A obra lançada pela Frente e Verso é um contributo marcante para a reflexão e para a receção da Exortação Apostólica “A Alegria do Amor”. O lançamento público terá lugar dia 11 de setembro pelas 18h30 na Brotéria em Lisboa.
Introdução do livro “Alegria e Misericórdia – A Teologia do Papa Francisco para as Famílias”
No primeiro parágrafo da primeira Exortação apostólica de sua exclusiva autoria, A Alegria do Evangelho (EG), o Papa Francisco proclama que «a alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus». E, com esta certeza, convida toda a Igreja «para uma nova etapa evangelizadora marcada por esta alegria». Para ele, esta é a atitude que deve marcar os «caminhos para o percurso da Igreja nos próximos anos» (EG 1).
A alegria, para Francisco, não é um capricho ou um privilégio dos sortudos deste mundo, mas o fundamento mais íntimo da nossa fé. Nasce daquele grito inesperado da manhã de Páscoa: «Vi o Senhor!» (Jo 20, 18). Por isso, a verdadeira alegria não é por nós fabricada; é-nos oferecida como um fruto do Espírito (Gl 5, 22) que tem que ser por nós acolhido. Esse trabalho de colher o fruto do Espírito ou da ceifa da boa semente (Mt 13) acontece na história concreta de cada um. As relações humanas que tecem a identidade das pessoas e das famílias são o lugar onde é derramada e acolhida a alegria de Cristo ressuscitado.
Esta é a missão da Igreja: levar a alegria de Cristo Ressuscitado a cada família, a cada lar, a cada lugar mais recôndito do mundo e do coração humano. Ao anunciar a alegria do amor, o Papa não esconde, antes realça, a verdade tantas vezes dura e sofredora das famílias. A Exortação Apostólica A Alegria do amor inicia o seu percurso precisamente pela descrição da realidade das famílias, primeiramente na Sagrada Escritura (capítulo 1) e, posteriormente, no mundo atual (capítulo 2). A revelação não esconde nem «nega uma amarga realidade que marca toda a Sagrada Escritura: é a presença do sofrimento, do mal, da violência que dilaceram a família e a sua comunhão íntima de vida e de amor» (AL 19).
Na busca desta alegria e no desejo sincero de viver o amor, as famílias tropeçam, caminham por vezes nas trevas, deparam-se com sonhos nunca realizados, experimentam falhas e roturas.
Esta é a missão da Igreja: levar a alegria de Cristo Ressuscitado a cada família, a cada lar, a cada lugar mais recôndito do mundo e do coração humano. Ao anunciar a alegria do amor, o Papa não esconde, antes realça, a verdade tantas vezes dura e sofredora das famílias.
Hésèd é a palavra hebraica para misericórdia, que o grego do Novo Testamento traduz por éléos. Hésèd, muitas vezes traduzido simplesmente por amor, faz parte do vocabulário da Aliança e designa um amor incondicional, que nada – nem a infidelidade mais abominável de Israel – pode abalar. Por isso mesmo, hésèd, éléos, revela-se um amor eminentemente misericordioso, já que a história da Aliança é um caminho espinhoso, de infidelidades, roturas, perdão e recomeços.
Mas, na semântica hebraica, encontramos ainda outra palavra para misericórdia. Trata-se da palavra rahamîm. Este vocábulo tem uma origem diferente e revela outras fisionomias da misericórdia. Fala da ternura que envolve os laços entre dois irmãos ou, mais ainda, entre mãe e filho. É a forma plural de réhèm, o seio materno. Misericórdia revela-se, afinal, como útero, como o lugar da geração de uma nova vida que se vai tecendo, no silêncio do tempo. Por isso, pode o profeta Isaías pôr na boca de Deus: «Acaso pode uma mulher esquecer-se do seu bebé, não ter carinho pelo fruto das suas entranhas? Ainda que ela se esquecesse dele, Eu nunca te esqueceria» (Is 49, 15). E não admira que seja possível só a Deus perdoar os pecados. Porque o perdão é, de facto, uma nova criação.
É possível recuperar a alegria. Misericórdia é o nome desse caminho de volta à alegria da vida, porque Misericórdia é o nome do Deus criador que Se alegra mais quando um pecador se arrepende do que com os noventa e nove justos que não necessitam de conversão (Lc 15, 7). Por isso, ainda que a aparência pretenda desenhar o contrário, «a alegria do Evangelho é tal que nada nem ninguém no-la poderá tirar» (EG 84). A misericórdia é a raiz e a alegria é o fruto. O exercício da misericórdia gera a alegria em quem a exercita e em quem a recebe.
O pano de fundo
Depois de notar como «alegria» é uma das palavras mais repetidas no vocabulário do Papa Francisco, Antonio Spadaro, neste livro, insiste numa antropologia do concreto usada na Amoris laetitia. Esta referência a um câmbio bergogliano de perspetiva antropológica será comum a vários autores, como à frente verificaremos. Para Spadaro é bastante claro que, embora a antropologia cristã permaneça a referência, as categorias de linguagem e de compreensão da realidade são diferentes do passado e os homens e as mulheres de hoje leem-se segundo chaves de leitura distintas. Na leitura abrangente que faz da Exortação, Spadaro sublinha o carácter de historicidade e a preocupação pelo concreto, «com os pés na terra» (AL 6), com que Francisco aborda as complexas questões das famílias do mundo atual. De facto, o Papa reconhece que «muitos não sentem a mensagem da Igreja sobre o matrimónio e a família como um reflexo claro da pregação e das atitudes de Jesus, o qual, ao mesmo tempo que propunha um ideal exigente, não perdia jamais a proximidade compassiva às pessoas frágeis como a samaritana ou a mulher adúltera» (AL 38).
