A vida de padre é, muitas vezes, olhada como sendo dura, sem interesse, limitada e longe do mundo dos prazeres que fazem a alegria da vida dos leigos. A vida de padre é uma «seca»?
Eu acho que a vida de padre é tudo menos uma seca. Tenho percebido, pela minha experiência, que esta vida implica o contacto com muita gente — e, por isso, é tudo menos uma seca. Além disso, o ministério possibilita inúmeras situações inesperadas. Recordo‑me, por exemplo, de uma ocasião em que tinha um seminário, uma aula a uma hora marcada depois da missa que devia celebrar logo no início do dia, às 07h15m. No final da missa, antes do seminário, alguém me pediu para se confessar. Pensando que se trataria de uma breve confissão rotineira, acompanhei a pessoa para o local das confissões. E à medida que ela me falava, fui percebendo que se tratava de uma situação muito difícil, de grande sofrimento. Nesse momento, aceitei que o meu dia não fosse como o previsto. E, como padre, tive de abdicar dos meus compromissos e exercer o ministério como sei e como posso. Procurei dedicar‑me, como padre, àquela pessoa dando‑lhe o meu tempo e a minha atenção. Senti que ali, eu estava a representar a Igreja, e o próprio Deus, não é? Se eu a rejeitasse e dissesse: «Olhe, peço desculpa, mas estou inscrito num programa e tenho que seguir algumas aulas; tenho um seminário importante e tenho de partir daqui a 5 minutos…» — se eu lhe dissesse isso, essa pessoa veria em mim uma Igreja não acolhedora. E, sobretudo, eu não estaria a viver a minha vocação sacerdotal. Isto, só para dizer que a vida de padre tem também algo de imprevisível, algo que não controlamos. Não digo que seja o único estilo de vida em que isso aconteça, mas a vida de padre dá‑se muito ao imprevisto, ao imprevisível, ao inesperado. Também porque é uma vida que se abre muito ao contacto com outros. Para além do contacto com as pessoas, para além deste aspecto mais social próprio da vida de padre, devo dizer que é, acima de tudo, uma grande bênção poder relacionar‑me com Deus na oração, e particularmente na missa, enquanto padre. Não, não é nada uma seca.
Qual é o seu pior defeito? O que mais o irrita?
É difícil responder a esta pergunta. Esta pergunta deve ser feita às pessoas que têm de me aturar. Mas direi que aquilo que talvez mais me irrita em mim é a tendência de querer ter tudo sob controle, de querer controlar «a situação». Tenho essa tendência de querer programar exactamente o que se vai passar, o que vai acontecer, e até a forma como as coisas vão ser feitas. Esta tendência da minha personalidade constitui algo que tenho procurado melhorar; é um ponto de esforço, na minha vida espiritual, no sentido de estar mais aberto àquilo que Deus tem a oferecer para mim.
De facto, quem prevê tudo, quem quer controlar tudo e fazer tudo exactamente como o previsto, fecha‑se facilmente à graça de Deus; o Deus das surpresas. Por isso, não sei se fico mais irritado quando as coisas saem ao lado das minhas previsões ou quando dou por mim como alguém que ainda não conseguiu largar esta tendência.
Se naufragasse numa ilha deserta, qual o livro que gostaria de ter consigo?
Entre as várias coisas que eu gosto de fazer, ler é uma delas. Gosto de vários tipos de literatura, desde a banda desenhada a escritos filosóficos, passando também pelos romances. Por isso, é‑me muito difícil selecionar um livro, ou um autor. Mas gostaria certamente de ter comigo, nessa ilha, um livro que ainda não tivesse lido. Acho que ler é uma das actividades que nos ajuda a relacionar com o mundo e com os outros, ainda que de uma forma muito original. Ler permite‑nos perceber outras perspectivas, incarnar outros personagens, conhecer outros mundos. E, assim, através da leitura, sentimos que não estamos sós neste mundo e ficamos mais largos. Algo que aconteceu com a leitura de A Montanha Mágica de Thomas Mann, por exemplo. Numa ilha deserta, gostaria certamente de ter um livro.
(páginas 46, 47 e 48 de “Nós, os padres”.)
Nascido a 16 de Julho de 1981, Andreas Gonçalves Lind veio a ser baptizado a 11 de Abril de 2004, em Lisboa, a sua cidade natal. Depois de se formar em Economia e de ter começado a sua actividade profissional numa Business school, ainda na mesma cidade, ingressou no Noviciado da Companhia de Jesus em Coimbra, a 25 de Setembro de 2005. Desde então, tem seguido o percurso habitual da formação de um jesuíta: dois anos de Noviciado, segui‑
dos de tempos de formação filosófica em Braga e teológica em Roma e Paris, intercalados pelo Magistério de dois anos, no Colégio São João de Brito, em Lisboa. Tendo sido ordenado presbítero em 2016, depois de finalizar os estudos em Paris, encontra‑se actualmente em Namur, Bélgica, a fazer um doutoramento em Filosofia. Actualmente, colabora também nas actividades apostólicas da Chapelle de Notre Dame de la Paix, dos jesuítas locais
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.