A Aparição e o religioso no cinema

Partindo de uma crítica de um filme que esteve recentemente em exibição, Carlos Capucho leva-nos a questionar a importância do religioso na história do cinema. É esta a proposta cultural da Brotéria para este sábado.

Partindo de uma crítica de um filme que esteve recentemente em exibição, Carlos Capucho leva-nos a questionar a importância do religioso na história do cinema. É esta a proposta cultural da Brotéria para este sábado.

Breve Sinopse:

Jacques Mayano é um renomado repórter que regressa duplamente traumatizado de um trabalho no Médio Oriente: pelos efeitos físicos da explosão de uma bomba, e da morte, no mesmo acidente de guerra, de um camarada de profissão de quem era próximo. É nessa situação – em que se encontra de baixa, muito afectado psicologicamente – que é procurado pela Santa Sé para levar a cabo uma investigação canónica, através dos instrumentos da investigação jornalística, para o acompanhamento e avaliação, in loco, dos elementos relacionados a uma suposta aparição da Virgem Maria a uma jovem vidente. O núcleo da acção situa-se numa cidade rural de França.

 

Nota Crítica

Uma pesquisa cuidada, mas não exaustiva, recolha que empreendi e que se vai actualizando, referendou, na História do Cinema – desde 1898 a 2018 – a existência de cerca de 250 filmes de temática religiosa. Desde os primeiros momentos após o aparecimento do cinematógrafo uma miríade de filmes constituiu um ponto de atracção dos produtores que correspondiam a um interesse do público por esses temas. Assim, e a título de exemplo, os dois Testamentos da Bíblia (como atesta o filme mudo de Cecil B. DeMille, Os Dez Mandamentos [1923]); os primeiros cristãos no império romano (de que a mais conhecida é a versão muda de Ben Hur [Fred Niblo, 1925] ); a temática das aparições (O Milagre de Fátima, de 1926, de um realizador anónimo); ou as biografias de santos.

E pelo século XX fora, e agora no século XXI, a temática religiosa permanece no cinema, seja em abordagens fortemente catequéticas ou hagiográficas (quantas vezes desprovidas de qualidade cinematográfica) ou em obras de carácter crítico.

Carlos Capucho

Se tivermos em conta que uma parte substancial da produção primeva se perdeu porque existia em suporte facilmente combustível ou transformado para obter, durante a Grande Guerra, produto rentável à indústria de material de guerra, aquele número inicial de produções de matriz religiosa seria muito superior. Pelo interesse que esta temática despertou, é normal que, logo em 1898, na Alemanha se tenha filmado a tradicional e antiga Paixão de Cristo, em Oberammergau, ou que, em França, o célebre Georges Méliès tenha levado ao ecrã, em 1900, a vida da santa guerreira, Jeanne d’Arc. E pelo século XX fora, e agora no século XXI, a temática religiosa permanece no cinema, seja em abordagens fortemente catequéticas ou hagiográficas (quantas vezes desprovidas de qualidade cinematográfica) ou em obras de carácter crítico. Entre estas duas posturas surgem também filmes que, sem deixarem de pisar o terreno do questionamento, revelam realizadores – crentes ou agnósticos – interessados numa abordagem pessoal de seriedade profunda. Para compreensão do que  afirmo em relação a estes últimos autores basta lembrar  nomes como Dreyer, Bresson, Beauvois, no primeiro caso ou Cavalier e Rivette, no segundo, todos franceses, com excepção do dinamarquês Carl Dreyer que, no entanto, trabalhou em França, para a realização de La Passion de Jeanne d’Arc (1928).

Na realidade, como já tive ocasião de afirmar, o cinema, através do documentário ou das narrativas ficcionadas, envolve-se em premissas de carácter antropológico e sociológico para abordar as grandes questões da existência humana. E as atitudes face ao fenómeno religioso e da fé estão no centro dessa reflexão, algumas vezes colocando as questões num patamar teológico.

O cinema, através do documentário ou das narrativas ficcionadas, envolve-se em premissas de carácter antropológico e sociológico para abordar as grandes questões da existência humana

Carlos Capucho

O filme agora em apreciação, do francês Xavier Giannoli, pelo caminho que segue, situa-se justamente no terreno de uma produção que emana de um realizador crente que pretende questionar, estando dentro. Numa entrevista concedida a Vasco Câmara, do jornal Público (05/10/18), Gianolli afirma: “A crença e a fé são uma matéria de tal modo sensível, tão contraditória e tão humana que tinha necessidade de fazer um filme que se reapropriasse do lado íntimo dessas questões e que não fizesse com isso uma questão política e social”.  Sendo o território em jogo extremamente complexo (já nestas páginas dei conta disso mesmo a propósito de Silêncio, de Scorsese),vejamos a que grau qualitativo pode aceder a demanda cinematográfica que gera A Aparição.

A crença e a fé são uma matéria de tal modo sensível, tão contraditória e tão humana que tinha necessidade de fazer um filme que se reapropriasse do lado íntimo dessas questões e que não fizesse com isso uma questão política e social.