Um ponto fulcral na Amoris laetitia, segundo Antonio Spadaro, é o número 222, sobre o papel da consciência, que é «o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser» (GS 16). Esta tem um papel fundamental e insubstituível na avaliação moral do agir humano. O acompanhamento e o discernimento pastoral ajudam a inculturar e incorporar os princípios gerais da doutrina, de sorte que possam ser compreendidos, aplicáveis e praticados nas vidas concretas dos casais e das famílias.
Um ponto fulcral na Amoris laetitia, segundo Antonio Spadaro, é o número 222, sobre o papel da consciência, que é «o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser» (GS 16). Esta tem um papel fundamental e insubstituível na avaliação moral do agir humano.
Esta recuperação do ensinamento e da atitude pastoral do Concílio Vaticano II é, afinal, a grande novidade de Francisco. Austen Ivereigh compara mesmo o atual pontífice com o Papa João XXIII, reconhecendo que as oposições a Francisco e os medos que emergem hoje são em quase tudo idênticos às oposições e aos medos que se viveram na época do Concílio. Defende este autor que a Amoris laetitia vem na linha de Aparecida (2007) que considerava vivermos, não uma era de mudanças, mas uma autêntica mudança de era. Trata-se de uma transição para um mundo tecnocrata e globalizado, acompanhada por uma vasta dissolução dos laços de pertença. Esta perda de pertença a um corpo cria uma angústia generalizada e uma sensação de solidão na multidão que origina medos generalizados, provoca defesas afetivas e edifica barreiras culturais.
É verdade que a família, e ainda mais concretamente o matrimónio, é uma instituição social e inclusivamente económica, com funções claras nas diferentes sociedades, fundada na lei e na cultura. Mas é muito mais do que isto: é uma vocação, um chamamento de Deus, um desafio que requer luta, fidelidade e criatividade para se reinventar e até renascer e recomeçar sempre de novo (AL 124), e exige uma longa e diligente aprendizagem (AL 136). Por isso, a abertura à graça de Deus torna-se indispensável. Francisco move, assim, a ênfase da lei para a graça, do abstrato para o concreto, do ideal para o real.
Deste modo, a linguagem e a atitude da Igreja têm que sofrer uma radical reestruturação. Uma autêntica conversão. A abordagem meramente legal e canónica levou a uma Igreja que recorreu demasiadamente à lamentação e à condenação. Ivereigh sustém que o Papa Francisco atualiza a tríade ver-julgar-agir para uma atitude de contemplar-discernir-propor. Deste modo, a proposta de «formar consciências, não substituí-las» situa a Igreja entre o laxismo e o rigorismo e obriga-a a imiscuir-se no caos da realidade, tal como Deus faz na Encarnação.
Deste modo, a linguagem e a atitude da Igreja têm que sofrer uma radical reestruturação. Uma autêntica conversão. A abordagem meramente legal e canónica levou a uma Igreja que recorreu demasiadamente à lamentação e à condenação.
Esta centralidade da consciência no acompanhamento e no discernimento moral das situações concretas das pessoas é também partilhada por James F. Keenan. Para este autor, o Papa Francisco opera uma profunda mudança na autocompreensão da Igreja como um corpo eminentemente pastoral. Também para Keenan, o Papa bebe da fonte do Concílio Vaticano II e, através da insistência numa Igreja sinodal, tem-na realmente movido na direção de uma escuta profunda da realidade experiencial das pessoas e das famílias.
Sabemos que Francisco tem pago um preço alto por ser incompreendido e por levar a sério a encarnação na realidade local como lugar da revelação do amor de Deus. Seria mais fácil, mais objetivo e mais claro determinar uma regra universal que se aplicasse a todas as situações, sem qualquer nuance. Ele mesmo afirma: «Compreendo aqueles que preferem uma pastoral mais rígida, que não dê lugar a confusão alguma; mas creio sinceramente que Jesus Cristo quer uma Igreja atenta ao bem que o Espírito derrama no meio da fragilidade: uma Mãe que, ao mesmo tempo que expressa claramente a sua doutrina objetiva, “não renuncia ao bem possível, ainda que corra o risco de sujar-se com a lama da estrada”» (AL 308).
A esta atitude chamamos misericórdia. A disposição da mãe que sabe definir regras, mas que jamais deixa de estar próxima do filho que não as consegue cumprir. Porventura aproxima-se ainda mais daqueles que vivem na confusão, na ignorância ou na desordem. Misericórdia, afirma Keenan, é «a decisão de entrar livremente no caos de outra pessoa». E o sublinhar, quase obsessivamente, desta postura para a Igreja é, sem qualquer dúvida, uma novidade de Francisco.
Sabemos que Francisco tem pago um preço alto por ser incompreendido e por levar a sério a encarnação na realidade local como lugar da revelação do amor de Deus. Seria mais fácil, mais objetivo e mais claro determinar uma regra universal que se aplicasse a todas as situações, sem qualquer nuance.
O pensamento de Bergoglio
Jorge Mario Bergoglio revela, tanto ao nível da sua vida espiritual e pastoral como ao nível do seu pensamento, lidar bem com a tensão. O princípio de que «o tempo é superior ao espaço» (EG 222-225) é disso manifestação clara. Talvez uma maior atenção dedicada a este aspeto ajudasse a compreender algumas das suas opções teológico-pastorais. De facto, num dos seus escritos em que encontramos alguns incipientes passos da formulação deste princípio, Bergoglio afirmava: «A plenitude é a atração que Deus põe no coração de cada um de nós a fim de que nos dirijamos para aquilo que nos torna mais livres; o limite, que está sempre presente juntamente com a plenitude que nos atrai, empurra-nos, pelo contrário, para trás (…). A plenitude e o limite estão em tensão entre si. Nenhum dos dois deve ser negado. Nem um deve absorver o outro. Viver esta tensão contínua entre plenitude e limite favorece o caminho dos cidadãos». Esta tensão entre a plenitude e o limite é a tensão entre o tempo considerado em sentido amplo e o momento presente (EG 222).
