A nova comissão sobre o diaconado feminino e o futuro de uma tradição

Partindo da reabertura da Comissão sobre o diaconado feminino anunciada pelo Papa Francisco, Andrea Grillo reflete sobre o modo como a História e a Teologia Sistemática, o passado, o presente e o futuro, se articulam na tradição da Igreja.

Partindo da reabertura da Comissão sobre o diaconado feminino anunciada pelo Papa Francisco, Andrea Grillo reflete sobre o modo como a História e a Teologia Sistemática, o passado, o presente e o futuro, se articulam na tradição da Igreja.

Na experiência eclesial do dia a dia repete-se muitas vezes um lema, daqueles que emergem da amargura do senso comum, segundo o qual “Se queres fazer, faz, mas se não queres fazer, nomeia uma comissão”. Deve dizer-se, no entanto, que a memória histórica nos leva a refutar este lema. A história diz-nos, de facto, que Pio X fez uma comissão e, anos mais tarde, saiu dela o Codex Iuris Canonici [Código de Direito Canónico]; Pio XII fez outra comissão e saiu dela a Reforma litúrgica da Vigília Pascal e da Semana Santa. Também a Comissão sobre o Diaconado feminino, já convocada, entretanto parada, mas relançada pelo Sínodo para a Amazónia, pode ser um prenúncio não de renúncia e derrotismo, mas de profecia e reforma.

Estas considerações iniciais derivam, obviamente, de dois textos muito recentes, com os quais a Assembleia do Sínodo e o Papa Francisco se pronunciaram no passado sábado sobre o tema.

Leiamos em primeiro lugar o texto aprovado pelos padres sinodais, no n. 103:

“Nas muitas consultas realizadas na região amazónica, foi reconhecido e enfatizado o papel fundamental das mulheres religiosas e leigas na Igreja da Amazónia e nas suas comunidades, devido aos múltiplos serviços que prestam. Num grande número destas consultas, foi solicitado o diaconado permanente para a mulher. Consequentemente, o tema esteve também muito presente no Sínodo. Já em 2016, o Papa Francisco tinha criado uma “Comissão de Estudo sobre o Diaconado das Mulheres” que, como Comissão, chegou a um resultado parcial sobre a realidade do diaconado da mulher nos primeiros séculos da Igreja e sobre as suas implicações para hoje. Por isso, gostaríamos de partilhar as nossas experiências e reflexões com a Comissão e aguardar os seus resultados.”

O texto apresenta com precisão o “resultado parcial” de uma pesquisa, iniciada pela Comissão criada em 2016, que identifica bem a tarefa de estudar “como era a realidade do diaconado nos primeiros séculos e as suas implicações para hoje”. Esta relação entre os primeiros séculos e as implicações atuais parece-me extremamente importantes.

Vêm ao de cima, de um modo equilibrado, uma série de questões decisivas, que gostaria de apresentar brevemente e de forma ordenada:

a) A autoridade da Comissão

A nomeação de uma comissão de estudo é um ponto decisivo na relação entre o Magistério e a Teologia. O Magistério precisa da experiência dos teólogos, que numa Comissão oficial exercem um “Magistério da Cátedra Magistral” em benefício do “Magistério da Cátedra Pastoral”. Tomás de Aquino distinguiu, de facto, entre magisterium cathedrae pastoralis e magisterium cathedrae magistralis, referindo o primeiro aos bispos e o segundo aos teólogos. Isto significa que os teólogos e historiadores, chamados a fazer parte da Comissão, devem ser, ao mesmo tempo, pacientes e audazes. Têm a vantagem de não serem diretamente chamados a deliberar. Mas eles devem exercer ao máximo a sua autoridade limitada. Não devem  garantir simplesmente o status quo, mas sim imaginar o futuro e integrar a tradição. E é aqui que se abre a segunda questão.

b) Competência histórica e sistemática

A Comissão deve incluir tanto os historiadores como os teólogos sistemáticos. Porque a história é necessária, mas não é suficiente. Além da história, há também a necessidade de uma “sistemática aberta” que saiba pensar a tradição não só segundo o passado, mas também segundo o presente e o futuro. Já dizia Romano Guardini há 100 anos: “A história sempre nos diz apenas o que aconteceu. Mas o que deveria ser, só a teologia sistemática nos pode dizer”. Uma reflexão sobre o diaconado feminino não pode ser simplesmente histórica. Deve também ter um ponto de vista sistemático, perguntando-se abertamente e com parrésia o que o presente e o futuro exigem.

c) Nomeação e composição da comissão

Por último, há um terceiro ponto que tem de ser clarificado. A nomeação e a composição da Comissão são, evidentemente, da competência do Papa. Seria bom se, ao contrário da anterior Comissão, não se deixe a iniciativa àqueles que têm pouco interesse no bom andamento dos trabalhos. Se, de facto, ao lado dos historiadores, houver teólogos sistemáticos, sem imaginação nem paixão pelo futuro, amedrontados pela novidade e preocupados em assegurar a imobilidade do sistema, será fácil que também uma segunda Comissão enfrente o muro intransponível que ela própria terá construído à sua volta. Pretender que  seja o passado a dizer aquilo de que o presente e o futuro estão à espera é uma saída fácil que não leva a nenhum lado.

Os teólogos e historiadores, chamados a fazer parte da Comissão, devem ser, ao mesmo tempo, pacientes e audazes.

Às palavras dos Padres sinodais, que mencionei anteriormente, o Papa Francisco já respondeu indiretamente, dizendo, durante o discurso que encerrou a Assembleia sinodal:

“Vou reconvocar a Comissão de estudo do diaconado feminino e, quem sabe, abri-la a novos membros para continuar a estudar e averiguar a forma que assumia na Igreja primitiva o diaconado permanente “.

Assim, tudo fica mais claro: a Comissão não pode ser apenas histórica. A história pode falar-nos da autoridade que a mulher tinha no século V ou XI. Mas a autoridade da mulher mudou desde que o “papel público da mulher” se tornou para a Igreja um “sinal dos tempos”. Desde 1962 as coisas mudaram. Uma vez que, com a encíclica Pacem in terris, passámos a aceitar formalmente que o papel público da mulher seja para a Igreja um “sinal dos tempos”, do qual a Igreja pode e deve aprender. Todo o estudo sobre o passado não poderá substituir a novidade desta nova condição, inaugurada no século XIX e estabelecida durante décadas, pelo menos numa parte considerável do mundo. Agora, para a Comissão, trata-se de reconhecer esta novidade, aceitar a riqueza da autoridade pública feminina e admitir a mulher ao ministério ordenado, no nível do diaconado. Esta Comissão será então não o futuro de uma ilusão, mas a afirmação da tradição. De uma tradição capaz de reconhecer não só a autoridade do passado, mas também a do presente e do futuro. Como sempre aconteceu, quando a prudência do Espírito prevaleceu sobre o medo cego da novidade.

Nota: Originalmente publicado em Italiano no blog do autor: Come se non

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.