Era domingo à tarde quando entrei a conduzir na cidade de Liverpool. Tudo estava anormalmente calmo para uma das maiores cidades do Reino Unido. Certamente por ser domingo à tarde!? Não. Jogava-se um Everton-Liverpool àquela hora. Eu sabia. Durante os meses em que planeei a minha viagem de férias desse ano sonhei poder ir ver o MerseysideDerby, símbolo icónico do futebol inglês e europeu. Não consegui. Os bilhetes existentes no site do Everton esgotaram em menos de 24 horas. Tive pena. Mas fui a Liverpool na mesma. Depois de me instalar, apanhei um táxi para ir à eucaristia na catedral católica da cidade. O taxista era adepto do Everton e esperava uma vitória. Ficou triste com o empate. No fim da missa, apanho outro táxi para o alojamento, desta feita com um taxista adepto do Liverpool. Fiquei a saber que por causa do empate em casa do rival Everton a direção do Liverpool despediu o treinador Brendan Rodgers. Estava contente com isso. Queria agora o Mourinho, disse-me feliz, apesar do empate e do despedimento. Não foi o Mourinho treinar o Liverpool, mas veio o alemão Jürgen Klopp, que este sábado tentará ganhar a Liga do Campeões. Klopp, surpreendente para um alemão, é excêntrico, divertido, sociável e adepto do futebol espetáculo e de ataque. E a história, dos dois adeptos britânicos, ficou viva na minha memória…
Quem me conhece sabe que o futebol é um tema que me distrai das preocupações quotidianas e me faz vibrar. Sou olhanense e o clube da minha terra ocupa um lugar especial no meu coração, tal como o Futebol Clube do Porto, coisa que nunca escondo e que surpreende muitos algarvios, que não entendem esta inclinação clubística num homem do sul.
A paixão pelo futebol levou-me, mesmo, a comentar o tema num programa da Sport TV, chamado “O Último Terço”, onde com outros dois colegas sacerdotes – um benfiquista e outro sportinguista – debatíamos o que acontecia no campeonato nacional e em grandes jogos internacionais que envolviam os clubes portugueses.
Foi uma experiência muito positiva e que me fez perspetivar, de forma mais lúcida, tudo aquilo que diz respeito a esta modalidade desportiva. Sobretudo, fez-me refletir sobre os comentários e comentadores, papel que eu mesmo tive de assumir.
Na verdade, depois de cada jornada, de cada jogo, os canais de televisão e de rádio enchem-se de árbitros, adeptos, dirigentes, todos empolgados e de ânimos acesos para discutir jogadas, decisões, resultados das equipas ou a falta deles. Muito se diz, às vezes de forma cuidada e correta, outras com tudo menos educação e respeito. Apresenta-se esta modalidade, em variadas situações, pela forma como se comenta, apenas como um jogo de interesses, uma oportunidade para conluios e conspirações, uma charada, se assim podemos dizer, onde a verdade desportiva, resultante do confronto de jogadores capazes e de treinadores tecnicamente hábeis, nada interessa nem parece produzir resultados.
“O espírito desportivo, esse que tanto se defende e se deseja, parece não ter qualquer relevância no que toca ao futebol. Pelo menos, na boca dos comentadores. E são horas e horas esquecidas de televisão e de sabedoria inflamada, que rendem milhares em publicidade, porque, sim, têm audiências elevadas”
. E acabadas as mesmas, todos parecem continuar amigos, gerindo uma paz estranha e podre, onde todos se insultam, mas sorriem cinicamente no fim de cada tirada, na conclusão de cada emissão. E esta imagem perpetua-se nas atitudes dos dirigentes e treinadores, que também se agridem verbalmente, sem qualquer pejo.
Aliás, nos últimos tempos (e em particular no nosso país), temos assistido a episódios tristíssimos que nos fazem cada vez mais questionar o que é o futebol e quais os valores que o suportam.
Esta modalidade, que era feita de glórias amadoras ou de carreiras feitas num clube que era a casa do coração – vejam-se casos como o do grande Eusébio, que nunca deixou o Benfica (nem depois de deixar de jogar), por ser esse “o seu clube” – passou a ser um comércio puro e duro de pessoas que são tidas como “ativos”. Não é mais do que um balanço de receitas de jogos e publicidade, de prémios e verbas provenientes das várias competições onde os clubes participam. É um apuramento de rendimentos provenientes da gestão das imagens e das carreiras, onde o dinheiro tudo determina, motivando as vontades quer de se ser dirigente, quer de se decidir enquanto tal, pois é o dinheiro e a sua gestão que dão notoriedade e o futebol tem muito de jogo de vaidades e de egos e protagonismos…
Tudo isto CANSA! É esse o sentimento que tenho. É muito chato não poder desfrutar do prazer simples e absolutamente fantástico de ver um jogo com empenhamento e amor ao desporto. É absolutamente chato não saber que umas vezes se vence outras não, porque um jogo é isso mesmo. É muito mais chato não se ser elegante, superior, desportista na hora em que as coisas correm menos bem e é muito chato não saber reconhecer os próprios erros e limitações. E hoje, creio que a situação é somente esta: não se sabe ser e estar no futebol, porque não se sabe o que é o futebol.
Apesar de ter estado do lado de lá, enquanto comentador, via nos outros que comigo comentavam e, em mim próprio, uma preocupação em deixar algo de positivo e quase que, atrevo-me a dizer, de pedagógico aos telespetadores, de modo a que pudessem ver o desporto como uma forma de cultivar o corpo, de desenvolver a sociabilidade e o espírito de partilha, bem como o respeito pelas diferenças. Sou amigo de todos os que, sendo adeptos de clubes diferentes, comentaram comigo. Sou amigo porque entendo e valorizo a capacidade de entrega e paixão de um adepto que genuinamente defende as cores da sua equipa e quer que ela ganhe. É um sentimento válido. Só deixa de o ser se servir para agredir, para ferir a dignidade do outro, para o diminuir e, infelizmente, é muito isso que se vê nos comentários, nos jogos, nos comportamentos das massas associativas e dos dirigentes.
Gosto verdadeiramente de futebol, já o disse. Como muitas crianças por esse mundo fora, cresci a brincar com a bola, a admirar os grandes jogadores de clubes nacionais e estrangeiros, sonhando vê-los a criar emoções em todos os adeptos e amantes do desporto. Cresci com o amor à camisola dos meus clubes e da minha seleção. Sempre acreditei que o futebol podia e devia ser um jogo de honra, no verdadeiro sentido da palavra, porque isso implicaria RESPEITO e o respeito – palavra que usei muito neste texto, mas conscientemente, pois acredito que é só isso que está em causa – permite admirar o outro na vitória e celebrar sem o ferir nas derrotas. Porque essa é a única ética necessária a quem ama o futebol.
Espero que não tenha sido por causa da tragédia de HeyselPark em 1985, mas admiro o desportivismo da genuína cultura futebolística inglesa. Sei que no próximo domingo, em diferentes pontos geográficos, eu e os dois taxistas de Liverpool vamos estar a torcer para que o Liverpool FC ganhe a Liga dos Campeões. Eles mais próximos entre eles. Eu mais distante. Mas unidos pelo mesmo amor ao futebol, bem jogado e disputado com lealdade, dentro e fora do campo.
Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.