A tentação é a de idealizar, a qualquer nível, uma vida sem tensões. Desejaríamos viver sem tensões intelectuais, sem tensões nas relações afetivas ou na vida quotidiana, sem tensões políticas ou sociais. Enfim, sem tensões interiores, espirituais ou morais. Mas não será o viver, precisamente, a arte de equilibrar-se nas tensões que compõem o tecido do tempo e do espaço que habitamos? Vivemos de oposições que, quando bem vividas, provocam crescimento, mesmo que, por vezes, entre dores e sofrimentos. Afirmava o Cardeal Bergoglio: «A oposição abre um caminho, uma estrada a percorrer. Falando de uma forma mais geral, devo dizer que amo as oposições (…) uma oposição polar em que os dois polos não se anulam. Nem um polo destrói o outro. Não existe contradição nem identidade (…). A tensão permanece, não se anula. Não se supera os limites negando-os. As oposições ajudam. A vida humana é estruturada de forma opositiva».
Olhando deste modo para a realidade, é compreensível que, para Francisco, «nem todas as discussões doutrinais, morais ou pastorais devem ser resolvidas através de intervenções magisteriais» (AL 3), e que afirme: «por pensar que tudo seja branco ou preto, às vezes fechamos o caminho da graça e do crescimento e desencorajamos percursos de santificação que dão glória a Deus» (AL 305).
Olhando deste modo para a realidade, é compreensível que, para Francisco, «nem todas as discussões doutrinais, morais ou pastorais devem ser resolvidas através de intervenções magisteriais» (AL 3), e que afirme: «por pensar que tudo seja branco ou preto, às vezes fechamos o caminho da graça e do crescimento e desencorajamos percursos de santificação que dão glória a Deus» (AL 305).
No discurso endereçado aos membros da comunidade da Civiltà Cattolica, em fevereiro de 2017, o Papa Francisco convidava os jesuítas e colaboradores a um pensamento desassossegado, incompleto e imaginativo. «Se quiserdes habitar pontes e fronteiras deveis ter uma mente e um coração desassossegados (…). Deveis ser escritores e jornalistas com um pensamento incompleto, ou seja, aberto e não fechado nem rígido. A vossa fé abra o vosso pensamento (…). Imaginação. A sabedoria do discernimento resgata a necessária ambiguidade da vida. Mas é preciso penetrar a ambiguidade, é necessário entrar nela, como fez o Senhor Jesus ao assumir a nossa carne».
Um pensamento incarnado na realidade e desenvolvido a partir dela, não deixando de apresentar o ideal, mas mantendo a tensão entre uma e outro, será percorrido ao longo deste livro. As diferentes perspetivas que aqui se apresentam tocarão vários aspetos suscitados pelo pensamento do Papa Francisco a partir da Amoris laetitia. A inquietude própria do teólogo, que o leva a um incessante desejo de penetrar o mistério, reconhecendo-se sempre num itinerário inacabado, convida a lutar com o texto, e a preocupação pastoral exige a abertura à concretude da experiência das famílias hodiernas.
Continuidade da doutrina e descontinuidade da práxis
Após a publicação da Amoris laetitia, houve quem questionasse a autoridade pontifícia do documento. Alguém chegou mesmo a sugerir que deveria ser interpretado como um documento de opinião pessoal de Mário Bergoglio e, como tal, passível de ser ou não acolhido pelos católicos como orientação para toda a Igreja. Alguns chegaram mesmo a questionar a ortodoxia da Exortação e a considerar que o documento contradiz a doutrina católica.
No entanto, o que encontramos na Amoris laetitia é, como usa ser o costume da Igreja ao longo dos séculos, o convite a identificar e discernir a diferença entre a continuidade dos princípios doutrinais e a descontinuidade própria de perspetivas ou expressões desses princípios, historicamente condicionados (Schönborn). Este é o procedimento natural da Igreja desde os seus inícios. Esta é precisamente a função que compete ao magistério vivo: interpretar atual e autenticamente a Palavra de Deus.
No capítulo intitulado Matrimónio: um percurso atribulado – da Igreja Primitiva a Francisco, eu mesmo tento demonstrar como a noção, a prática, a teologia e a pastoral matrimonial e familiar têm, de facto, sofrido inúmeras alterações desde os inícios da era cristã até ao pontificado de Francisco. Devemos a uma mentalidade relativamente recente a noção generalizada de que o casamento é uma instituição quase inalterável desde sempre. A história demonstra o contrário. A Igreja sempre soube adaptar as suas práticas – e mesmo a sua doutrina – às sucessivas épocas que a humanidade vai atravessando. Novas fases de vida geram novas etapas de crescimento nas sociedades e, naturalmente, trazem consigo novas questões, novos problemas, novos desafios.
A Igreja sempre soube adaptar as suas práticas – e mesmo a sua doutrina – às sucessivas épocas que a humanidade vai atravessando. Novas fases de vida geram novas etapas de crescimento nas sociedades e, naturalmente, trazem consigo novas questões, novos problemas, novos desafios.
