A travessia num acorde – nunca abandonados

Ao longo destes últimos (e inesperados) dias, muita coisa tem sido dita. A música sacra, particularmente neste tempo de Quaresma, reforça como o deserto, embora necessário e custoso, não é percorrido na solidão. Um ajuda para este domingo.

Ao longo destes últimos (e inesperados) dias, muita coisa tem sido dita. A música sacra, particularmente neste tempo de Quaresma, reforça como o deserto, embora necessário e custoso, não é percorrido na solidão. Um ajuda para este domingo.

Ao longo destes últimos (e inesperados) dias, muita coisa tem sido dita. A rapidez da informação a que hoje temos acesso permite-nos estar constantemente actualizados sobre tudo o que se vai passando. O acesso aos números avassaladores deste vírus é imediato, a informação acerca das medidas políticas mais ou menos justas e drásticas chega-nos num repente, e muitos partilhamos constantemente as reacções e histórias, melhores ou piores, que esta situação nos tem presenteado. Vivemos em permanente update, tentados a um repetitivo refresh às páginas ou app’s de informação, como se isso mudasse alguma coisa. Mas esta atitude de constante conectividade, por muito que nos possa informar, corre o risco de nos afogar num desespero desnecessário.

Felizmente são muitos os contributos que nos procuram animar e fortalecer no caminho, recordando-nos que não o percorremos sozinhos. A criatividade tem estado ao serviço da caridade e da solidariedade – do fazer-se próximo – que tem surgido deveria encher-nos de esperança renovada: desde medidas que apoiam quem está mais sozinho ou abandonado, a contributos para crescer cultural ou espiritualmente, não faltam instrumentos que nos despertam e desafiam. Tanta bondade que nos rodeia, apesar dos isolamentos, deveria insuflar em nós um novo fôlego para podermos continuar, cheios da confiança de que, mesmo com nevoeiro, não seguimos sozinhos, mas acompanhados.

A música sacra, particularmente neste tempo de quaresma, também mostra o quanto o deserto, por vezes necessário e sempre custoso, não é percorrido na solidão. O Povo de Deus, de costas voltadas para a escravidão,  caminhava rumo a uma terra prometida, por entre sonhos e desesperos, mas não caminhava sozinho: Deus fazia-se presente na coluna de nuvem. As propostas que hoje apresento procuram ilustrar – e fazer-nos experimentar – como a Fé toma a forma de confiança, especialmente em tempos de incerteza.

A primeira proposta de hoje procura recordar-nos isso mesmo: a Confiança. Por volta do ano de 1768 (data do manuscrito mais antigo desta obra), J. S. Bach (Alemanha, 1685-1750) compôs Gottes Zeit ist die allerbeste Zeit, também conhecido por Actus Tragicus. Esta peça, composta para uma celebração exequial, tem um texto especialmente apropriado para um tempo de penitência. Na secção que proponho escutamos:

O Tempo de Deus é o melhor dos tempos.
N’Ele vivemos, nos movemos e existimos,
n’Ele morremos no tempo apontado,  quando Ele o deseja.

Reconhecer que Deus, que só pode Amar,  comanda a história e que, por isso, o Seu Tempo (o tempo oportuno) está para lá da nossa compreensão, deve encher-nos de confiança. O coral inicia sereno e lento, realçando a largueza que o próprio tempo pode ter; mas logo ganha vida ao se referir à vida que d’Ele nos vem.

 

 

A Fé, vivida como gesto de confiança especialmente em tempos de tempestade, torna claro como “ninguém se salva sozinho” (Papa Francisco, na Oração Extraordinária do passado dia 27.Março): como Pedro que suplicou ao Senhor para que o puxasse, de novo, à superfície, também nós clamamos pela Mão de Jesus que nos cura e puxa. A segunda proposta, particularmente neste tempo, ganha ainda mais a forma de súplica: Ó Bom Jesus, tende misericórdia de nós. Trata-se de um texto que atravessa a história da Igreja, tornando-se novo na boca de cada crente. Proponho a versão de G. P. Palestrina  (Itália, 1525-1594), composta por volta do ano de 1588. Este breve coral, ao mesmo tempo que enobrece a prece, poderá recordar-nos como ela atravessa a história e como, depois de cada tempestade, surge a bonança.

 

 

Por fim, ainda como proposta para contemplar a súplica enquanto expressão de confiança, proponho o Kyrie eleison, tão meditativo quanto imponente, da Missa em Mi menor (1866), de Anton Bruckner (Áustria, 1824-1896). À invocação milenar Kyrie eleison (Senhor, misericórdia), Bruckner confere uma beleza incontornável: a peça inicia-se com dois coros de quatro vozes iguais que, começando por cantar à vez, se unem num magnífico e íntimo coral para oito vozes mistas; na segunda secção (Christe eleison), as vozes, apoiadas pelos instrumentos, ganham força que transformam a prece num grito suplicante; na terceira e última secção (Kyrie eleison), o coral regressa ao tom meditativo com que começou. Que esta peça nos possa ajudar a experimentar a confiança neste Senhor que “dorme na nossa barca”, mas não nunca nos abandona, especialmente no tempo da tempestade.

 

Boa semana e bom caminho: até já!

 

Playlist Spotify – A Travessia num acorde 

 

Fotografia de Jean-Pierre Brungs – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.