Decidi começar a preencher o meu testamento vital a partir dum ficheiro disponível na Internet intitulado “Diretiva Antecipada de Vontade (DAV)”. Harmonizei pontos de vista com alguns amigos, principalmente médicos e fiz um balanço muito positivo no que tal trouxe ao meu crescimento pessoal, vivencial e espiritual. Intuo também que tal possa vir a ajudar os meus familiares e o corpo médico quando e se, no futuro, me encontrar em situação de grande fragilidade de saúde. Hoje escrevo estas palavras dum certo lugar de mim e do mundo. Um dia poderei ajustar a posição ou até mudar de ideias. Felizmente, a própria DAV é radicalmente reversível e flexível. Estou consciente da (pseudo)frieza com que tento argumentar a minha decisão de avançar com a DAV. Sei de antemão que faço o exercício de clarificar e simplificar aquilo que é bastante complexo. São imensas as nuances: pessoais, psicológicas, relacionais, jurídicas, espirituais, morais e médicas. No plano clínico, em particular, cada caso é um caso, mas estou convicto de que pensar antes, só poderá ajudar. Algumas linhas de força:
A morte ainda é tabu, mesmo nas famílias cristãs
A morte continua a ser um razoável tabu. Compreendemos todos porquê: é algo real mas angustiante, evidente mas que desejaríamos omitir, distante… mas iminente. Somos morrentes em trânsito, estamos a nascer e a morrer ao mesmo tempo, mas tendemos a ver parcialmente esse dinamismo. Morrer parece quebrar a unidade, mas se há que ligar alguma coisa na nossa existência, é precisamente a vida e a morte. Para nós, cristãos, a morte e a ressurreição de Jesus são uma misteriosa síntese inspiradora. Se alguém ensaiar falar sobre a morte e sobre a sua morte em família – até com alguma solenidade e convocatória, como, quanto a mim, conviria – ouvirá com alguma probabilidade coisas como “não vamos falar de coisas tristes”, ou “deixa lá isso” ou desvios mais irónicos do tipo “hoje está um lindo dia”. Compreende-se, mas pode ser o caso de insistir. Se o mandato humano nos evidencia a evidência da morte, o lastro cristão convida-nos adicionalmente a encarar e a falar do assunto, focados na esperança confiante do que professamos: a morte não é a última palavra. Mais ainda, não me parece que seja só assunto de gente de mais avançada idade: é coisa para todos, novos e menos novos. A fenda preventiva que se abre nesta reflexão agudiza ainda mais o argumento de falar do assunto, de ir falando, e quanto mais cedo melhor.
Morrer parece quebrar a unidade, mas se há que ligar alguma coisa na nossa existência, é precisamente a vida e a morte. Para nós, cristãos, a morte e a ressurreição de Jesus são uma misteriosa síntese inspiradora.
É sempre mais fácil mastigar e prever sobre a minha liberdade do que sobre a liberdade dos outros
Os argumentos jurídicos, políticos, morais, sociais e teológicos relacionados com a eutanásia (que de alguma forma, assumidamente, não quero operacionalizar aqui), apresentam-nos uma tensão incontornável à volta da liberdade: a minha liberdade, a liberdade dos outros e a liberdade do mundo. Torna-se por isso redobradamente interessante o contexto da DAV, porque permite deliberar sobre a minha própria liberdade, antecipadamente, e não sobre a liberdade do outro, seja pai, mãe, irmão, amigo. O que se expressa no formulário é radicalmente pessoal (embora possa incluir procuração a um terceiro de confiança). A minha simpatia pela DAV, enquanto cidadão, é a sua universalidade e o seu potencial de fecundidade, já hoje (pela conversa que abre) e amanhã, pela paz e ecologia adicionais a que pode conduzir.
A tese minimalista dos cuidados médicos que para mim desejo: as minhas motivações
Para já, tenho certo bloqueio filosófico-deontológico-moral em relação ao gesto explícito de induzir o fim (apesar da minha compreensão por colocações diferentes da minha). Mas, daqui partindo, registo:
a) Uma cosmovisão sociologicamente benévola da morte enquanto sustentação demográfica: dar lugar a um outro num planeta de recursos limitados: a morte que permite o nascimento de outras vidas e, portanto, como doação.
b) Um embalo nas potencialidades médico-farmacológicas da medicina paliativa. Dentro da medicina paliativa, ela mesma ainda embrionária e com graves lacunas no nosso país, destaca-se a paliatividade doméstica. A possibilidade do doente poder ser assistido em sua casa ou num dinamismo ambulatório é altamente promissora.
c) Uma grande simpatia pela ecologia médica. Ao declarar querer ser minimalista na situação de fragilidade aguda, liberto recursos de assistência (médicos e não só), físicos e humanos, para que outras necessidades possam ser satisfeitas. Note-se como esta motivação c) – ecologia de recursos médicos – é muito mais fácil de enunciar e reclamar a título individual. Ser-me-ia difícil invocar o mesmo para outrém… Mas médicos, gestores de medicina e sociedade, já hoje e mais ainda adiante, poderão ter que realizar complexos discernimentos sobre ecologia médica e tensões de prolongamento em fim de vida.
d) Finalmente, mas o mais relevante para mim, é aquilo a que eu poderia chamar um lastro espiritual ou uma motivação mística. A cristandade (termo que aqui escrevo com ironia crítica) tem vindo a esquecer a dimensão mística, que, contudo, é a mais importante neste contexto, que salva e que salvará. O encontro com “um qualquer” coisa transcendente a que chamamos Deus, e que pode nortear a nossa vida, seria suficiente para uma desdramatização da morte. São Francisco sintetiza este aspeto ao referir a “irmã morte”. Deste lado místico, facilmente damos suporte à ideia de que valorizar a vida não é ter apego à vida… Quase ao contrário, valorizar a vida é dar a vida, em todos as suas etapas e também nos momentos mais perto de outras passagens. É ainda a faceta mística que mais amplia o ponto de partida que interessa para o próprio desapego da vida: que tal liberdade de largar venha, não do medo, mas do amor.