Um pontificado que se resumisse a repetir o ensinamento dos Papas anteriores sofreria de grande infidelidade à tradição. A tradição da Igreja não se define pela repetição do que se afirmou e se fez antes, mas pelo encarnar do Evangelho nas diferentes culturas e nos sucessivos tempos da história. Conhecer a história, nomeadamente a história do matrimónio cristão, ajudará a relativizar o relativizável e a absolutizar só o que é absoluto nesta matéria. A Igreja sempre soube fazer esta distinção e o Papa Francisco, em total fidelidade à tradição, pede «encarecidamente que nos lembremos sempre de algo que ensina São Tomás de Aquino e aprendamos a assimilá-lo no discernimento pastoral: “Embora nos princípios gerais tenhamos o carácter necessário, todavia à medida que se abordam os casos particulares, aumenta a indeterminação (…). No âmbito da ação, a verdade ou a retidão prática não são iguais em todas as aplicações particulares, mas apenas nos princípios gerais; e, naqueles onde a retidão é idêntica nas próprias ações, esta não é igualmente conhecida por todos (…). Quanto mais se desce ao particular, tanto mais aumenta a indeterminação” (Summa theologiae I-II, q. 94, art. 4)» (AL 304).
Aliás, podemos mesmo ficar espantados com a continuidade, por exemplo, entre os ensinamentos de João Paulo II e de Francisco e, ao mesmo tempo, as suas distintas aplicações. Conor Kelly demonstra como Francisco faz um uso criativo e amplo da herança recebida de São João Paulo II. Para Kelly, há três elementos essenciais de continuidade entre os dois Papas: a atenção aos desafios da família no mundo atual; a resposta à questão da comunhão eucarística aos recasados; e como o ensinamento de ambos os Papas escava as suas raízes na teologia moral.
Embora a «pastoralidade da doutrina» se revelasse já nos «impulsos» e na preocupação pastoral de São João Paulo II, ela permaneceu apenas e essencialmente como inspiração e começo da ética e da teologia do Papa polaco. O seu apreço em geral pela vida familiar, mas a sua desconfiança da experiência concreta das famílias cristãs sujeitas às seduções do mundo, impediu que essa «pastoralidade da doutrina» calasse fundo e tivesse reais consequências nas suas reflexões teológicas e antropológicas.
Francisco, no entanto, herdando essa preocupação pastoral, afirma a impossibilidade de pregar o Evangelho sem ter em conta os seus recetores concretos. Deste modo expande o conceito de «pastoralidade da doutrina» e reconhece que «apresentámos um ideal teológico do matrimónio demasiado abstrato, construído quase artificialmente, distante da situação concreta e das possibilidades efetivas das famílias, tal como são» (AL 36). É o equilíbrio entre a doutrina e a escuta, entre o que a Igreja tem a dizer e o que deve ouvir da experiência das famílias que produz a nova hermenêutica do Papa Francisco. Como afirma o autor americano, «há, indiscutivelmente, uma mudança neste desenvolvimento, mas isso não significa que envolva uma rutura brusca com o passado. De facto, como revelam os traços comuns com os ensinamentos de João Paulo II sobre a família, as sementes para essa trajetória pastoral mais ampla já haviam sido lançadas à terra; Francisco é apenas o primeiro a demonstrar o quanto esses impulsos podem dar fruto quando a Igreja se compromete com a colheita». (nota 4)
É o equilíbrio entre a doutrina e a escuta, entre o que a Igreja tem a dizer e o que deve ouvir da experiência das famílias que produz a nova hermenêutica do Papa Francisco.
Philippe Bordeyne, embora reconheça esta continuidade, sublinha uma significativa diferença de abordagem entre os dois Papas. O ponto de partida de João Paulo II é a «pedagogia da Igreja» que deve assegurar que os fiéis cumprem a lei moral (FC 34). Francisco, pelo contrário, sublinha «uma gradualidade no exercício prudencial dos atos livres em sujeitos que não estão em condições de compreender, apreciar ou praticar plenamente as exigências objetivas da lei» (AL 295). Quer dizer, Bergoglio apoia-se numa antropologia moral que afirma que a graça de Deus torna realmente possível o cumprimento da lei, embora sempre dentro dos limites concretos de cada ser humano. Acompanhados eclesialmente, os fiéis podem desenvolver a prática das virtudes, assumindo a responsabilidade de se abrirem à graça e conscientemente caminharem em direção ao ideal. Bordeyne dá como exemplo claro desta perspetiva tomista assumida pelo Papa Francisco o capítulo sete da Amoris laetitia. Sendo um capítulo que se debruça sobre a educação dos filhos, é muito significativo que a palavra «lei» não surja uma única vez. A lente de Francisco é realmente tomista, pois oferece uma perspetiva de educação para a liberdade que se baseia no exercício de hábitos positivos e bons (virtudes) que, com a ajuda da graça de Deus, vai gerando uma orientação da vida para o bem.
Uma nova perspetiva antropológica
Um ponto fundamental nesta mudança de perspetiva, que tem alcance antropológico, é o conceito de «acompanhamento» desenvolvido na Amoris laetitia. Além de, na sua génese, se preocupar teologicamente com um novo equilíbrio entre misericórdia e verdade, doutrina e vida, consciência e norma, meta e caminho, a categoria «acompanhamento» não se resume, para Antonio Autiero, a uma estratégia pastoral. Pelas diferentes articulações que pode assumir, adquire um estatuto próprio de categoria de moral fundamental. «Parece-me poder sublinhar que, definindo um tal acompanhamento como “pastoral”, não será possível reduzi-lo a um conjunto de estratégias operativas, em certo sentido adaptadas a situações mutantes. Muito mais do que apenas pastoral, o acompanhamento e o discernimento de que fala a Amoris laetitia entram no terreno teórico do ponto de vista moral, trazendo consigo aquela densidade de conceitos e categorias que orientam o caminho de renovação da teologia moral, como fruto do Concílio Vaticano II, e que emprestam um novo rosto a toda a teologia» (nota 5).
