A penitência estará toda na confissão/absolvição?

Contágio, perdão e renovação das formas da vida espiritual. Uma reflexão sobre o Sacramento da Penitência a partir dos desafios lançados à Igreja pela pandemia que atinge o mundo.

Contágio, perdão e renovação das formas da vida espiritual. Uma reflexão sobre o Sacramento da Penitência a partir dos desafios lançados à Igreja pela pandemia que atinge o mundo.

Nota Editorial: 
A atual pandemia tem suscitado diversas reflexões sobre a organização social e económica e sobre as respostas políticas mais acertadas neste contexto. Ao pensar-se a si mesma e ao pensar no modo como cada cristão assume a sua condição de batizado, a Igreja deve também refletir sobre o que está chamada a ser neste momento, concretamente como Igreja doméstica.

O teólogo italiano Andrea Grillo tem aprofundado o tema e suscitado o debate, convidando a questionar a forma como celebramos os sacramentos, as imagens de Igreja que cultivamos ou as formas como vivemos a fé. Sobretudo, convida a não preencher sofregamente o vazio que estamos a viver, mas que tiremos dele o fruto que nos poderá trazer,  também em termos de reconfiguração eclesial

Apresentamos hoje uma reflexão sobre o Sacramento da Penitência como uma ajuda a que este tempo seja para a Igreja um tempo verdadeiramente favorável e de questionamento.

O texto apresentado foi originalmente publicado no blog do autor.
Texto original em Italiano.


 

Como pôs justamente em evidência Giovanni Marcotullio, num texto recente, saído no sítio “Aleteia”, a discussão que a condição de quarentena abriu em torno da missa e das dificuldades [de a celebrar], não deve fazer esquecer outra questão quente que se abre em torno da “confissão sacramental”, das suas formas e das diversas soluções que são propostas para enfrentar os constrangimento ligados à condição de “pandemia”, com tudo o que significa em termos de distâncias, exclusões de contacto, cordão sanitário e normativas civis, também impostas a nível eclesial. A imagem que ilustra a abertura do artigo de Marcotullio fotografa bem uma das formas de “recepção” da novidade: um padre, sentado à distância devida, ao ar livre, numa espécie de parque, escuta a confissão de um penitente que está sentado dentro do seu automóvel. O carro transforma-se em confessionário, para um sacramento em versão “drive-in”. A criatividade pastoral não tem limites. Mas talvez valha a pena olhar para a questão de modo mais abrangente e geral. Estou convencido que também sobre este sacramento, tal como sobre a eucaristia, a “emergência vírus” irá permitir que emerja uma série de questões que dizem respeito ao próprio sentido do sacramento da penitência, senão mesmo ao seu “significado dogmático”. Tentemos interrogar a experiência, da forma mais desinibida que sejamos capazes.

 

 

a) A tradição deste sacramento e a “res” que quer assegurar

Um primeiro aspecto que não deve ser descurado é este: no sacramento da penitência sabemos que o contacto não pode ser contornado. A implicação do sujeito é notada num grau mais elevado do que na celebração eucarística. Trata-se de um dado relevante. Poderemos dizer que a “participação”, que na missa pode ser amplamente “passiva” –suporta tranquilamente o “directo em streaming”, mesmo nas formas mais impessoais –, na confissão não funciona. Devo ser pessoalmente envolvido, interpelado, solicitado, implicado. Para se realizar este sacramento em regime de quarentena devem-se encontrar “soluções” para o problema das distâncias impostas e do contágio a evitar. O lugar mais apartado e recolhido da Igreja, o confessionário, torna-se impraticável. Com a pandemia, poderemos dizer, portanto, que, se para a missa a lógica tridentina parece triunfar – missas privadas celebradas por padres sozinhos e assembleias que se tornam expectadoras mudas – para a confissão o próprio símbolo do sacramento é como que “profanado” pelas normas civis. Tal situação obriga a introduzir algumas variantes que podem ser pensadas em diferentes níveis. Tentemos considerar os principais.

 

b) O embaraço e as vias de saída: verdadeiras e falsas transgressões

Diante destas dificuldades, apresentam-se três caminhos através dos quais se procura responder à emergência:

b1) a primeira é simplesmente “técnica” e “funcional”: lugares arejados, luvas de vinil, distância de segurança, máscara obrigatória. Mudam alguns acidentes, mas a substância permanece inalterada.

b2) a segunda passa pelo recurso à “terceira forma” do sacramento, isto é, à confissão e absolvição na forma geral, que tem a vantagem de não implicar o contacto, mas tem a desvantagem de ser genérica e impessoal.

b3) a terceira proposta recorre ao tema clássico do “votum sacramentum”, segundo o qual, em circunstâncias excepcionais, pode-se superar a confissão específica dos pecados graves e ser reconciliados “in voto”, onde por “voto/desejo/propósito” se entende, não só a reconciliação desejada, mas, também, o propósito de confessar quanto antes e logo que possível os pecados graves.

