Anoushka Shankar vive na sombra, quase incógnita dos grandes públicos, como acontece com a maioria dos artistas que fazem a chamada world music. De ascendência indiana, filha de uma das maiores lendas de sitar, Ravi Shankar (o mentor espiritual de George Harrison, cuja influência se notou marcadamente numa das fases musicais dos Beatles), Anoushka (também meia-irmã de Norah Jones) enveredou por uma corrente tradicional da música indiana, sendo a sitar o seu instrumento principal e o virtuosismo a sua marca de qualidade.
Não se pense, porém, que o percurso da artista é trilhado por ruelas do passado e que esta se limita a repetir o caminho já pisado pelo seu pai e outros gurus da música tradicional indiana. Anoushka, mantendo-se fiel à tradição, anda sempre à espreita do presente e do futuro, usando uma linguagem atual, compreensível e universal.
2020 começou, para Anoushka Shankar, com um EP de seis músicas intitulado Love Letters, que surge de um infortúnio pessoal da artista: o fim do seu casamento.
Capitulado por uma escrita francamente confessional, Love Letters apresenta-se com uma angústia acutilante e despida, própria daquele que sofre uma das tormentas interiores mais desconcertantes para o coração humano: um desgosto amoroso. Aqui, Anoushka mostra músicas e letras de uma vulnerabilidade que desarmam quem quer que oiça, sem melancolia ou comiseração em demasia (que poderiam inspirar mais pena que identificação). Damo-nos conta, então, de um momento catártico, em vez de esbarramos contra um muro de lamentações.
Este trabalho tem a particularidade de ser construído maioritariamente por mulheres, contando com colaborações de relevo como as de Alev Lenz, cantora alemã, o dueto vocal de irmãs gémeas cubanas Ibeyi, a violoncelista e cantora britânica Ayanna Witter-Johnson, a cantora indiana Shilpa Rao, e as técnicas de som Mandy Parnell e Heba Kadry. Este facto não é ocasional, não se trata de uma coincidência. Shankar fez-se rodear de mulheres cuja qualidade artística lhe agradava, numa tentativa declarada de romper com o domínio masculino que possa existir no meio da indústria musical.
Bright Eyes, o pontapé de saída deste EP, começa com uma introdução de sitar íntima e intimista (dá a impressão de que Anoushka invadiu, ela própria, a nossa sala, sentou-se no tapete, e começou a tocar). A letra traz-nos a angústia de quem vê um antigo amor entregue a outros braços. A catarse da letra é acompanhada por um momento, também ele catártico, na música. E assim, como que num suspiro angustiado, pergunta-se “do you call her bright eyes too?”.
De salientar, também, a canção Space que, sendo um dos momentos mais progressistas do ponto de vista musical do EP, faz o relato, em plena canção, de uma mudança de paradigma interior. Começa com “there’s no space for me, there’s just space for you”, mas assistimos a uma reviravolta narrativa quando ouvimos “Now there’s space for me, no more space for you”.
Entre escalas, melodias e sons marcadamente indianos, encontram-se batidas que se poderiam caracterizar pop, criando um estilo inconfundível e quase exclusivo de Anoushka. Este é, sem parcimónia adjetiva, o trabalho mais vulnerável, íntimo, sensível e frágil da discografia de Shankar. A desconcertante condição de um coração partido é um fenómeno mais ou menos universal, mas expô-lo assim de uma forma tão despida, é de uma coragem que, geralmente, só assiste aos bons artistas.
Ficha técnica
Anoushka Shankar
LOVE LETTERS Álbum / Lançamento 07.02.2020
Género ALTERNATIVO, INDIE
Editora MERCURY CLASSICS
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
Sugestão Cultural Brotéria
Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.
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