Para Autiero, o discernimento e o acompanhamento, tal como os aborda a Amoris laetitia, têm uma incidência fundamental na teologia moral, mas abrangem muito mais do que esta área da teologia: «Em última análise, dão razão à ideia de que a Amoris laetitia constitui precisamente um ponto de viragem que vai muito além da teologia moral» (nota 6) .
De facto, o acompanhamento, num processo de discernimento, permite explicitar a relação entre a doutrina e a vida. Na linha do referido acima, mantém a tensão entre consciência pessoal e norma universal, entre misericórdia e verdade. Por isso, esta tensão tem relevância, não só na teologia moral, mas em todas as áreas da reflexão teológica.
De facto, o acompanhamento, num processo de discernimento, permite explicitar a relação entre a doutrina e a vida. Na linha do referido acima, mantém a tensão entre consciência pessoal e norma universal, entre misericórdia e verdade. Por isso, esta tensão tem relevância, não só na teologia moral, mas em todas as áreas da reflexão teológica.
Assim, o Papa faz uma distinção essencial para um correto modo de proceder segundo o Evangelho, que permite aproximar a atitude da Igreja da atitude de Cristo. Por um lado, reafirma o absoluto sentido de propor a norma abstrata, geral, pois esta transmite os princípios gerais que devem ser de orientação doutrinal para toda a Igreja. Mas, por outro lado, deve-se ter em atenção a vida concreta das pessoas que essa doutrina quer servir. Uma e outra não estão separadas. A doutrina separada da práxis pastoral concreta resume-se a um conjunto de pronunciamentos abstratos que alimentam uma atitude elitista e idealista separada da realidade. E, por seu lado, a situação particular não pode ser elevada à categoria de norma. «Isto não só geraria uma casuística insuportável, mas também colocaria em risco os valores que se devem preservar com particular cuidado» (AL 304).
Ou seja, fazer da situação concreta a norma, a lei, seria adotar um relativismo moral incessante. Mas fixar- -se na norma geral, ignorando a existência das situações concretas, seria impedir a abertura de cada pessoa à graça de Deus que vem ao nosso encontro precisamente através da realidade que vivemos, e não de uma situação ideal que não existe.
Evoque-se aqui o princípio de que a realidade é superior à ideia defendido pelo Papa Francisco na Evangelii gaudium, pois «a realidade simplesmente é, a ideia elabora-se» (EG 231). De facto, afirma o Pontífice, «a ideia desligada da realidade dá origem a idealismos e a nominalismos infelizes que, no máximo, classificam ou definem, mas não empenham» (EG 232). Ao contrário, o critério da superioridade da realidade sobre a ideia «impele-nos a por em prática a Palavra, a realizar obras de justiça e caridade nas quais se torne fecunda esta Palavra» (EG 233).
Subjacente ao exposto acima está uma distinção essencial, que a Igreja não pode ignorar sob pena de infidelidade ao Evangelho: em tudo se deve proceder à já acenada distinção entre o carácter objetivo da norma e a especificidade subjetiva da realidade. A justiça moral de uma ação particular inclui inseparavelmente a procura da norma objetiva e a sua aplicação à complexidade do caso concreto, subjetivo. Esta ponte é feita através da virtude da prudência, que dispõe o sujeito a discernir em cada circunstância qual o verdadeiro e justo bem.
Fazer da situação concreta a norma, a lei, seria adotar um relativismo moral incessante. Mas fixar- -se na norma geral, ignorando a existência das situações concretas, seria impedir a abertura de cada pessoa à graça de Deus que vem ao nosso encontro precisamente através da realidade que vivemos, e não de uma situação ideal que não existe.
Stella Morra vai ainda mais longe. Segundo esta teóloga, hoje, o nível da vida prática formula-se de um modo muito simples e, devido à queda das mediações ideológicas e culturais, as pessoas baseiam-se em saberes elementares para poder sobreviver. Ora, esta realidade esbarra com um nível de reflexão cada vez mais complexo e especializado que encontra dificuldade em ser utilizável no concreto. Por isso, é cada vez mais difícil – mas urgente – questionarmo-nos ao nível das antropologias. Propõe, assim, uma atenção realista às pessoas, às suas histórias e culturas, mas, ao mesmo tempo, aberta a um horizonte que permita ter o olhar atento para reconhecer aí a ação de Deus. Este deslocar do foco do exterior geral e universal para o interior da vida concreta das pessoas como ponto de partida da reflexão não representa uma cedência populista às culturas vigentes, mas uma opção determinada de antropologia teológica. As vidas e as histórias das pessoas concretas são, por excelência, o lugar teológico. É aí que Deus Se revela, fala e opera maravilhas.
Por isso, compete ao magistério, para lá da enunciação de uma doutrina clara e universal e de uma disciplina exclusivamente objetiva, a criação de condições linguísticas e pastorais que permitam a expressão da subjetividade de cada um: «É necessário que cada vida (nenhuma excluída!, mas todas: as que estão no caminho da santidade, as complexas e erróneas, as confusas e as “normais”, etc.) possa exprimir a sua própria contribuição para o reconhecimento da obra de Deus» (nota 7). Isto significa uma alteração radical de perspetiva em relação aos pronunciamentos magisteriais do passado.
Não se trata apenas de reconhecer (e ser condescendente com) a tensão entre objetivo e subjetivo, mas sim de assumir a contingência da vida subjetiva e prática como lugar privilegiado de observação e teorização. «Passa-se da centralidade da doutrina/disciplina – que se tornaria quase um fim em si mesma – para a centralidade da vida (ferida e amada por Deus), em relação à qual a doutrina e a disciplina são “só” instrumentos» (nota 8). Esta perspetiva implica também uma alteração de atitude teológico-magisterial. A escuta real da ação de Deus, expressa pelo sensus fidelium, obriga a que a doutrina não se desenvolva apenas num único sentido, «de cima para baixo», mas num «movimento circular» que proporcione que «as palavras da vida das pessoas desempenhem um papel real, de transformação e interpretação» (nota 9).