Fica evidente como estas respostas expõem considerações diferentes das circunstâncias históricas e culturais dentro das quais, hoje, a Igreja se move. Mas há um elemento que congrega as três soluções: a consideração do sacramento que, no meu parecer, é simplista e demasiado “administrativa” e que resulta de uma leitura para a qual as fontes “canónicas” contribuem de forma excessiva, ao ponto de desviarem a atenção do centro pulsante do sacramento. Tentemos ver de que modo.

 

c) Reconsideração global do sacramento, em relação ao “fazer penitência” 

A norma que ressoa como pano de fundo de todas estas soluções é a enunciada pelo can. 960: ‘individualis et integra confessio atque absolutio unicum constituunt modum ordinarium quo fidelis peccati gravis sibi conscius cum Deo et Ecclesia reconciliatur’ [‘A confissão individual e íntegra e a absolvição constituem o único modo ordinário pelo qual o fiel, consciente do pecado grave, se reconcilia com Deus e com a Igreja’]. A esta definição do “modo ordinário” de administrar o sacramento seguem as excepções extraordinárias, devidas a impossibilidade física, moral ou a circunstâncias excepcionais, que permitam superar esta unicidade. Por isso, de per si, as três soluções indicadas são guiadas – pela positiva ou pela negativa – por esta definição. A solução b1) permanece plenamente no álveo da definição, apenas com subtilezas técnicas; b2) pode dispensar a confissão na íntegra e individual; b3) pode prescindir, seja da confissão, seja da absolvição.

 

O que verdadeiramente surpreende é que os recursos pastorais, num tempo como o que vivemos, com características tão excepcionais, se deixem condicionar de modo tão profundo por uma definição “incompleta” do sacramento.

 

O que verdadeiramente surpreende é que os recursos pastorais, num tempo como o que vivemos, com características tão excepcionais, se deixem condicionar de modo tão profundo por uma definição “incompleta” do sacramento. Digo incompleta, por exemplo, em relação à definição do CCC 1491 [‘O sacramento da Penitência é constituído pelo conjunto de três actos realizados pelo penitente e pela absolvição do sacerdote. Os actos do penitente são: o arrependimento, a confissão ou manifestação dos pecados ao sacerdote e o propósito de cumprir a reparação e as obras de reparação’]. De facto, é preciso reconhecer que o texto canónico, com uma linguagem que força a realidade, reduz o sacramento da penitência a “dois actos” (confissão e absolvição), deixando na sombra, como se fosse irrelevante, a elaboração da dor e da liberdade (isto é, a contrição e a penitência). Atendendo ao cânone, poderemos dizer que no sacramento na penitência não existe penitência. Porém, no tempo que vivemos, o que abunda é, precisamente, a penitência – alguma é mesmo imposta pela lei. Surpreende, por isso, que, enquanto se pensa em luvas de vinil, se pense também em como dispensar da confissão e mesmo da absolvição, mas não se trabalhe sobre dois pontos claros, evidentes e que são comuns a todos: a dor que não passa, que atemoriza e que paralisa e a resposta corpórea e espiritual da liberdade ao anúncio do perdão.

 

Com efeito, para usar uma definição tridentina, o que é confiado à Igreja com o sacramento da penitência é um “baptismo laborioso”. Mas, por que motivo, exactamente neste tempo de grandes elaborações da dor e das formas de vida, como este que estamos a viver, só nos ocupamos em organizar formalmente (e, talvez, também um pouco de modo formalista) “actos oficiais”?

 

As palavras da tradição bíblica, quaresmal, penitencial, ascética, monástica, orante, assumem, hoje, novo tom e tornam-se alimento incontornável.

 

d) Recursos inexplorados: a condição da vida em quarentena não será já fazer penitência?

Eis, pois, uma boa ocasião que este tempo de clausura nos oferece para voltar, com olhos novos, a este sacramento e ao seu contexto mais verdadeiro. Procuro fazê-lo, aqui, com uma série de 10 breves proposições. Dotadas, talvez, de uma certa provocação, espero que sejam capazes de mover as consciências e de abrir os olhos para a realidade.

 

d1) Na vida cristã, os sacramentos do perdão são o baptismo e a eucaristia. Através deles, fazemos a grande experiência do perdão que Deus reserva aos homens e às mulheres. É um dom gratuito que nos empenha e que nos põe à prova. Podemos viver a comunhão com Deus e com o próximo, podemos apreciar a alegria e a força, mas também podemos entrar em crise. Por isso, existem, não um, mas dois sacramentos para a crise.

 

d2) O pecado grave do baptizado e a doença grave do baptizado são os motivos da crise. Na contingência actual, é normal que, por causa da doença grave que contagia tantos dos nossos irmãos e irmãs, os doentes e aqueles que amamos e aos quais estamos ligados, vivam uma crise profunda, que também atinge a fé. A unção dos doentes e a penitência são os remédios com os quais a Igreja regressa ao baptismo e à eucaristia, como grandes experiências de perdão e de graça.