O encontro com “um qualquer” coisa transcendente a que chamamos Deus, e que pode nortear a nossa vida, seria suficiente para uma desdramatização da morte.
Um pouco além da DAV
No formulário da DAV são colocadas as diferentes situações clínicas para as quais o documento produz os seus efeitos. A saber: a) Me ter sido diagnosticada doença incurável em fase terminal; b) não existirem expectativas de recuperação na avaliação clínica feita pelos membros da equipa médica responsável pelos cuidados, de acordo com o estado da arte; c) quando me encontrar incapaz para expressar a minha vontade autonomamente, em consequência do meu estado de saúde física e/ou mental, e se verificarem uma ou mais das seguintes hipóteses: Inconsciência por doença neurológica ou psiquiátrica irreversível, complicada por intercorrência respiratória, renal ou cardíaca.
Selecionei todas estas opções acima, mas, no meu caso particular, pelos motivos expostos no início desta reflexão, quis “esticar” ainda mais ainda a situação (ir um tanto além do texto da DAV) e, como quarta opção, em “outras”, somei a seguinte redação, com as palavras bem medidas: “em situação de fragilidade aguda de origem psico-neurológica ou outra, particularmente sinalizada pelo quase sistemático não reconhecimento dos outros, declaro preferir entrar em metáfora paliativa”. Além disso, para se perceber o cenário filosófico-existencial do meu perfil, poderia somar na página 3 do documento, em “outras considerações”, este próprio artigo.
Sei bem que é bastante vaga a declaração de preferir entrar em metáfora paliativa. É fundamental a integração sistémica da equipa médica. Deste lado da minha ignorância clínica, o que quero dizer é que numa infeção, por exemplo, em vez de me prescreverem antibióticos de largo espectro, entendo como preferível o conforto e o alívio da dor, mesmo que recorrendo a antibióticos mais comuns (funcionando paliativamente) e/ou a fármacos morfinóides, com as suas consequências.
Algumas pessoas contestam este pragmatismo com a ideia de que “poderá, entretanto, aparecer um tratamento… ou até um milagre”. Confesso que não me comovo muito com essa argumentação. Sim, é verdade que estatisticamente haveria essa possibilidade, mas a vida ensina-nos que não há risco zero em coisa nenhuma. Há um lado do “agarrar a vida” que, na minha ótica, sombreia a vida que importa, onde caberá, por amor, deixar ir… A entrega amorosa é uma das dimensões da dança entre a vida e a morte.
. Há um lado do “agarrar a vida” que, na minha ótica, sombreia a vida que importa, onde caberá, por amor, deixar ir… A entrega amorosa é uma das dimensões da dança entre a vida e a morte.
Notar que pode haver legítimos obstáculos filosóficos e bioéticos à utilidade da própria DAV. Dir-se-ia que o dinamismo médico verdadeiramente bioético prescinde deste instrumento. Posso concordar parcialmente, mas a prática médica e o contexto socio-afetivo dos pacientes e das suas famílias parece-me estar longe dessa idealidade. É por reconhecer que estamos em processo, porventura em primeiros passos, longe da velocidade de cruzeiro paliativa, que, pelo menos provisoriamente, para cada um, para cada família, para cada ambiente clínico, podemos ganhar globalmente com a tentativa de explicitar antecipadamente a nossa vontade ou, pelo menos, o nosso “estilo bioético” face à iminência da morte.
É para a vida que somos feitos
O que aqui escrevo brota dum entrançado complexo, que contempla atrevimento, medo, ousadia, racionalidade, fragilidade, dúvida, convicção, pragmatismo, afetividade, ignorância, vontade, sonho e liberdade. É o meu ponto de vista, a minha possibilidade, hoje e aqui, neste lugar. Sei bem que apesar das minhas colocações, a dúvida persiste (em mim e em quem eventualmente me cuidará adiante). O meu ponto é mais frágil do que as próprias palavras (alguma similitude com excessiva segurança é pura coincidência). A tentativa de racionalizar, prevenir, operacionalizar e facilitar só valerá se vier e for para o amor. Importará, em todos os cenários, amanhã e desde já, alimentar a esperança e o sentido para uma vida boa, minha e de todos. Por isso mesmo, também para uma morte boa, tanto quanto possível. O físico conta, pois, nele nos movemos e (co)movemos, mas parece ser radicalmente insuficiente. Para mim, a DAV serve se servir uma metafísica mais brotante de sentido e de sentidos: a de que nascemos para viver e viver em abundância. Há pouca vida sem a esperança de que o seu avesso, a morte, seja uma passagem para mais vida. Eis a nossa fé: para a vida nascemos e é sempre a vida que manda, até na morte!
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.