Xavier Giannoli, realizador em entrevista ao Público

O filme está centrado em três personagens que se tornam no eixo à volta do qual tudo gira: a figura do jornalista, integrante da comissão canónica (o actor Vincent Lindon), a vidente (a actriz Galatéa Bellugi) e a figura complexa e misteriosa do seu mentor (e aparente protector) o P. Borrodine. Todos as outras figuras com alguma importância (a psiquiatra, os padres da comissão, o propagandista religioso vindo da América) são tipos humanos e profissionais que evoluem em redor das personagens centrais.

Digamos que é sublinhado desde o início que a postura das entidades eclesiásticas, face a este fenómeno, é de prudência, mesmo de algum cepticismo, desejando que o rigor do inquérito esclareça que o que se verifica é digno de credibilidade ou, pelo contrário, se trata de um embuste. Neste aspecto a escolha, aparentemente inusitada, de um jornalista agnóstico, mas competente e sério, proporcionará a garantia de rigor na investigação que a Santa Sé pretende levar a cabo. Claro que o espectador atento não deixa de notar que Mayano se encontra emocionalmente atingido pelo choque que o afectara profundamente no exercício da sua profissão e isso condiciona a sua atitude. E, no desenho construído pelos argumentistas, há uma predisposição do personagem para a busca profissional se cruzar inevitavelmente com a busca pessoal no terreno da crença. E a sempre presente qualidade do actor Lindon credibiliza a construção da figura e provoca no espectador uma imediata e constante adesão positiva ao personagem.

A escolha, aparentemente inusitada, de um jornalista agnóstico, mas competente e sério, proporcionará a garantia de rigor na investigação que a Santa Sé pretende levar a cabo.

Carlos Capucho

O argumento está construído para que o filme se desenrole como uma investigação jornalística, sendo que esta se integra numa ‘investigação canónica’. Mas cedo nos damos conta – e isso não escapa a Moyano – que algo não bate certo malgrado a convicção, aparente coerência e piedade da jovem vidente. Elemento forte para que esse sentimento se enraíze é, justamente, o comportamento ambíguo do Padre mentor. Esclareça-se que para irmos até ao fundo nesta análise, teríamos que revelar detalhes da intriga, o que não seria atitude séria para com os espectadores que ainda verão o filme: quando uma obra alimenta o suspense até ao fim, não será curial revelar o desfecho e os fios que o tecem…

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© 2018 NORD-OUEST FILMS

Mas o que pretendo sublinhar é que alguma frustração que alimentei no visionamento, até ao desfecho, advém justamente de que Gianneli se alonga (excessivamente) a construir uma intriga em que o foco não ancora apenas numa questão de fé mas no que poderia ser, e às vezes será, um inquérito de policia, mesmo se com civis: padres ou leigos. Assaltou-me amiúde a ideia de que o que era excesso de tempo no filme, com um pouco mais de desenvolvimento sólido, poderia ser um bom e positivo entretenimento para televisão, e não mais do que isso.

É pena que um filme que parecia querer dar-nos tanto, se fique por tão pouco, contrariando, de certa forma, do meu ponto de vista, as excelentes intenções do realizador, expressas em entrevistas.

Carlos Capucho

Frustrante é, sem dúvida, que Giannoli gaste mais de duas horas para ir e vir à volta da vidente e, depois, se embale num ritmo frenético e algo superficial, de escassos minutos, para nos dar a coda que nos vai permitir descobrir o que realmente está em jogo. E é pena que um filme que parecia querer dar-nos tanto, se fique por tão pouco, contrariando, de certa forma, do meu ponto de vista, as excelentes intenções do realizador, expressas em entrevistas. Durante a projecção, e enquanto deixava a sala, rememorava a solidez, profundidade, e qualidade da aproximação ao mistério, da atitude de fé de alguns filmes-charneira dentro da temática religiosa. Para de novo evocar os realizadores que acima mencionei aqui ficam, para memória, os títulos de grandes filmes que fizeram na esfera do religioso: A Palavra (Dreyer, 1955), Diário de um Pároco de Aldeia (Bresson, 1951), Dos Homens e dos Deuses (Beauvois, 2010 ), Teresa (Cavalier, 1986) e Jeanne, La Pucelle (Rivette, 1996).

A finalizar não quero deixar de sublinhar que a produção de Gianneli, pouco acrescentando de mais valia à problemática que aborda, sempre decorre num clima de correcta visão do problema proposto. Por outro lado contam positivamente as prestações dos dois actores principais: o sempre excelente Vincent Lindon e a jovem Galatéa Bellugi, cujo extraordinário rosto e arte de representação nos prendem ao longo do filme.

Fotografias de Alambique Filmes  – © 2018 NORD-OUEST FILMS

Ficha Técnica

Título Original: L’Apparition – França/Bélgica/ Jordânia, 2018-Estreia em Portugal: 11/10/2018

Realização: Xavier Giannoli

Actores Principais: Vincent Lindon (Jacques Mayano)), Galatéa Bellugi (Anna), Patrick d’Assunção (Padre Borrodine), Anatole Tabman, Elina Löwensohn, Claude Lévèque, Bruno Georis.

Argumento: X. Giannoli/Jacques Fieschi

Fotografia a cor: Eric Gautier

Música: do repertório erudito

Estilo: Investigação/drama

Duração: 2H24 minutos Classificação: M/12 anos

Informações do filme no site da distribuidora em Portugal

 

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


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Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.

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