão não é sequer a do formato litúrgico, não aqui, não agora. O que me questiona é a catequese associada a isso e a mundividência cristã que estes grupos estão a fomentar. Alguns destes grupos tinham até um comportamento muito expansivo nos momentos de rua, mas também isto encaixava claramente num registo de afirmação identitária de grupo. Um quase proselitismo. Sem dúvida, um cristianismo militante 2.0.
No tempo dos hashtags, facilmente nos deixamos iludir por aquilo que dá resultados rápidos e contabilizáveis. E os mecanismos identitários instantâneos são tão fáceis de reproduzir. Mas a aventura há-de continuar a ser criar espaços de acolhimento em que cada um se sinta recebido na sua própria originalidade e reconhecido como alguém único. Um lugar humano para ser escutado e poder dizer-se pessoalmente, sem o glamour das respostas prontas, mas com a paciência dos caminhos de Emaús. Também os jovens.
Um lugar humano para ser escutado e poder dizer-se pessoalmente, sem o glamour das respostas prontas, mas com a paciência dos caminhos de Emaús. Também os jovens.
FALAR FRANCO
6.ª, 1 Dez. 23
O povo bíblico caía nas maiores asneiras sempre que abdicava da memória. Esquecer e asneirar, na mística bíblica, são causa e feito. Não podemos cair na tentação de esquecer a publicação do “Relatório Final da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica”. Não tenhamos dúvida, este foi o evento mais significativo da Igreja em Portugal neste ano que termina e aquele que deve ter consequências mais profundas, amplas, programáticas e sérias. Um momento como esse tem a forma de um “caderno de encargos” muito exigente e eu confesso o meu temor de que a Igreja em Portugal não dê os passos necessários.
O povo bíblico caía nas maiores asneiras sempre que abdicava da memória. Esquecer e asneirar, na mística bíblica, são causa e feito. Não podemos cair na tentação de esquecer a publicação do “Relatório Final da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica”.
Não vou dizer o que esperei e não aconteceu: já não adianta. Mas há coisas que estão ainda por fazer e podem ser feitas, têm mesmo de ser feitas e estamos a tempo. Para além de tudo o que é absolutamente básico num manual de procedimentos e boas práticas no que toca a ambientes saudáveis, temos de ir mais longe. Precisamos de renovar profundamente as estruturas de formação daqueles que se preparam para os ministérios ordenados. O modelo de seminário tridentino que ainda temos – com nuances mais ou menos óbvias – está evidentemente desadequado para a emergência de qualidades humanas e espirituais que encaminhem para a inserção nas comunidades cristãs e no mundo. Não é suficiente a desculpa “temos poucos seminaristas” para não implementar mudanças. Todos precisamos! É fundamental perceber a importância dos sinais e acreditar na fecundidade que existe nos gestos de conversão.
O impacto da publicação deste Relatório e a necessidade de lhe dar continuidade de uma maneira que vá muito além dos pedidos de desculpa e do bom trabalho do Grupo VITA, manifesta um desafio latente à Igreja em Portugal que é o da liderança. Essa “liderança cristã” não se visibiliza pelas aparições mediáticas nem pelas iniciativas públicas, mas pela capacidade de gerar mudanças ao nível das estruturas de formação e de pastoral segundo o ímpeto sinodal que o Papa Francisco tem sugerido e a denúncia mordaz que ele faz ao lastro clerical que tudo debilita. Não houve a parrésia suficiente na liderança eclesial portuguesa para que acontecesse um processo de assunção de responsabilidades no que tocava a omissões graves e encobrimentos. Podemos ainda esperar a parrésia necessária para que haja gestos e planos concretos de conversão nas estruturas de formação e decisão pastoral das nossas Dioceses e das nossas Congregações?
Essa “liderança cristã” não se visibiliza pelas aparições mediáticas nem pelas iniciativas públicas, mas pela capacidade de gerar mudanças ao nível das estruturas de formação e de pastoral segundo o ímpeto sinodal que o Papa Francisco tem sugerido e a denúncia mordaz que ele faz ao lastro clerical que tudo debilita.