A escuta real da ação de Deus, expressa pelo sensus fidelium, obriga a que a doutrina não se desenvolva apenas num único sentido, «de cima para baixo», mas num «movimento circular» que proporcione que «as palavras da vida das pessoas desempenhem um papel real, de transformação e interpretação».
Stella Morra sublinha como a linguagem – e sabemo-lo bem, depois de Wittgenstein – é muito mais do que um conjunto organizado de palavras. É onde nos movemos e somos criados e nos recriamos. Jesus Cristo é o Verbo de Deus, é a Palavra do Pai. Somos criados à imagem e semelhança de um Deus que fala, de um Deus que profere a palavra criadora. Ser humano é encontrar, em conjunto com os outros, um modo de falar, uma linguagem, palavras. E há uma palavra – misericórdia – que este pontificado tem revelado ser uma autêntica «categoria geradora», uma nova forma da teologia cristã. O Papa Francisco usa esta palavra não apenas como uma característica poderosa de Deus; ela é a moldura única, só, dentro da qual toda a interpretação teológica da vida e do ser humano faz sentido. Misericórdia gera um movimento interior com repercussões exteriores que produzem emoção, ação, pensamento. Surge uma nova narrativa que organiza e perspetiva o mundo segundo a lógica da misericórdia. Só é possível compreender o pontificado de Francisco a partir desta leitura.
Não tenhais medo
O que há a temer? «Se Deus está por nós, quem pode estar contra nós?» (Rm 8, 31). Há uma visão antropologicamente benévola que atravessa a espiritualidade de Bergoglio. Neste aspeto, o Papa Francisco difere significativamente dos seus dois antecessores mais diretos. Já vimos como ele é genuinamente filho da tradição da Igreja que, nos tempos atuais, vai pondo em prática a teologia conciliar. Mas é verdade que vem na esteira de João XXIII e Paulo VI, mais do que de João Paulo II e Bento XVI. Mesmo que, como vimos acima, São João Paulo II – ou não fora ele um dos grandes defensores da nova linguagem personalista no Concílio – tenha aberto as portas para a proposta teológico-pastoral que o Papa Francisco apresenta na Exortação Apostólica Amoris laetitia.
A diferença entre Francisco, por um lado, e João Paulo II e Bento XVI por outro, verifica-se, como demonstra Andrea Grillo, na atitude em relação ao exercício da autoridade petrina. Enquanto estes seus antecessores tendiam a utilizar a sua autoridade para afirmar a impotência do magistério para alterar algum aspeto doutrinal, ou por vezes até mesmo pastoral, Francisco usa a autoridade pontifícia para a delegar em outras autoridades competentes (bispos locais) e, assim, iniciar, no tempo, processos inculturados localmente (AL 3). A primeira atitude pendia a encerrar debates, limitar a liberdade de expressão e esbater a discordância. A segunda promove o debate, a sinodalidade e a transformação do status quo.
Enquanto estes seus antecessores tendiam a utilizar a sua autoridade para afirmar a impotência do magistério para alterar algum aspeto doutrinal, ou por vezes até mesmo pastoral, Francisco usa a autoridade pontifícia para a delegar em outras autoridades competentes (bispos locais) e, assim, iniciar, no tempo, processos inculturados localmente (AL 3).
Andrea Grillo mostra como o Papa Francisco recupera o Concílio Vaticano II pelo modo como traduz a tradição. Esta é frágil e precisa de ser dinamizada, pois morre quando encerrada nos arquivos vaticanos sem se traduzir na vida dos fiéis. Para este teólogo, é bem patente como o jurídico defende a primazia do espaço sobre o tempo, ao passo que a solução teológico-pastoral de Bergoglio defende a primazia do tempo sobre o espaço. A dogmática canónica é estática; a dogmática teológica é dinâmica. A complexidade do matrimónio ficou refém do estilo apologético dos finais do século XIX e inícios do século XX, próprio do contexto contencioso da Igreja com o modernismo.
Como já defendera Bordeyne, Grillo sublinha a perspetiva tomista do Papa e questiona se o papel do direito canónico não será ter em conta as mediações perdidas, em vez de uma atitude de «tudo ou nada», «preto ou branco». De facto, São Tomás d’Aquino (visão que, como já vimos, Francisco recupera) tem em atenção a presença de diferentes mediações. Há um crescendum Natureza – Cidade – Igreja, que se perdeu com a atitude eclesial excessivamente canónica que tudo polariza em Deus e no ser humano. Esta polarização sem mediações impede a Igreja de se aproximar com relevância da vida concreta dos sujeitos, das suas consciências, das suas experiências vitais, dos seus corpos, das suas relações. Foi-se tornando uma Igreja desencarnada.
Andrea Grillo defende um urgente diálogo e uma elaboração dogmática, teológica e jurídica mais adequada, na qual a instituição e a norma jurídica se harmonizem melhor com a realidade, com a liberdade e a igualdade humanas. Tal como Stella Morra levantava a questão de uma nova antropologia que tivesse em conta todas as vidas humanas, Grillo questiona a visão canónica da relação entre objetivo (norma) e subjetivo (sujeito), afirmando que a realidade concreta da vida das pessoas é objetiva, e competirá ao direito canónico incorporar esta realidade.