 

d3) A doença grave é uma “crise de fé sem culpa”. Não estamos habituados a pensar assim, nem a sentir a proximidade da Igreja àqueles que sofrem de doença grave, para que não desesperem. Por sua vez, a culpa grave é uma crise de fé ligada ao comportamento voluntário, escolhido intencionalmente pelo sujeito. Diante dele, a Igreja não apenas “anuncia o perdão” (absolvição) diante do pecado confessado (confissão), mas acompanha a elaboração pessoal da dor (contrição) e a estruturação da resposta da liberdade (penitência).

 

d4) Aquilo que é qualificador e específico do sacramento da penitência não é o anúncio do perdão, uma vez que este sacramento o partilha com o baptismo e a eucaristia. É, sim, o acompanhamento na elaboração pessoal da dor e na reestruturação do corpo, da mente e do espírito. Poderemos dizer que ao “dom do perdão” repetido e mutuado pelo baptismo, corresponde a elaboração do luto, da memória e da liberdade, específica do IV sacramento.

 

d5) Por isto mesmo, os antigos, muito antes de nós, sabiam que a “penitência” era mais uma virtude do que um sacramento e que o sacramento estava ao serviço da promoção e da articulação da virtude. Ser conscientes do perdão recebido pelo baptismo e continuamente renovado pela eucaristia permite superar até os pecados mais graves, se, a partir da renovação da palavra do perdão diante da palavra que confessa o pecado, aprendo, ao longo do tempo, a elaborar a dor e a reestruturar a minha liberdade.

 

d6) Eis, então, que, inesperadamente, poderemos compreender algo que estava escondido. Este nosso tempo, por si mesmo, já tem uma sua dupla estrutura penitencial, pronta e disponível a todos: o tempo quaresmal, para a tradição eclesial, e o tempo de quarentena, para a tradição civil, são formas comuns, poderemos dizer, públicas e comunitárias, de elaboração da dor e de reestruturação dos comportamentos.

 

d7) Na penitência antiga acontecia assim: depois de confessar os pecados, [quem os confessava] tornava-se penitente e entrava num “regime particular”, que implicava o trabalho, o tempo, a oração, os lugares da vida… Hoje, temos um tipo de “regime penitencial” que toca uma nação inteira. Como é que a Igreja não se apercebe? Por que motivo usa o velho armamentário que se deixa guiar por um direito canónico glaciar, inadequado e apagado, e não trabalha sobre a matéria viva das experiências expostas ao sem sentido e à superabundância de sentido que as palavras da tradição bíblica e espiritual sabem interpretar com tanta força? Por que motivo insistimos em usar “noções jurídicas”?

d8) O imaginário público procurou elaborar a condição actual. As palavras que emergem são clausura, quarentena, reclusão domiciliária. São três experiências de “pena” ou de “penitência”. Mas a lógica pública interpreta-as como “mal menor” em vista da saúde. E não é pouco. A grande tradição humana e cristã sabe que qualquer mudança implica sofrimento, custo, privação, dor. A reconsideração da existência à luz da quarentena é uma ocasião penitencial que não podemos ler apenas com um conceito de penitência reduzida ao sacramento e de sacramento deduzido à normativa canónica sobre ele. Seria pobreza cultural que não nutre ninguém. Na vida quotidiana, temos muito mais do que o sacramento já pronto: parece um paradoxo, mas é, precisamente, a nossa realidade de hoje, marcada pelo seu caracter excepcional.

 

d9) Desejo do sacramento? Seria este o desejo necessário? Exactamente neste tempo que vivemos, o desejo é posto profundamente à prova e podemos experimentar o “desejo de boa saúde” e o “desejo de um passeio” como coisas irrealizáveis; o desejo de plenitude e de paz, de confiança e de contacto assume formas concretas e tem necessidade de relações significativas. Um sacramento reduzido ao mecanismo relojoeiro “confissão/absolvição” torna-se desumano, se não se enraíza numa relação vital. Se ainda lhe juntamos luvas e máscara, corremos o risco de tratar a alma com competência asséptica, de modo extrínseco e frio. O desejo que convém não é o do sacramento, mas o do desejo de plenitude (eucaristia) e de mudança (penitência). Sim, passará pelo sacramento, mas passará sempre por aquilo que está além e aquém do sacramento, mesmo quando o restituímos à sua inteireza e não o reduzimos arbitrariamente ao instantâneo desumano da confessio/obsolutio.

 

d10) Trabalhar, hoje, o “fazer penitência” é uma ocasião favorável, com dois interlocutores diferentes. Quem trabalha, trabalha muito mais e em piores condições. Quem não trabalha tem tempos mais distendidos e novos problemas, não menos complicados. A eficiência está comprometida, ou por excesso ou por defeito. As palavras da tradição bíblica, quaresmal, penitencial, ascética, monástica, orante, assumem, hoje, novo tom e tornam-se alimento incontornável. Acompanhar esta releitura, além e aquém dos actos formais da confissão/absolvição, apresenta-se uma ocasião a não perder. Tornar o “preceito pascal” num “dom de elaboração do luto, da memória e da liberdade”, este parece ser o kairòs. Ou jogamos neste tabuleiro, com o melhor das nossas palavras, ou, então, com as mais nobres das intenções, forçaremos a tradição a tornar-se um grande museu.

 

Foto de destaque: Josh Applegate – Unsplash

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.