1. Como mel para a boca
Neste vídeo delirante, mas muito sério, Dalí fala-nos da paranóia e de como, na sua obsessão por captar intenções ocultas nos que os rodeiam, os paranóicos podem aproximar-se dos místicos.
A conversa deriva então para a sua própria visão mística da realidade, expressada nos seus famosos «relógios moles». Moles como um queijo Camembert, explica o pintor, que acaba por se apoiar em Santo Agostinho para afirmar que Jesus é… «uma montanha de queijo»!
* O vídeo está em francês, mas vale a pena o esforço de tentar seguir-lhe o raciocínio… *
Eis um bom aperitivo, antes de nos lançarmos ao quadro do pintor sobre a Ascensão de Jesus.
2. Um texto bíblico
Na passada quinta-feira (ou hoje, em alguns países, como Portugal), os cristãos do Ocidente celebraram a festa da Ascensão, recordando o que aconteceu 40 dias depois da Ressurreição. O relato deste episódio bíblico encontra-se nos Atos dos Apóstolos.
«No meu primeiro livro, ó Teófilo, narrei as obras e os ensinamentos de Jesus, desde o princípio até ao dia em que, depois de ter dado, pelo Espírito Santo, as suas instruções aos Apóstolos que escolhera, foi arrebatado ao Céu.
A eles também apareceu vivo depois da sua paixão e deu-lhes disso numerosas provas com as suas aparições, durante quarenta dias, e falando-lhes também a respeito do Reino de Deus.
No decurso de uma refeição que partilhava com eles, ordenou-lhes que não se afastassem de Jerusalém, mas que esperassem lá o Prometido do Pai, “do qual – disse Ele – me ouvistes falar. João baptizava em água, mas, dentro de pouco tempo, vós sereis baptizados no Espírito Santo.”
Estavam todos reunidos, quando lhe perguntaram: “Senhor, é agora que vais restaurar o Reino de Israel?” Respondeu-lhes: “Não vos compete saber os tempos nem os momentos que o Pai fixou com a sua autoridade. Mas ides receber uma força, a do Espírito Santo, que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria e até aos confins do mundo.”
Dito isto, elevou-se à vista deles e uma nuvem subtraiu-o a seus olhos. E como estavam com os olhos fixos no céu, para onde Jesus se afastava, surgiram de repente dois homens vestidos de branco, que lhes disseram: “Homens da Galileia, porque estais assim a olhar para o céu? Esse Jesus que vos foi arrebatado para o Céu virá da mesma maneira, como agora o vistes partir para o Céu.”
Desceram, então, do monte chamado das Oliveiras, situado perto de Jerusalém, à distância de uma caminhada de sábado, e foram para Jerusalém. Quando chegaram à cidade, subiram para a sala de cima, no lugar onde se encontravam habitualmente.
Estavam lá: Pedro, João, Tiago, André, Filipe, Tomé, Bartolomeu, Mateus, Tiago, filho de Alfeu, Simão, o Zelota, e Judas, filho de Tiago.
E todos unidos pelo mesmo sentimento, entregavam-se assiduamente à oração, com algumas mulheres, entre as quais Maria, mãe de Jesus, e com os irmãos de Jesus.»
Act 1, 1-14
3. O esclarecimento
Esta semana, Sixtine Vié oferece-nos um comentário muito claro sobre um quadro complexo:
Quando Dalí, com tendência para o misticismo, representa a Ascensão de Cristo, mostra Cristo em estado de levitação sobre o observador – testemunho do «período místico nuclear» do pintor (que surge como consequência das explosões de Hiroshima e Nagasaki) e fruto de um «sonho cósmico» que teve lugar alguns anos antes.
| Que elementos a ter em conta? |
- O Cristo, do qual não vemos a face, eleva-se na posição de crucificado, em direcção a um núcleo atómico, composto de partículas aglomeradas, ou um sol, representando o seu espírito unificador.
- A linha do horizonte, muito baixa, faz surgir uma paisagem marítima, provavelmente Port Lligat, onde viveu o artista.
- No cimo do quadro, a Virgem Maria, representada pela figura de Gala, a musa do pintor, chora a Paixão do seu Filho, à maneira das Virgens flamengas.
- Mesmo por baixo dela está o Espírito Santo em forma de pomba. As suas asas abertas lançam raios que parecem desenhar o caminho que leva Cristo para o espaço celeste.
A passagem do espaço marítimo ao espaço celeste entre a base e o topo do quadro simboliza o espaço de Páscoa, que é uma travessia (do mar Vermelho, pelo povo hebreu, e da morte, pelo Messias) em direção à Luz indestrutível do Reino de Deus, no qual Cristo introduz a humanidade pela sua Ressurreição e Ascensão.
| Para concluir |
Este quadro é um concentrado de simbolismo. Podemos apreciar o seu estilo virtuoso ou não, mas ele convida a descobrir a profundidade do acontecimento da Ascensão e a sua ligação com todos os acontecimentos que a precederam:
O acesso à glória do Céu, que a Ascensão nos faz esperar, não é possível senão após a passagem pelo mar das dores da Paixão.
4. Uma palavra final
«E naturalmente, se tivesse sido apenas Dalí a dizer que Jesus era um queijo, isso não seria aceite. Mas tendo sido Santo Agostinho, então somos forçados a dizer que não é assim tão louco ou paranóico».
(Salvador Dalí, 1961)
E, na verdade, a citação de Dalí está correcta. Se tiver vontade de o verificar, pode fazê-lo em:
Agostinho, Enarrationes in Psalmos, Salmo 67, parágrafo 22 (versão francesa)
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
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