Uma recente entrevista ao jornal Público do famoso químico britânico Peter Atkins suscitou muitas leituras e discussões. Hesitei antes de ensaiar esta prosa por entender que a ideia da (pseudo)incompatibilidade entre ciência e religião é tipicamente mal tratada e a superficialidade da argumentação tende a não merecer grande consideração. Por outro lado, a adesão à temática encoraja um ensaio de esclarecimento. Acresce ainda que, sendo químico (positivamente marcado pelos competentes livros de Atkins) e crente católico romano, me encontro particularmente desperto para este assunto. Consciente de que a complexidade envolvida nesta problemática é enorme, arrisco alguns contrapontos em formato abreviado:
1. De que falamos quando dizemos ciência? Muitas das zonas nebulosas da conflitualidade estão em questões de partida, sobre o que entendemos com certas palavras e conceitos. A ciência, enquanto tentativa de explicação da realidade, apresenta caraterísticas e metodologias próprias, tendo vindo a assumir um papel social muito relevante nos nossos dias. São inúmeras e indiscutíveis as vantagens da empresa científica, mas (como a religião…) existem alguns exemplos de abuso ou mau uso da ciência e outros aspetos caricaturáveis do exercício científico. Notar que a ciência tem a si associados dois aspetos que são determinantes neste tema: a ciência não responde a todas as questões (responde a questões do tipo how? e não do tipo why?) e tem um caráter dinâmico (as verdades científicas são intrinsecamente provisórias).
2. De que falamos quando dizemos religião? Antes de clarificar um pouco a semântica religiosa, notar que quando falamos de transcendência usamos a palavra “Deus”, querendo referir-nos a “qualquer coisa” que é, contudo, intrinsecamente indizível. Pela sua própria natureza, a transcendência não é totalmente acessível (embora, para os crentes religiosos, relacionável) e é bom nunca perder esta noção. A religião não se confunde com a espiritualidade. Numa boa analogia, a espiritualidade é o vinho e a religião um copo por onde este se pode beber. Pode entender-se a religião como a projeção cultural de uma determinada espiritualidade, resultando num conjunto de adesões pessoais e comunitárias, incluindo ritualizações. E, embora o fenómeno religioso seja vasto e complexo, podemos ver a religião, no caso do cristianismo, por exemplo, como um palco para uma vivência de fé, isto é, de confiança numa transcendência que, contudo, se plasma na realidade (imanência). A religião não responde também a todas as perguntas e, em certo sentido, tem a sua metodologia. As perguntas do tipo how? (como evoluiu o homem?, por exemplo) não são o foco da religião nem os livros sagrados são os indicados para lhes dar resposta. A religião não se baseia no ato explicativo, como o entende e exercita a ciência, fitando-se, antes, no mistério do significado da existência.
A ciência não responde a todas as questões (responde a questões do tipo how? e não do tipo why?) e tem um caráter dinâmico (as verdades científicas são intrinsecamente provisórias).
3. Ciência e religião são tipicamente perspetiváveis numa quadratura de dinamismos: conflito, independência, diálogo e integração. Um dos vícios no olhar desta complexidade sistémica é tomar apenas um dos vidros desta janela, normalmente o polo de conflito. Ao longo da história e nos nossos dias, encontramos ainda algumas destas relações tensionais. Não há que escamotear que, apesar das sempre luzes e sombras que caraterizam as religiões, a ciência, na sua génese europeísta, deve muito à cosmovisão suportada pela tradição judaico-cristã, ideia assumida de forma consensual na História da ciência. Nos dias de hoje, a comunidade científica, constituída por indivíduos crentes e não crentes, tende a privilegiar o diálogo entre ciência e religião, sendo a posição de Atkins uma exceção em decrescimento.
4. Peter Atkins não se limita a caricaturar a religião e a teologia (um espaço importante para a racionalidade religiosa) mas, à boleia, acaba por pontapear a filosofia (“A filosofia e a teologia são ambas formas corruptas de entender o mundo”). Aqui quase me sinto no dever institucional de pedir desculpa aos meus colegas filósofos por tamanha desconsideração e indelicadeza, até porque entendo que a ciência cada vez mais deverá considerar as humanidades. Registo ainda o gesto quase edipiano de matança de “mãe”, já que a ciência, na mais elementar análise, deriva da chamada philosofia natural. Pergunto, também a mim mesmo, quando escorrego em menosprezos, se não estamos diante de soberba e falta de humildade intelectual.
Não há que escamotear que, apesar das sempre luzes e sombras que caraterizam as religiões, a ciência, na sua génese europeísta, deve muito à cosmovisão suportada pela tradição judaico-cristã, ideia assumida de forma consensual na História da ciência.
5. Convém referir que, do lado de muitas religiões e de muitas pessoas religiosas, existem práticas, posições e argumentações também elas nada coerentes nem facilitadoras do diálogo. Registam-se, em particular, as colocações que derivam das aproximações literalistas aos livros sagrados e os caminhos equívocos de um “deus-tapa-buracos”, com miopias semelhantes às de Atkins, no seu avesso: querer, com a malha da religião, pescar em mares da ciência. O fundamentalismo religioso, tal como o fundamentalismo cientificista, constituem a base desta (pseudo)incompatibilidade.
6. A colocação de não crença num Deus é uma possibilidade para qualquer ser humano. Ao longo da história do pensamento e felizmente de forma mais transparente no ambiente secular em que vivemos, o ateísmo resulta precisamente do livre pensamento. Mais ainda, o diálogo com a não crença é fundamental para os crentes, porque permite um confronto crítico do seu caminho e amplia o robustecimento das razões da sua fé. Acresce ainda que a fé é sempre terreno de risco para cada um dos crentes e, como bem diz Thomas Hálík, crença e não crença são dois olhares de diferentes ângulos sobre o mesmo mistério. Por tudo isto o diálogo é (como em tantos desafios da vida) o melhor caminho. Peter Atkins e estas posições rígidas sobre (pseudo)incompatibilidade não promovem este diálogo. E um dos fatores alavancadores deste ambiente pode bem inserir-se no famoso provérbio “pela boca morre o peixe”. A determinado momento da sua entrevista Atkins afirma: “Acho que a ciência simplifica as questões – não simplifica demasiado, apenas simplifica, mas não de uma forma perigosa.” Sabemos que a ciência se desenvolve precisamente na tensão entre a tentativa de “separar para simplificar” e a complexidade do real, mas esta posição fundamentalista de simplificação (que exclui outros olhares sem ‘óculos científicos’) é precisamente perigosa… e mata o diálogo! Os simplismos da ciência, como os da religião, ao abdicarem da complexidade inerente, bloqueiam, paradoxalmente, as pontes de diálogo.
7. O deus em que não acredita Peter Atkins é inacreditável: ainda bem que ele é não crente nesse deus e eu, com entusiasmo, acompanho-o nesse ‘ateísmo’.
Este artigo foi previamente publicado no jornal Público.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.