O encontro para lá do estigma

Alunos do 12º ano do Colégio São João de Brito, em Lisboa, passaram um dia com os utentes da Casa de Saúde do Telhal, uma instituição de apoio à saúde mental. Interação com os doentes foi exigente mas muito recompensadora, assinalam alunos e professores que ousaram sair da sua "zona de conforto".

Ao longo da última semana de outubro, os alunos do 12º ano do Colégio S. João de Brito, juntamente com os seus respetivos Professores Responsáveis (nome dado aos Diretores de Turma), foram convidados a viver uma experiência inspiradora e muito desafiante. Com efeito, como já vem acontecendo há alguns anos, o Dia de Reflexão do 12º ano decorreu, para cada turma, na Casa de Saúde do Telhal, uma instituição onde vivem mais de 400 pessoas e que é gerida pela Ordem Hospitaleira de S. João de Deus, estando vocacionada para a assistência na área da Psiquiatria, Saúde Mental e Reabilitação Psicossocial. Os alunos finalistas foram, pois, imergidos numa realidade muito diferente da que estão habituados: a área da saúde mental e da exclusão social por motivos de (in)capacidade cognitiva e psicológica. A intenção é despertá-los, através de uma experiência transformadora, para a postura de serviço e abertura aos outros com que o colégio espera que abracem a vida adulta no final deste ano letivo.

Nas palavras de Francisco Sousa, um dos Professores Responsáveis que acompanharam os alunos, “é sempre difícil experimentar outra realidade social, que não seja aquela que consideramos normal. O normal é visto através do nosso espelho onde se reflete a nossa imagem. Mas há outros rostos, outros espelhos e outras realidades. São tão normais como a nossa normalidade? Porventura, é uma realidade mais pura do que a nossa, daí a dificuldade de a entender. Por isso, a solução que nos resta é ajudá-la a ser mais humana contribuindo com a nossa presença consciente, para aceitar a diferença como se fosse outra como a nossa”.

Foi esse o projeto destes dias de reflexão: “ir para lá da própria zona de conforto”, como muito bem descreveu a aluna Francisca Aguiar, procurando “descobrir no outro alguém tão digno como eu e, simultaneamente, descobrir em mim alguém com capacidades de encontro e de serviço até então insuspeitas”. Como descreve a professora Alexandra Valente, “estar na casa de saúde do Telhal permite-nos o encontro com o ‘outro’, que se apresenta sem máscaras. Este ‘outro’ surge perante nós de formas múltiplas, mas verdadeiras: uma expressão pura de afeto, uma expressão dolorida de sofrimento e cansaço… No pouco tempo que podemos passar, neste Dia de Reflexão no Telhal, com as pessoas que nos recebem, participamos nessa sua realidade de afeto, de dor, que é também a nossa.”

Para todas as turmas, o dia começou com uma introdução e contextualização da casa e do que se esperava do encontro humano entre alunos e utentes. Com uma dinâmica muito elucidativa e reveladora, em que o orientador espiritual da casa convidava os jovens a descreverem o que viam numa folha de papel rabiscada ao acaso, confrontando-os depois com a sua incapacidade de ver para lá dos riscos, os alunos foram preparados para a descoberta de pessoas com valor e potencialidades para lá da doença e da incapacidade. Segundo Francisca, essa introdução foi muito eficaz na quebra de preconceitos, preparando os alunos para as atividades e o trabalho voluntário a que se dedicaram depois do almoço, distribuídos em grupos pelas diversas unidades.

Os desafios foram muitos: os doentes tinham um comportamento muito espontâneo e imprevisível, comunicavam de forma muito direta e por vezes inconveniente, a procura de contacto físico era constante e as debilidades físicas daqueles a quem os alunos estiveram a ajudar a almoçar não são algo com que jovens de 17 anos estejam habituados a conviver.

“Se eu visse alguém com aquelas limitações na rua, eu provavelmente afastava-me. Mas senti que tinha de puxar por mim e não vacilar. Se estávamos ali, tínhamos de mostrar uma boa atitude para com eles, mas isso não é fácil para quem está a panicar por dentro, por não estar habituado àqueles abraços e beijos constantes”, conta a aluna Leonor Banha da Silva. De facto, para muito alunos, tal como para os professores que os acompanhavam, foi necessário um certo tempo para compreenderem onde estavam, encontrarem a forma mais adequada para se relacionarem com o outro, e descontraírem depois do primeiro embate com a diferença.

Por essa razão, a duração da experiência até pareceu curta, não porque tenha sido fácil, mas precisamente porque, tendo sido precisas várias horas para se sentirem confortáveis dentro daquela situação, foi pena terem de se ir embora precisamente quando já se sentiam preparados para uma interação mais espontânea, para lá do serviço de apoio às refeições. “Mas foi muito bom sentir-me tão útil”, prossegue a Leonor. “Por uma casualidade, na unidade onde eu estive só estavam duas pessoas a servir 55 utentes. Nós fomos providenciais e realmente ajudámos imenso. Mas claro que poder ficar lá mais uma hora só no convívio teria sido melhor”.

Para a professora Marta Costa, mais do que a sua própria experiência, “é muito gratificante ver a interação dos nossos alunos com os utentes e vice-versa. Todos ganham na troca de experiências. As pessoas com doença mental, como explicou o orientador espiritual do Telhal, são iguais a nós e também procuram ser felizes. Isso foi visível e os nossos alunos sentiram-se úteis a contribuir para a causa.”

Segundo a aluna Catarina Cruz, que esteve a ajudar a dar o almoço a um senhor com muitas dificuldades em mastigar e engolir e que não conseguia falar, “foi duro perceber que as pessoas que mais precisam de nós eram aquelas que menos comunicavam. Isso torna a relação humana mais limitada, com menos interação. E isso foi diferente do que eu tinha imaginado”. Mas foi precisamente neste desafio que esteve a riqueza da experiência, reconhece. Foi diferente de todas as outras experiências de voluntariado que já tinha tido e requereu um espírito de serviço mais radical.

Segundo a partilha de alunos e professores, ninguém ficou indiferente, todos cresceram com este dia. Conta a professor Célia Teixeira: “A ida ao Telhal fez-me confrontar com a evidência de como a fragilidade humana, face à doença, é enorme! Foi a primeira vez que lá estive e senti-me bem por poder colaborar com os profissionais que lá trabalham (enalteço a sua dedicação e entrega). Ainda sinto o afeto e os abracinhos do Sr. António. Espero ter conseguido retribuir da melhor maneira.”

A professora Alexandra Valente, para quem esta ida ao Telhal foi a segunda, comenta: “Neste regresso ao Telhal, porque procurei estar sem reservas (pelas pessoas que encontrei, pelos alunos que acompanhei e por mim), consegui o encontro que há seis anos atrás não tinha alcançado.” E conclui: “Este estar no Telhal, que colhe de nós tantos testemunhos, não é realmente sobre nós, mas sobre ‘o outro que nos permitiu o encontro. Ao Francisco, Manuel, António e a todos os nomes que podem ocupar a vez destes, aos que nos tenham agradecido a ajuda numa refeição, estou grata por nos terem ajudado a ser mais pessoas.”