De facto, abordar uma realidade como as relações humanas e afetivas em geral, ou o casamento em particular, com uma lente quase exclusivamente jurídico-canónica, produz a sensação de uma estabilidade institucional perdurada no tempo, no que se refere ao matrimónio, que é tudo menos verdade. Como se aludia acima, a dogmática canónica é estática e, ao olhar para o matrimónio a partir dessa perspetiva, parece que a instituição do matrimónio quase não sofreu alterações ao longo da história. Como referido atrás, ao comentar o capítulo da minha autoria, esta é uma perceção errada da realidade.
De facto, abordar uma realidade como as relações humanas e afetivas em geral, ou o casamento em particular, com uma lente quase exclusivamente jurídico-canónica, produz a sensação de uma estabilidade institucional perdurada no tempo, no que se refere ao matrimónio, que é tudo menos verdade.
Neste sentido, emerge com interesse a posição de alguns bispos diocesanos que publicam documentos orientadores ou cartas pastorais após a Amoris laetitia. O primeiro documento significativo foi publicado em setembro e é uma carta dos Bispos da Região Pastoral de Buenos Aires aos seus sacerdotes: Criterios básicos para la aplicación del capítulo VIII de Amoris laetitia (nota 10). Este documento ganhou relevância internacional, já que foi enviado pelos bispos argentinos ao Papa Francisco, que lhes respondeu pessoalmente, também em carta tornada pública e acessível a todos. Na sua resposta, o Papa não deixa margem para dúvidas: «O escrito é muito bom e explicita cabalmente o sentido do capítulo VIII de Amoris laetitia. Não há outras interpretações» (nota 11).
Pablo Guerrero Rodríguez explica bem os contornos desta carta dos Bispos argentinos, bem como da resposta do Papa Francisco à mesma. Lendo este capítulo, com uma tónica essencialmente pastoral, percebemos bem como o texto da Amoris laetitia é muito claro no que quer afirmar, e não cai no que alguns superficialmente acusam, de ser um texto algo confuso ou pouco explícito. Rodríguez convida-nos a reconhecer como o desejo por parte da Igreja de acompanhar as famílias mais frágeis não começa com Francisco, mas vem de trás. E sublinha a precisão com que a Amoris laetitia indica todos os componentes do percurso de acompanhamento e discernimento, desde as pessoas “candidatas” a este processo ao tipo de pastores que as podem acompanhar. Uma conversão que passe pela atenção personalizada às famílias concretas e que não se resuma, por um lado, a uma renovação superficial, ao sabor da moda do mundo, nem, por outro, à insistência em normas que, muitas vezes, não passam de fórmulas antigas cosmeticamente bem embrulhadas.
No fundo, o que os bispos argentinos propõem, num documento muito sucinto, é um conjunto de dez critérios para ajudar os sacerdotes e a comunidade da Igreja local a acolher o ensinamento da Amoris laetitia. Dão, assim, seguimento ao nº 300 que faz referência às «orientações do bispo» no que respeita a discernir o possível acesso aos sacramentos por parte de alguns divorciados em nova união.
O segredo de uma família feliz
Um livro como este sofreria de grande incompletude se se ficasse por uma abordagem interna do matrimónio ou da família. Como se as famílias fossem ilhas e se devessem preocupar, antes de mais nada e acima de tudo, com o seu próprio bem-estar social, económico ou mesmo espiritual. Essa não é, absolutamente, a visão cristã para as famílias: «Nenhuma família pode ser fecunda, se se concebe como demasiado diferente ou “separada”» (AL 182).
Jesus vem baralhar a conceção tradicional de família. São inúmeras as suas intervenções que obrigam a relativizar o conceito de família: «“Quem é a minha mãe e quem são os meus irmãos?”. E, indicando com a mão os discípulos, acrescentou: “Aí estão minha mãe e meus irmãos; pois, todo aquele que fizer a vontade de meu Pai que está no Céu, esse é que é meu irmão, minha irmã e minha mãe”» (Mt 12, 48-50).
Uma família que eduque a sua descendência e todos os seus elementos de acordo com princípios, práticas e costumes cristãos, mas que se fecha em si própria e não abre realmente as portas de casa, não escancara as portas dos seus corações, não partilha os seus bens com quem tem menos e não luta ativamente por um mundo mais justo, não é ainda uma família cristã.
De facto, a nova família instaurada pelo Reino de Deus anunciado por Jesus rasga as fronteiras dos laços sanguíneos e perverte o conceito tradicional de família. Uma família que eduque a sua descendência e todos os seus elementos de acordo com princípios, práticas e costumes cristãos, mas que se fecha em si própria e não abre realmente as portas de casa, não escancara as portas dos seus corações, não partilha os seus bens com quem tem menos e não luta ativamente por um mundo mais justo, não é ainda uma família cristã.
A Igreja enfrenta, como sempre, o grande desafio de tornar o Evangelho real nas famílias cristãs. De facto, o carácter mais distintivo de uma família cristã seria o de ter as portas abertas, especialmente aos que mais sofrem e menos têm. No entanto, temos que reconhecer que grande parte das famílias cristãs, especialmente as das classes média ou média-alta, tem insistido em promover os bons valores cristãos dentro da sua própria família, muitas vezes esquecendo ou negligenciando a abertura das mesmas aos mais pobres e periféricos da sociedade.
Correndo o risco de fazermos uma grande generalização – e as generalizações são sempre injustas –, a Igreja tem-se preocupado em promover uma formação forte na área da ética pessoal e da bioética (sexualidade, aborto, eutanásia…), mas não tem sido igualmente forte na área da ética social (partilha dos bens, justiça social…). Claro que as fronteiras entre ética pessoal e ética social não são estanques, e questões como o aborto ou a eutanásia pertencem a ambas as esferas. No entanto, apesar de uma tradição tão forte e tão rica no que respeita à doutrina social, a Igreja reconhece que as famílias cristãs, seja para se protegerem do “mundo”, seja para salvaguardarem os bens que produzem ou possuem para si e para os seus, são muitas vezes pouco sensíveis à partilha com os mais desfavorecidos.
