Naquela manhã, mesmo no raiar da aurora, aquelas mulheres seguiam pesarosas a caminho do sepulcro. Caminhavam carregando consigo o peso doloroso de quem viu sofrer injustamente Aquele que amavam. Percorriam o caminho em direcção ao lugar onde tinham depositado o Seu Corpo, com os olhos turvos tanto pelas lágrimas do luto, como pela incerteza quanto ao futuro. Tudo estava acabado: tudo parecia mudar, já não era possível “ver ao longe”. Como viveriam, depois desta morte? Como poderia a vida continuar, se Aquele em quem tinham posto toda a sua confiança se tinha extinguido?
Mas aquelas mulheres de olhar cabisbaixo, que caminhavam na escuridão do desespero, não esperavam que o impossível pudesse acontecer! Como a uns pastores, uns anos antes, a quem uma voz anunciara a “grande alegria” de um Nascimento, uma nova voz surgia agora para anunciar uma vitória sobre a morte. Aquele a Quem buscavam já não as esperava numa gruta, mas as precedia nas “Galileias” deste mundo, “apressado, a correr, a preparar a salvação para a Humanidade”.
E, assim, da treva do luto, da incerteza e do medo, uma Luz vence e teima em brilhar: Cristo Ressuscitou e, com Ele, a nossa Fé ganha sentido, a nossa Esperança concretiza-se e o nosso Amor jamais será em vão. N’Ele, todo o nevoeiro que atravessamos dissipa-se porque, na alegria deste anúncio, voltamos a ter horizonte. Por Ele, nas chagas do Ressuscitado, todo o sofrimento injusto e inexplicável a que assistimos recebe novo sentido. Com Ele, enfim, tudo o que atravessamos se torna fecundo e fonte de vida, mesmo que o não pareça, porque a morte foi vencida.
Se a Paixão de Cristo foi inspiração para tantos compositores, ao longo da história da música, a Sua surpreendente Ressurreição foi-o muito mais. As três propostas que apresento hoje festejam a grandeza deste Dia, e poderão encher-nos do gozo que lhe é próprio. A primeira sugestão, da autoria de J. S. Bach (Alemanha, 1685-1750), é a solene abertura da cantata BWV 191, Gloria in excelsis Deo (~1742). Apesar de composta para o Natal, creio que ganha um sentido ainda mais profundo neste dia: afinal, o canto de Glória que os Anjos cantaram, na noite na Natividade, é concretizado hoje. Os instrumentos, especialmente na introdução, conferem um sentido majestático ao canto do coro, que, por sua vez, assumirá um sentido contemplativo nas palavras “e paz na terra aos homens de boa vontade”. Deixando-nos inundar pela força desta abertura, experimentemos a alegria inesperada que a “manhã daquele dia” terá sido para aquelas mulheres.
Assim como o anúncio dos anjos ganhou novo sentido, neste dia, também as palavras do salmo 110 se parecem concretizar: «Disse o Senhor ao meu Senhor: “Senta-te à minha direita, até que Eu faça de teus inimigos escabelo de teus pés”». Inspirado por este texto, G. F. Handel (Alemanha, 1685 – Reino Unido, 1759) compõe Dixit Dominus (1707). Este coral enérgico – especialmente na versão que apresento – inspira-nos ao movimento, desafiando-nos à alegria. Vale a pena escutar e deixarmo-nos contagiar pela “urgência” da Boa Notícia.
Por mim, proponho algo um pouco invulgar. Pietro Mascagni (Itália, 1863-1945) compôs, com texto de Giovanni Verga, a ópera Cavalleria Rusticana (1890). Esta obra, retratando uma intriga novelesca de amores e desamores, passa-se precisamente num Domingo de Páscoa, entre o início da missa e o final da procissão que se lhe segue. Durante a “procissão”, o coro canta Regina Coeli laetare, Alleluia (Rainha dos Céus alegrai-Vos, Aleluia), um hino mariano secular, próprio do tempo pascal. Ainda durante a mesma cena, uma solista canta “Rejubilemos, o Senhor não está morto”. São páginas belíssimas, e não muito conhecidas. O coral, que se alegra com a Mãe de Jesus, tem algo de piedoso e meditativo; o júbilo da solista, por sua vez, ganha a força de um louvor que não se pode conter, especialmente quando reforçado pelas vozes dos outros solistas e do coro. Possam estas ser as nossas palavras.
https://youtu.be/MxzDSy8MpGs
O Senhor Ressuscitou verdadeiramente! Não se trata de uma mera comemoração, não é apenas um “faz-de-conta”. A Sua Paixão e Morte só têm sentido na Vida que surge delas. E, assim, continua a ser com cada um de nós, com as nossas paixões e mortes, com os sofrimentos e dores, com as lutas e desesperos de cada dia: no sepulcro vazio de Jerusalém ganham nova tonalidade. Aquelas mulheres, naquela madrugada, poderão não ter visto nada; mas naquele “nada”, naquelas faixas sem o Corpo, viram tudo. Que nesta Páscoa também o nosso olhar se possa converter e ver esperança onde outros vêem desespero, caminho onde outros vêem becos sem-saída, Vida onde outros vêm morte. Cristo Ressuscitou, Aleluia, Aleluia!
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.