É uma questão de liberdade

A liberdade é um braço a dar expansão simultaneamente à nossa razão e ao nosso corpo, é uma perna que permite caminhar em longos e pedregosos paradeiros. É a arma nobre e sublime oferecida ao Homem para servir o mundo.

Perdoem-me a ousadia, mas andam a enganar-nos. Movidos pela força de abril – cujo mérito para nos alertar acerca do privilégio de pensarmos pela nossa própria cabeça é indesmentível – ficámos convencidos de que a liberdade é o fim último, o paraíso, o reduto definitivo a que um ser humano pretende almejar. Mas, ao invés da arte, da beleza ou da justiça – que gozam de uma razão própria, emancipada e preciosa -, a liberdade, se é olhada como um bem em si mesmo e, por isso, um fim ao qual todas as nossas ações devem apontar, perde-se, esvazia-se, renega todo o seu sentido e significado. A beleza vinculada a si própria continua a ser beleza. O amor existe a sós porque é tudo o que se pode dar a alguém. A liberdade na intimidade de si mesma deixa de ser liberdade. Precisa, assim, de se subordinar, como um pulmão ou como uma parede de uma casa.

Há cerca de umas semanas, Hector Bellerin, contratação recente do Sporting, era anunciado como “o espírito livre que só vai ler livros escritos por mulheres”. Achei graça ao título, exatamente porque o considerei absurdo. O meu problema não se prende com o predicado, mas sim com o sujeito. Escolher ler apenas livros de mulheres, apesar de ser uma coisa não recomendável, diria até que é irresponsável fazê-lo (tanto como conduzir sem cinto de segurança) não traz grande mal ao mundo, e trata-se de uma escolha resultante de cada um poder decidir fazer o que bem lhe apetece, direito que nos foi dado à nascença. O que refuto nesta destemida sentença é o sujeito “espírito livre”. Porque, na minha conceção de liberdade, um espírito livre não rejeita, à partida, o bem que a diferença tem para lhe dar. Porque a liberdade não nasce da distinção pura e simples, em relação ao outro. O ser humano não se torna mais livre por decidir percorrer uma estrada exclusiva, diversa da multidão, ainda que essa sua escolha seja resultante do tal direito inato de que falava. Uma coisa é escolhermos porque somos livres, outra é sermos livres porque escolhemos. Não é bem uma redundância.

O ser humano não se torna mais livre por decidir percorrer uma estrada exclusiva, diversa da multidão, ainda que essa sua escolha seja resultante do tal direito inato de que falava. Uma coisa é escolhermos porque somos livres, outra é sermos livres porque escolhemos. Não é bem uma redundância.

Quando alguém me diz que não quer ler Dostoiévski, Saramago, São Tomás de Aquino ou Dante, apenas porque são homens, e que agora só quer ler livros escritos por mulheres, ocorre-se-me pensar algumas coisas sobre isso: ou já leu tudo o que havia para ler escrito por homens, ou quer perder mais tempo a ler Agustina e Jane Austen, ou quer perceber se há uma diferença entre a escrita masculina e a feminina para uma qualquer tese de doutoramento. De todas as razões que pairam na minha massa cinzenta, não me passa pela cabeça admirar e dizer, acerca desta pessoa, que é um “espírito livre” ou que está a desbastar caminho pelo feminismo. Quem escolhe ler um livro, pode ter várias razões para o fazer – todas elas legítimas -, mas quem escolhe ler um livro apenas porque é escrito por uma mulher, não está nem fazer uma escolha livre nem a falar sobre literatura. Ou será que Hector Bellerin, por escolher ler livros apenas escritos por mulheres, é mais livre do que aqueles que decidem ler livros escritos por homens e mulheres porque os livros são bons e não porque são escritos por pessoa X ou Y?

Faço apenas uma ressalva. Escolher ler livros escritos por mulheres é um critério razoável. Mas a palavra “apenas” estraga tudo. E arruína toda a ideia de “espirito livre”. Ser esse o principal critério é uma escolha contrária à liberdade que tantos afirmam – é preconceituosa e filógina. Tal como escolher ler livros apenas escritos por homens.

Curiosamente, Bellerin é jogador de futebol. E eu estou convencido de que não há melhor lugar do que o desporto para aprender o significado da palavra liberdade. Até porque, com ironia, contraria alguns impulsos contemporâneos como a desmedida preocupação connosco próprios, a ideia de que tudo é possível se houver um sonho ou que um ser livre é aquele que faz tudo o que lhe apetece. No desporto, transparece, com evidência quase científica, que a descoberta pessoal se faz numa entrega inteira ao outro, que a humildade dada a um todo faz sobressair o indivíduo, que a liberdade precisa de regras para poder ser verdadeiramente livre, isto é, para fazer sentido. Como qualquer instrumento, pode ter defeitos de desafinação, mas não existiria se não fosse para dele fazer coisas dignas, inteiras e harmónicas.

A liberdade é um braço a dar expansão simultaneamente à nossa razão e ao nosso corpo, é uma perna que permite caminhar em longos e pedregosos paradeiros. É, diria, a arma nobre e sublime oferecida ao Homem para servir o mundo, elevando-se, a ele e aos outros, cujo desenvolvimento acontece perante um bem maior, como numa equipa. A liberdade exacerba-se diante das coisas, da realidade. E como me ensinou Clarice Lispector: “Liberdade é pouco, o que eu desejo ainda não tem nome”.

 

Fotografia de  Hanna Zhyhar – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.