Julie Hanlon Rubio vem precisamente sublinhar que, na riquíssima tradição da doutrina social da Igreja, as famílias são consideradas a meta e o sujeito da justiça social. O seu lugar é privilegiado na transformação desta nossa realidade num mundo mais justo. Segundo esta teóloga, educar, na perspetiva cristã, é promover e cultivar uma vida virtuosa e justa para que os bens sejam equilibradamente usados e justamente partilhados. Há uma obrigação moral para as famílias de educar os seus elementos na participação cívica, na vida pública, em instituições sociais e nas comunidades locais, tal como em casa: «A família não deve imaginar-se como um recinto fechado, procurando proteger-se da sociedade. Não fica à espera, mas sai de si mesma à procura de solidariedade. Assim transforma-se num lugar de integração da pessoa com a sociedade e num ponto de união entre o público e o privado» (AL 181).
Para Rubio, as famílias tornam-se cada vez mais elas próprias quando, no seu seio, o amor profundo de uns pelos outros os capacita para encarar o mundo, abrir-se às necessidades dos demais e transformar, assim, a realidade social. A sua missão não é serem perfeitas, mas serem o «hospital mais próximo» (AL 321).
Correndo o risco de fazermos uma grande generalização – e as generalizações são sempre injustas –, a Igreja tem-se preocupado em promover uma formação forte na área da ética pessoal e da bioética (sexualidade, aborto, eutanásia…), mas não tem sido igualmente forte na área da ética social (partilha dos bens, justiça social…).
A hospitalidade é uma das características mais fortes da cultura judaico-cristã e a Escritura adverte-nos: «Não vos esqueçais da hospitalidade, pois, graças a ela, alguns, sem o saberem, hospedaram anjos» (Hb 13, 2). Com estas ressonâncias bíblicas, Irene Guia sublinha que hospitalidade é a palavra certa. Tem que ocupar o espaço da «composição do lugar» das famílias cristãs, de modo a que o acolhimento do estrangeiro, do diferente, do mais débil seja o foco e o faça sentir-se, não uma visita, mas parte dessas mesmas famílias.
Recuperando a profunda sensibilidade do Papa Francisco, Irene Guia afirma que as famílias são o lugar mais natural – talvez o único – onde podemos ser totalmente nós próprios, onde nos podemos expor, onde a fragilidade e a vulnerabilidade não se escondem. O contexto familiar revela-se, assim, privilegiado para recuperar uma característica profundamente humana e que a sociedade parece ter esquecido: a capacidade de chorar pelo sofrimento dos outros. «Não podemos ser uma Igreja que não chora à vista destes dramas dos seus filhos jovens. Não devemos jamais habituar-nos a isto, porque, quem não sabe chorar, não é mãe (…). Se o pranto não te vem, pede ao Senhor que te conceda derramar lágrimas pelo sofrimento dos outros. Quando souberes chorar, então serás capaz de fazer algo, do fundo do coração, pelos outros» (Christus vivit, 75-76).
Diante do cenário do mundo atual, esmagados pela excessiva informação do sofrimento de tantos irmãos nossos, à nossa porta ou tentando atravessar mares de morte, não podemos cair no pecado da indiferença ou do medo. A pergunta que Deus faz a Caim é hoje feita a cada um de nós: «Onde está o teu irmão?» (Gn 4, 9). Que resposta daremos (e ensinaremos a dar) no seio das nossas famílias – pergunta-se Irene Guia –, nós que acreditamos em Cristo, o Filho Primogénito e irmão nosso?
Francisco descobre-nos o que, para ele, é o segredo de uma família feliz: «Pelo contrário, as famílias magnânimas e solidárias abrem espaço aos pobres, são capazes de tecer uma amizade com aqueles que estão a viver pior do que elas. Se realmente vivem o Evangelho, não podem esquecer o que diz Jesus: “Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes” (Mt 25, 40). Em última análise, vivem o que nos é pedido, de forma tão eloquente, neste texto: “Quando deres um almoço ou um jantar, não convides os teus amigos, nem os teus irmãos, nem os teus parentes, nem os teus vizinhos ricos; não vão eles também convidar-te, por sua vez, e assim retribuir-te. Quando deres um banquete, convida os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos. E serás feliz” (Lc 14, 12-14). Serás feliz! Aqui está o segredo duma família feliz» (AL 183).
1. Jorge M. Bergoglio, citado por Massimo Borghesi: Jorge Mario Bergoglio, As raízes do pensamento do Papa Francisco, (trad. Frei Ary E. Pintarelli, ofm), ed. Princípia, Cascais 2019, p. 157.
2. Spadaro, A., “Le orme di un pastore: Una conversazione con Papa Francesco”, in Bergoglio, J.M., Nei Tuoi Oos membros da comunidade da Civiltà Cattolica, in http://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2017/february/ documents/papa-francesco_20170209_comunita-civilta-cattolica.html acedido em 20-02-2020.
5. Ver p. 189 nesta obra
7. Ver p. 196 nesta obra
8. Ibidem.
9. Ver p. 197 nesta obra.
10. Pode encontrar-se em http://www.infocatolica.com/?t=ic&cod=27336 (acedido em 27-03-2020). 11 Pode encontrar-se em http://www.infocatolica.com/?t=ic&cod=27337 (acedido em 27-03-2020)cchi È La Mia Parola – Omelie e Discorsi di Buenos Aires (1999-2013), p. XIX. 3 Discurso do Papa Francisco a
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