ARTE CELEBRATIVA BELA E ADEQUADA
SÁB., 2 Dez. 23
Último dia do ano litúrgico, um ano de louvor. Esta semana final deixa-me na soleira do advento de Alguém que insiste em recomeçar comigo. Há qualquer coisa de esperançoso neste ciclo, uma circulação de vida reiterada, como se não nos fosse permitido abdicar do futuro. À falta da nossa iniciativa, é Ele que vem. O último dia de um ano de louvor é afeito à gratidão. E também ao desejo de ver florescer a arte celebrativa no Ano Novo que há-de começar amanhã, Domingo, que se chamará “primeiro dia” ainda mais enfaticamente que os outros.
À falta da nossa iniciativa, é Ele que vem.
As comunidades cristãs são um organismo de louvor, um corpo celebrativo. Por isso, cresçamos no prazer da liturgia, procuremos a fome e a sede de beleza que prestem homenagem ao Senhor que nos dá nome. O desafio da escuta desassombrada e humilde, os espaços para a pregação do diálogo e o acolhimento de todos, o contacto não cerimonioso com o vivente Verbo que vem conjugar-se conosco em todas as pessoas, tempos e modos, eis por onde pode fluir uma renovação constante dos nossos modos celebrativos. E é urgente, para que as nossas liturgias não exonerem a já de si débil dicção da fé que hoje temos. Abramos o diálogo a outras linguagens poéticas, a outras expressões artísticas, voltemos a dar a mão aos que pronunciam o inefável de maneira surpreendente ou subtil. Salvemos o cristianismo do kitsch involuntário e da monotonia rubricista de quem cumpre um ritual como se declamasse uma lista de compras do mês.
Salvemos o cristianismo do kitsch involuntário e da monotonia rubricista de quem cumpre um ritual como se declamasse uma lista de compras do mês.
Ousemos novas aberturas nas tendas em que nos reunimos para adorar como povo a caminho, preparemos com carinho linguagens sensitivas para dizer o invisível, mais alusões que explicações, mais prenúncios que declarações. E silêncios. Precisamos tanto de redescobrir o lugar do silêncio nas nossas liturgias… E colher as palavras como se fossem flores, escolher as imagens como sementes, entregar aos sentidos insinuações. Expor-se à influência de outras latitudes e cultivar-se noutros dizeres, partilhar com outros os tons e os sabores e procurar sempre trazer a vida a sério para a liturgia que se celebra. Como se geram pequenas células de mistagogos no seio das nossas comunidades? Está visto que ficar à espera de “mudanças na liturgia” através de novas edições do missal romano, é um logro. Que a vida da gente tome conta da liturgia, abraçando-se à vitalidade do Senhor que sempre a preside. Utilizo a imagem da hera que, verdejante, sobe pela liturgia acima, sem sumptuosidade nem exuberância, sobe pelo Senhor a eito e, sem saltos nem pressas, sobe imparavelmente para participar da inteireza de ser Corpo com Ele.
Numa comunidade que vai encontrando espaços para introduzir a vida real na liturgia, vai-se aprendendo a trazer a liturgia para a vida real. É assim que os sacramentos se tornam símbolos de vida, quando uma comunidade gera linguagens suas que acrescenta à comunhão das igrejas e à comunhão dos santos. Há um sonho maior ainda que o desafio que eu não sei dizer, mas que lembro axiomático numa frase de santo Agostinho: pulchra et apta, bela e adequada, assim se deseja a liturgia. É o contexto em que mais vezes nos encontramos entre cristãos. É um contexto em que tantas vezes nos encontramos até com outros que não fazem caminho com os cristãos. Importam a beleza e a aptidão, importa que o louvor esteja inscrito na arte de bem-dizer. Quando o vidente do livro do Apocalipse foi levado à contemplação dos “novos céus e da nova terra”, percebeu, admirado, que, ali, «nada haverá mal-dito» (Ap 22, 3). É uma felicíssima esperança e a liturgia pode ser um laboratório em que a ensaiamos.
Amanhã recomeçamos.
in Brotéria 198-1 (2014): 75-89.
Nota: o autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
Sugestão Cultural Brotéria
Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.
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