Hoje é dia 25 de abril, o dia dos sonhos realizados de tanta gente, o dia em que as crianças subiram para cima de tanques que pararam no semáforo vermelho enquanto atravessavam as ruas de uma cidade que os esperava, de madrugada. Foi o dia em que um país que não fizera o maio de 68 e ainda não se vestia de cores garridas acordou para uma liberdade ruidosa, impetuosa, com fome de exageros depois de tantas décadas amordaçada, e por isso mesmo capaz de escorregar para extremismos mas também de aprender com os erros, acabando por nunca nos deixar ficar mal. Que saborosa a liberdade! Já para não falar dos cravos ou das músicas que acordaram o país, tantos símbolos com que se reiniciou a história de um povo e se foi consolidando uma democracia de que hoje nos orgulhamos. Foi mesmo bonita a festa, pá.
É bonita a partilha de sonhos de justiça. É comovedor deixarmo-nos inebriar por utopias, fingirmos por momentos que não reconhecemos a ingenuidade de certos slogans, mesmo quando a idade e a experiência já nos revelaram a complexidade de todas as coisas. Quando já conhecemos o peso morto da resistência de quem tem demasiado a perder com a mudança. Já sabemos que a natureza humana só poderá apaziguar a sua sede de poder e posse, se se deixar transfigurar por dentro, para assim poderem realmente mudar as estruturas que esmagam o oprimido sob as garras do opressor. Mas mesmo sabendo tudo isso, depois de décadas e décadas a ver o mundo a andar para a frente e depois de novo para trás, há quem não deixe de cantar canções de esperança. Como esta senhora, a maravilhosa Joan Baez, que desde a sua juventude nunca desilude, e ainda esta semana nos embalou com este Forever Young de Bob Dylan, numa ode aos heróis destes dias de pandemia e uma acusação intrépida contra os vilões de uma história que, nos Estados Unidos, deixa os mais pobres à porta do hospital. A sua voz já não atinge os agudos líricos que sempre a caracterizaram e ela admite-o com simplicidade, convidando quem a ouve a arriscar essas notas enquanto ela os acompanha mais abaixo, harmonizando num tom mais grave, com uma voz já rouca, já cansada. Acho lindo esse momento. Ela não para de cantar, continua sensível a todas as problemáticas e lutas humanas, não amargou, não se tornou cínica, só mudou de tom.
Joan fala da situação atual, em tempos de COVID-19, mas os males que a angustiam são muitos mais e ativam muitos outros cantautores. Músicas e vozes que, tal como tinha escrito Woody Guthrie na sua guitarra nos anos ’40, têm sido “máquinas capazes de matar o fascismo”. Em Portugal, reconhecemos essas vozes no Sérgio Godinho, no José Mário Branco e no inigualável Zeca, que foram a banda sonora da nossa revolução e das lutas clandestinas que a prepararam. Mas hoje prefiro partilhar convosco algumas outras, para não fazer uma playlist demasiado previsível neste dia, como a voz de Ani diFranco, que com uma eloquência que é só dela diz o que, por vezes, ninguém mais quer dizer. E hoje, 30 anos depois do início da sua carreira como cantautora independente, nos Estados Unidos, criadora da sua própria casa discográfica aos 18 anos, continua a pôr o dedo na ferida:
«And the mighty multinationals
Have monopolized the oxygen
So it’s as easy as breathing
For us all to participate
Yes they’re buying and selling
Off shares of air
And you know it’s all around you
But it’s hard to point and say “there”
So you just sit on your hands
And quietly contemplate»
Um pouco mais acima, no Canadá, também Bruce Cockburn passou décadas a usar a sua música como instrumento de denúncia e sensibilização. Sem medo, neste “Burn baby burn” aponta o dedo aos mercenários das guerras por falsas causas e acusa quem olha para o lado e finge não ver:
«Here it comes, the loaded gun
‘Must keep them Commies on the run’
You’d buy or bury everyone
For liberty and life and just plain fun»
Deste lado do Atlântico também Billy Bragg usou a guitarra como arma de denúncia da guerra, com a sua voz inconfundível de adolescente rebelde numa Inglaterra industrial. Nesta canção dá a palavra às gerações e gerações de vítimas invisíveis, os pequenos agricultores ou proletários a quem tanto foi sendo prometido e que quase nada conseguiram garantir para os seus filhos, porque outros interesses se sobrepunham:
«I was a miner
I was a Docker
I was a railway man
Between the wars
I raised a family
In times of austerity
With sweat at the foundry
Between the wars
I paid the union and as times got harder
I looked to the government to help the working man
But they brought prosperity down at the armory
We’re arming for peace, me boys
Between the wars”
Aqui mais perto, em Espanha, encontramos a voz vibrante de Silvia Perez Cruz a descrever a angústia de quem perdeu tudo o que tinha devido à leviandade de uns poucos, capazes de causar as avalanches económicas mais recentes. O videoclip em tons de anúncio de produtos de cosmética não combina com o teor da música, por isso escutem de olhos fechados…
https://www.youtube.com/watch?v=cOZTinqIGSg
Falemos agora do “por dentro” das canções. O ânimo de quem luta pela justiça, a nível social ou no anonimato da sua vida, nem sempre aguenta o embate das desilusões. Como não ter dúvidas se vale a pena, como não perder a força? Talvez ninguém tenha cantado essas nuvens tão bem como Simon e Garfunkle em “American Tune”:
«And I don’t know a soul who’s not been battered
I don’t have a friend who feels at ease
I don’t know a dream that’s not been shattered
or driven to its knees
But it’s all right, it’s all right
We’ve lived so well so long
Still, when I think of the road
we’re traveling on
I wonder what went wrong
I can’t help it,
I wonder what went wrong»
O que é que corre mal, o que é que estraga, tantas vezes, os sonhos e projetos de equidade, de justiça, de transformação social? Zapata, um revolucionário mexicano, inspirador de tantas lutas populares na América Latina, dizia que era a cadeira em que se sentavam aqueles que conquistavam o poder que os enfeitiçava e os transformava, de rebeldes em novos opressores. É mais complicado do que isso, o ser humano é um bicho levado da breca. Facilmente cria barreiras, estigmas, passa a olhar de lado, fecha-se ao diálogo, erige novos deuses, justifica novas opressões. Somos todos cúmplices deste novelo enrodilhado que é a História, em que o Reino de Deus parece não encontrar lugar. Pedro Guerra fala disso no seu hino contra o poder:
E mais uma vez Chico Buarque encontra as palavras e as notas para descrever a nossa mesquinhez, na história de Geni e o Zepellin, uma parábola que nos aperta o peito de tão bela e tão triste. Só o Chico para constar duas vezes numa playlist de 10 canções e não parecer demais.
Por fim, fechemos a lista com umas notas felizes, sem ingenuidade. Mesmo que não seja simples conseguirmos escolher o amor, aceitar o outro, derrubar barreiras, o certo é que a resiliência dos excluídos, dos que sofrem com as escolhas de quem pode escolher, nunca deixará de nos surpreender. Esta música, do recente projeto “Songs of our native daughters”, feito para honrar a memória das mulheres afrodescendentes nos Estados Unidos, descreve a dignidade dessa resistência de uma forma sublime:
And we’re dancing. And we’re dancing. 25 de abril sempre, sem medo de dançar para exorcizar o cinismo, para não desistir de acreditar.
Fotografia: © Júlio Reis I Wikimedia I Original aqui
A nossa leitora (e amiga) Concha Balcão reis colocou a playlist da Joana Rigato no Spotify, aqui fica
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.