O mistério da encarnação, que João relata no Prólogo do seu Evangelho e que a liturgia de Natal nos faz escutar durante a missa do dia 25 de Dezembro, fascinou profundamente Santo Inácio de Loiola. De facto, depois de ser ordenado padre, o fundador da Companhia de Jesus esperou cerca de um ano para celebrar a sua primeira missa. E toda essa espera só para fazer coincidir a sua primeira Eucaristia com o dia do nascimento de Cristo.
Sempre me tocou especialmente este elo, fundamental na experiência de Inácio, entre o Natal e a Missa. Enquanto que, no Natal, Deus encarna assumindo a nossa natureza humana, na Missa atualiza-se o sacrifício de Cristo na cruz. Mesmo se a Missa parece centrar-se mais explicitamente na Páscoa, convém esclarecer que Deus encarna em Jesus, qual pão eucarístico, recebido como um dom. Eis a celebração de um Deus que tem sede do nosso amor e que, movido por tal desejo, vem ao nosso encontro.
Talvez, este elo entre o Natal e a Páscoa nos passe hoje despercebido. De facto, quando contemplamos a sagrada família nos nossos belos presépios tendemos a não reparar na cruz que lá se encontra. Mas, nos seus Exercícios Espirituais, ao chegar o momento da natividade de Cristo, Santo Inácio leva-nos a contemplar o presépio com a “cruz” (Exercícios Espirituais 116). Trata-se de “observar” como José e Maria, prestes a dar à luz, caminham até ao local onde o Senhor vai nascer “em suma pobreza.” Assim, ao contemplar o presépio, acabamos por sentir os mesmos sentimentos da sagrada família: a “fome”, a “sede”, o “frio” e a rejeição de todos aqueles que lhes fecharam as portas. E aí percebemos (não no intelecto, mas na afetividade da nossa própria carne) como o presépio, por mais belo que seja, carrega já a cruz.
Por vezes, no meio da azáfama desta época festiva, podemos não ser capazes de contemplar a natividade com os olhos de um Santo Inácio. Bem sei que é belo (e também gosto) percorrer as ruas iluminadas deste tempo, ouvir ou cantar as músicas de natal, capazes de nos transportar aos belos momentos da nossa infância passada, saborear os doces típicos dos nossos países e culturas, rever familiares, partilhar presentes… Mas que a cultura consumista não nos faça perder de vista a cruz que também nasce com o presépio. Deus não se fez apenas homem como nós: Ele nasceu profunda e radicalmente pobre. É, portanto, com os mais pobres, com os mais abandonados deste mundo, que o Deus-menino se identifica.
É importante afirmá-lo, sobretudo para quem se sente hoje só e rejeitado. É para essas pessoas que o natal é duro de viver, sobretudo quando o mundo em redor parece querer nos obrigar a estar alegres nesta época festiva.
Ao contemplar a sagrada família, tal como Santo Inácio sugere nos Exercícios, detemo-nos um pouco no momento anterior à alegria dos pastores ou à vinda dos reis magos com os seus presentes. E, assim, vislumbramos, com os olhos do coração, um casal pobre e rejeitado, mas unido no amor por Jesus. Eles vivem o essencial, invisível aos olhos do mundo consumista. Trata-se da comunhão com o Deus-menino e da fraternidade que a Sua presença inaugura entre nós. A sagrada família só pode ser para nós um modelo no amor vivido.
Para todos aqueles que não se sentem suficientemente amados em suas vias, o presépio anuncia-lhes hoje o maior presente de natal que alguém jamais poderá receber.
Para todos aqueles que não se sentem suficientemente amados em suas vias, o presépio anuncia-lhes hoje o maior presente de natal que alguém jamais poderá receber. Esse presente é Deus que nos dá, ao se fazer Ele próprio presente no meio de nós. Não é Ele Emmanuel, o Deus-connosco?
É claro que a contemplação do presépio estimula em nós a capacidade de acolher, sobretudo os mais pobres deste mundo. E esse espírito de solidariedade não pode ser esquecido, sobretudo durante as festividades natalícias. Mas é também fundamental acolher o próprio Deus que nos ama e que se oferece por nós em cada Eucaristia.
No parágrafo 116 dos Exercícios, Santo Inácio não se limita apenas a anunciar a cruz ligada à natividade de Cristo: ele acrescenta “e tudo isto por mim”. A contemplação do presépio constitui, assim, um meio para nos deixarmos tocar pelo amor de Deus, que se entrega por cada um de nós. Dediquemos, então, um pouco de tempo a rezar o presépio, sem ocultar a cruz que lhe é própria. Deixemos Jesus nascer também nos nossos corações, sem medo de tornar santo o nosso natal
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.