Pode parecer estranho continuar a falar de Advento, de preparação, de espera por um nascimento, quando tudo à nossa volta parece estar já a antecipar a celebração: concertos, espectáculos, decorações, jantares de natal, a azáfama dos presentes… Quase nos faz sentir a viver já o Natal de tal forma que, ao chegarmos ao seu tempo propriamente dito, corremos o risco de já estar “fartos” de tanta “natalicidade”. Talvez resida nesta experiência o sintoma que nos aponta a solução: talvez o segredo esteja num reaprender a viver a espera.
Viver esta espera significa aprender a valorizar o presente, a viver numa atitude de gratidão por tanto bem recebido, sem ter o coração ou o pensamento saudosamente presos ao passado, nem ansiosamente fixos no futuro. Trata-se de uma sabedoria interior, daquela que o salmista fala ao cantar «Ensinai-nos a contar os nossos dias, / Para chegarmos à sabedoria do coração»: viver agradecido o hoje, porque o ontem já não existe e o amanhã ainda está para vir.
Esta semana, precisamente com a aproximação ao Natal, proponho duas peças corais ao estilo de Christmas Carols (Canções de Natal): ambas com textos que atravessam gerações e que acabam por assumir a religiosidade e a visão do mundo das suas culturas.
A primeira peça reflecte precisamente o episódio da vida de São José que a Igreja nos propõe este Domingo (Mt 1, 18-23): Joseph est bien marié, de Marc-Antoine Charpentier (França, 1643-1704). Neste homem podemos reconhecer um modelo de espera e da confiança na promessa de Deus. Ele tinha todas as razões para duvidar, para se recusar a acreditar na palavra e na fidelidade de Maria. Ainda assim, confiou contra toda a razão, esperou contra toda a esperança.
Apesar de muito provavelmente não ser da autoria de Charpentier – o texto seguramente não será! – esta peça tornou-se célebre por ter sido incorporada na sua Messe de Minuit pour Nöel (c. 1690), sendo usada como mote e tema do Kyrie. Com características muito barrocas, quer na harmonia, quer na própria estrutura – que aos nossos ouvidos modernos poderão soar a uma mistura de extravagante festividade –, a música adorna de maneira efusiva o que o texto relata, usando um tema muito pouco comum, desde logo pelo foco no esposo de Maria: «José está bem casado / com a filha de Jessé: / Foi algo verdadeiramente novo / Ser mãe e virgem. / Deus agiu: José está bem casado!». Vale bem a pena escutar este chant de Nöel, deixando-nos interpelar pelo seu inesperado tema.
Bem diferente deste tema é aquele que proponho em segundo lugar: Tomorrow shall be my dancing day (tradicional inglês). O primeiro registo deste Christmas Carol surge na colectânea de William Sandys, Christmas Carols Ancient and Modern (1833), mas a estrutura do poema tem traços da lírica medieval, evidenciando a sua antiguidade. Trata-se de um texto igualmente incomum: o Amante fala do Seu Amor, isto é, a Segunda Pessoa da Trindade fala da Sua própria incarnação. A primeira estrofe – à qual chamo especial atenção, neste tempo de Advento – revela a ternura de um Deus que anseia e anuncia a sua chegada: «Amanhã será o dia da Minha dança» em que poderei chamar o Meu «verdadeiro amor para a Minha dança».
Santo Inácio, nos Exercícios Espirituais, propõe a contemplação da Encarnação, na qual se contempla como Deus, vendo os homens e as suas misérias, decide fazer-Se como eles. Inspirados por Inácio, podemos escutar esta peça, na belíssima versão de John Rutter (Inglaterra, 1945), cantada apenas por vozes brancas, sentindo-a como dirigida a cada um de nós, convidados a tomar parte desta dança.
O Natal está quase aí: não desistamos de preparar esta chegada! Bom Domingo!
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.