Como debater com quem tem posições que achamos inaceitáveis e não verdadeiras? É a pergunta para um milhão de euros. Aqui vai uma tentativa de resposta. Foi publicada pela primeira vez em 2018 no portal Ver da ACEGE, que gentilmente permitiu que o Ponto SJ a publique de novo.
Um judeu, um muçulmano e um católico encontram-se num programa de rádio semanal com o nome “E Deus criou o mundo” às terças na Antena 1 para conversar sobre religião. Não é anedota, é a ideia surpreendente que teve o produtor Carlos Quevedo e que junta o judeu Isaac Assor, o muçulmano Khalid Jamal e o católico que aqui escreve, moderados por Henrique Mota.
Levamos três anos de conversa em público numa conversa amena e aberta.
Há quem pergunte: como é que vocês conseguem?
De facto, começámos sem qualquer receita, só com o vago desejo de que tudo corresse bem, mas agora, ao olhar para trás, podemos encontrar 11 ingredientes na receita.
1º. O diálogo é entre crentes. Ou seja: não só aceitamos que Deus existe e actua na história, como cada um procura abrir-se à relação pessoal com Deus. Se, pelo contrário, fosse um diálogo entre pessoas que, na sua religião, apenas encontrassem festividades, ritos, tradições e costumes, mas não procurassem o encontro com o Deus vivo, então o diálogo seria, quando muito, etnográfico ou sociológico, mas não religioso.
2º. Cada um deve assumir sem medo a sua identidade. Um diálogo que não parta da sinceridade é uma ficção inútil. Seria um jogo, não de fakenews, mas de fakeviews. Para poder dialogar devo aprofundar naquilo em que acredito, e nos motivos pelos quais acredito, para poder expor de modo fiável e inteligível a minha fé.
3º. Não posso usar uma linguagem que só a minha fé consiga perceber. O sentido das palavras é dado por quem as ouve e não por quem as diz. Não posso pressupor que as palavras próprias da minha fé são claras para os meus colegas, e muito menos para o ouvinte.
4º. O objectivo do diálogo é o próprio diálogo não o consenso. Desfocar convicções pessoais só por agradar, não desiludir ou alcançar um ilusório acordo, seria trair a própria fé, o diálogo e desrespeitar os outros. Ainda assim, o melhor resultado de uma conversa não é a aproximação das ideias mas a aproximação das pessoas.
5º. O diálogo obriga a não omitir os temas difíceis. Judeus, cristãos e muçulmanos têm: algumas ideias comuns, não poucas ideias diferentes, e não raras ideias incompatíveis. Dialogar exige dispor-se a ouvir com interesse todas elas.
6º. No diálogo devo interessar-me pelos melhores argumentos dos outros, não pelos piores. É tentador comparar os bons argumentos que apoiam a minha convicção com os maus argumentos que sustentam, ou comprometem, a convicção alheia. É tentador, mas não é honesto.
7º. A clareza é compatível com a delicadeza. É frequente o erro de pensar que a defesa da verdade é tanto mais honrada quanto mais irritada e gritada for. Seria errado e, até, contraproducente. Em 2012 disse o arcebispo Jorge Mario Bergoglio: a verdade é como uma pedra preciosa: – fascina quando a deixamos delicadamente na mão do outro, – mas pode ferir, e ferir gravemente, se lha atirarmos à cara.
8º. A simpatia pelo outro é meio caminho andado para o compreender. No prólogo ao seu livro “Jesus de Nazaré”, Bento XVI quis dar ao leitor a possibilidade de livremente o contradizer, mas com uma condição: peço apenas aquela pressuposição de simpatia, sem a qual não há qualquer compreensão. No diálogo inter-religioso a relação de simpatia e bom humor é uma espécie de motor turbo da inteligência.
9º. A estima pelo outro é meio caminho andado para ele desejar progredir. Talvez tenhamos visto alguém melhorar, e melhorar muito, por se ter confiado nele. Para isso é importante saber apostar no muito de bom e de grande que cada pessoa tem dentro de si, e incentivar, no longo prazo, que esse “muito de bom e de grande” se robusteça.
10º. No diálogo inter-religioso paira a inevitável questão da verdade. As religiões de pouco servem se forem só construções humanas, tentativas bem-intencionadas de falar de Deus com os nossos recursos. Se assim fosse, a religião seria o lugar onde o homem está, e não o lugar onde Deus se revela. Todos nós tomamos as nossas religiões como verdadeiras, mas elas não podem ser todas verdadeiras em todas as suas afirmações, tantas vezes dissonantes ou contraditórias entre si. Essa divergência não se resolve com retórica ou persuasão (e menos ainda com violência), mas com maior abertura interior a Deus. Compreendemos que seja Deus quem nos oriente e nos esclareça, e indique o caminho por onde os homens devam andar. E a todo o momento podemos pedir-lhe que intervenha e não nos deixe no erro.
11º. Se não soubermos dialogar sobre religião, acabaremos por guerrear por causa da religião. Esta frase disse-a em Setembro passado o bispo católico Robert Barron numa conferência na sede do Facebook, precisamente uma rede social que se incendeia facilmente por causa da religião mas onde ainda pouco se sabe dialogar sobre religião.
Mais de três anos a falar na rádio de religião.
A “liberdade religiosa” tem de ser liberdade de, publicamente, “falar sobre religião” e “falar sobre a minha religião”.
Parece óbvio, mas não é. De facto, há não poucas propostas de calar o discurso sobre a religião com o falso pretexto de não ofender quem não tem religião, ou quem não tem essa religião. Como se fosse verdade que, cada vez que alguém afirma publicamente uma ideia, estivesse obrigatoriamente a ofender todos os que não partilham essa ideia.
Chesterton alertou para tal risco: “A liberdade religiosa deveria significar que toda a gente é livre de falar de religião. Na prática, significa que é quase proibido, a quem quer que seja, fazer qualquer alusão ao assunto.”
Fotografia – Jad Limcaco – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.